Justiça absolve Sol, travesti negra que foi processada por filmar agressão policial

Veterinária foi detida e teve identidade de gênero desrespeitada ao questionar abordagem de PMs contra um homem negro em 2020; tribunal paulista considerou que jovem não atrapalhou ação dos PMs nem incitou população contra eles

Sol denuncia que sofreu transfobia ao filmar abordagem policial truculenta | Foto: Arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu a veterinária Sol dos Santos Rocha, 27, das acusações de desobediência e favorecimento pessoal nesta segunda-feira (13/9). Em fevereiro de 2020, ela foi detida e teve sua identidade de gênero desrespeitada ao ter filmado uma ação policial em que um homem negro suspeito de furto de celular foi jogado ao chão e imobilizado por PMs que usavam golpe de enforcamento, o chamado “mata-leão”, no centro da capital paulista.

“Um dos policiais apontou para mim e falou: eu quero você, quero os seus documentos. Questionei o motivo e ele disse que eu estava fazendo prova e eu devia ir para a delegacia. Falei que tinha mais gente gravando e ele disse que queria os meus documentos”, contou Sol em entrevista à Ponte em março deste ano. “Falei que minha bolsa estava dentro do meu trabalho, aí ele me puxou pelo braço, me arrastou até o outro lado, passando por essa meia lua que os policiais tinham formado e me colocando do lado desse cara que estava sendo abordado”, completou.

Na época, a Polícia Civil e o Ministério Público alegaram que Sol estaria “incitando a população a soltar o detido” e que não quis se identificar quando abordada, o que acabou não se comprovando no decorrer do processo porque, nas filmagens, a veterinária grita aos PMs que “não precisa disso” e “ele [suspeito] já está imobilizado”, ao questionar sobre o mata-leão enquanto gravava a ação policial. No vídeo, ela também pede para ser abordada por uma mulher, o que é um direito, já que os dois PMs que decidiram abordá-la são homens. “O PM começou a me abordar de uma forma violenta, me dando chave de braço, me xingando, usando diversos termos transfóbicos, me chamando no masculino”, relatou à reportagem na ocasião.

Durante a realização de exame de corpo de delito, em março, Sol também denunciou à Ponte ter sofrido transfobia no IML (Instituto Médico Legal), quando médico legista Guilherme Bueno da Silveira, que teria se recusado a chamá-la pelo nome social e não teria encostado nela durante exame pericial .

O juiz Fabricio Reali Zia, do Jecrim (Juizado Especial Criminal), argumentou que Sol em nenhum momento deixou de se identificar e não teve a intenção de desobedecer à ordem de abordagem nem se aproximou ou atrapalhou a ação dos PMs ao deterem o suspeito. Ele a inocentou com base no artigo 386, parágrafo V, do Código de Processo Penal, que prevê a absolvição quando “não existir prova de ter o réu concorrido [participado] para a infração penal”. O Ministério Público também se manifestou pela absolvição por falta de provas.

À Ponte, o advogado de Sol, Marcelo Feller informou que vai entrar com embargos de declaração, ou seja, uma espécie de recurso em que o solicitante pede a correção ou explicação de algum ponto na decisão que não ficou claro, mas que não muda o resultado final de ter sido inocentada. No caso, ele argumenta que há provas de que Sol de fato não cometeu crime e que o parágrafo V que fundamenta a sentença seria “contraditório”. Ele solicitará a absolvição pelos parágrafos I (estar provada a inexistência do fato), II (não haver prova da existência do fato) ou III (não constituir o fato infração penal) do artigo 386.

“Foi um grande alívio, foi como tirar um peso das costas”, declarou Sol à reportagem. Ela destaca que a absolvição foi uma decisão importante e que pôde voltar a acreditar no sistema de justiça. “Eu fiquei muito apreensiva porque, apesar de eu estar exercendo o meu direito como cidadã de filmar uma abordagem policial e não ter cometido nenhum crime, a gente sabe para quais corpos pendem uma punição e o encarceramento, então sendo travesti negra periférica, passar por todo esse desgaste, é um muito cansativo e afeta a saúde mental”.

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Ela agora pretende retomar seu trabalho como veterinária. “Estou atuando de forma autônoma com maquiagem e estou me organizando para voltar a exercer a profissão, tentar seguir minha vida e conseguir viver me manter em plena pandemia”.

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