Júri concluiu que o soldado Guilherme Tadeu agiu em ‘legítima defesa imaginária’, por ter imaginado que Rogério Ferreira iria sacar uma arma, mesmo que na realidade estivesse desarmado
O policial militar Guilherme Tadeu Figueiredo Giacomelli foi absolvido, na noite desta quinta-feira (8/8), pela morte de Rogério Ferreira da Silva Júnior, jovem desarmado que foi morto com um tiro no dia em que completou 19 anos, em 9 de agosto de 2020, no Parque Bristol, na zona sul da capital paulista.
“Mataram meu filho mais uma vez”, disse a cabeleireira Roseane da Silva Ribeiro, mãe de Rogério, que chorou ao ouvir a sentença. “É muita injustiça.”
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O júri popular, realizado no Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste, levou cerca de 10 horas para decidir que o soldado da PM não cometeu crime ao matar Rogério, porque o PM teria imaginado que o jovem negro fosse sacar uma arma, mesmo que, na realidade, ele estivesse desarmado.
Trata-se da tese da legítima defesa imaginária, prevista no artigo 20 do Código Penal, que prevê isenção de pena para quem, “por erro plenamente justificado pelas circunstâncias”, imagina uma situação que, se fosse real, não seria crime.
Sete testemunhas foram ouvidas, quatro da acusação e três da defesa. O soldado foi o último a prestar depoimento. Guilherme afirmou que o tiro em Rogério foi o primeiro que disparou em serviço. O PM atuava nas ruas há seis meses.
O policial afirmou que atirou em Rogério porque imaginou que o jovem havia feito “menção de atirar”. Ele perseguia o jovem pelas ruas do Parque Bristol quando, segundo a versão dele, Guilherme parou a moto que dirigia e tocou na cintura. Nenhuma arma foi encontrada com Rogério.
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Giacomelli foi questionado pelos jurados se não podia ter mirado no pneu ou na lataria da motocicleta. O PM respondeu que na escola para policiais havia treinado em alvos parados e que a situação da vida real era diferente. “Não cometi excesso. Só me defendi”, disse o policial em depoimento.
Demora no socorro
Roseane testemunhou e contou ter visto o filho com vida pela última vez em casa. Mais tarde naquele dia, a família iria comemorar o aniversário com um bolo feito especialmente para a data.
Com a morte, o bolo ficou sete dias na geladeira até ser jogado fora. Na casa da família nunca mais houve clima para festa. “A gente não conseguiu cantar parabéns”, lamentou Roseane.
Rogério foi socorrido por vizinhos e familiares. Levado ao hospital, a morte foi confirmada. O jovem levou um tiro na região do tórax, que perfurou o pulmão.
Mais cedo naquele dia, Rogério havia pegado emprestado a motocicleta de um amigo. A mãe contou que o filho adorava motos e tinha o desejo de ter uma. O jovem não tinha habilitação e estava sem capacete quando foi perseguido. Para o promotor Fernando Cesar Gomes de Souza, isso pode ter motivado a fuga.
O promotor questionou a abordagem do policial militar. O promotor afirmou que, mesmo sendo novato, o PM havia sido treinado.
O promotor destacou o depoimento de Renan Conceição Branco, policial que estava com Guilherme na abordagem. Em juízo, Branco disse ter imaginado que a ocorrência era apenas uma infração administrativa, relacionada à falta do capacete, por exemplo, tanto que desceu da moto sem arma em punho.
Arma, tiro e perseguição
Na versão defendida pelo policial, mais cedo naquele dia, por volta das 12h, o Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) havia informado, via rádio, sobre um roubo de motocicleta na região.
Ao avistar a moto de Rogério, o PM teria relacionado os fatos. O jovem teria jogado a moto contra o PM, segundo ele. Apesar de não haver imagens desse trajeto, a defesa do policial, conduzida pelos advogados Flávia Magalhães Artilheiro e Richard Nogueira, apresentou aos jurados uma projeção em 3D do que teria ocorrido.
“O tiro foi uma situação sem escolha”, disse Guilherme. Contudo, o PM contou só ter percebido que Rogério foi ferido quando o jovem já estava no chão.
Vídeos que registraram a ação mostram o PM descendo da motocicleta de costas para Rogério e sem a arma na mão. Para a assistente de acusação Marina Toth, as imagens mostram um crime. “Ele tinha escolha. Podia escolher não matar o Rogério”, afirmou.
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Marina integra a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio. O movimento luta pela garantia de direitos e contra violações aos pobres, pretos e periféricos. O grupo acompanha o caso de Rogério desde o início.
Queda de moto
Outro ponto discutido no júri foi a comunicação ao Copom de que a ocorrência seria um acidente de trânsito.
O PM Branco assumiu que foi ele quem comunicou ao Copom o fato. O policial disse não ter ouvido o disparo e não ter visto o ferimento. Só após comunicar ao Comando sobre o suposto acidente é que foi avisado por Guilherme sobre o tiro.
A defesa de Guilherme defendeu que houve problemas na comunicação, o que impediu que a dupla informasse o Copom sobre o tiro. Quem fez o comunicado foi um superior dos policiais, avisado sobre os fatos pelo celular.
Para a promotoria, a suposta falha na comunicação ocorreu pela demora de Guilherme em avisar ao colega que atirou.
Para Maria Cristina Quirino, mãe de Denys Henrique Quirino, morto no Massacre de Paraisópolis, em 2019, o PM não deveria voltar às ruas. Maria Cristina acompanhou o júri e questionou a reportagem sobre a condição mental de Guilherme voltar ao serviço após a morte e o processo criminal. Em depoimento, o policial afirmou que seguiu na corporação durante todos esses anos, mas em cargo administrativo.
Relembre o caso
Rogério Ferreira da Silva Júnior foi morto com um tiro nas costas disparado pelo policial Guilherme Tadeu. Um vídeo registrou parte da abordagem. Além de Guilherme, também estava presente o PM Renan Conceição Fernandes Branco. Nas imagens, divulgadas à época pela Ponte, é possível ver o jovem caindo no chão após ser atingido.
A atuação dos policiais chegou a ser elogiada pelo então secretário da Segurança Pública de São Paulo, João Camilo Pires de Campos. Em entrevista coletiva concedida um dia após o crime, ele afirmou que havia indícios de que a moto usada por Rogério era roubada.
A Ponte mostrou que a informação era falsa. O veículo pertencia a um amigo do jovem e estava com os documentos e tributos em dia.
Ainda em 2020, o juiz militar Ronaldo João Roth determinou a prisão preventiva da dupla, mas os liberou dois meses depois. O mesmo magistrado acabou absolvendo em 2022 a dupla de PMs pelos crimes de falsidade ideológica e prevaricação sob a alegação de que restaram dúvidas razoáveis quanto ao crime de falsidade ideológica.
No caso da prevaricação, o fato de os policiais não terem seguido os procedimentos operacionais não constituem “violação à expressa disposição legal”, escreveu na decisão, chancelada pelos demais juízes militares.
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O PM Guilherme se tornou réu pelo homicídio em 2020. No pedido, o promotor Neudival Mascarenhas Filho apontou que o soldado havia contrariado regras básicas sobre perseguição e abordagem. O julgamento só ocorreria quatro anos depois.