Vítima de transfobia da PM, Sol também teve seu nome negado no IML

    Perseguida por filmar violência policial, veterinária ainda teve que lidar com médico legista Guilherme Bueno da Silveira, que teria se recusado a chama-la pelo nome social e não teria encostado nela durante exame pericial – caso aconteceu em SP em fevereiro de 2020

    Sol sofreu transfobia ao filmar abordagem policial truculenta | Foto: Arquivo pessoal

    No mesmo dia que foi agredida pela Polícia Militar ao filmar uma abordagem violenta, em 5 de fevereiro de 2020, a médica veterinária Sol dos Santos Rocha, 27 anos, funcionária da Casa 1, também sofreu transfobia no IML (Instituto Médico Legal) no centro da cidade de São Paulo por parte do legista Guilherme Bueno da Silveira.

    No laudo de lesão corporal, o médico legista Guilherme Bueno da Silveira tratou Sol o tempo inteiro no masculino. No único momento que usa o nome “Sol”, Guilherme o faz a título de observação, alegando que a veterinária gostaria de ser tratada como Sol pela sua “opção sexual”, terminologia considerada preconceituosa e fora da questão, uma vez que Sol é travesti e o termo para definir o tratamento é “identidade de gênero”. Mesmo sem examinar Sol de perto, o médico afirma no documento que “não há elementos para concluir sobre a existência de lesões corporais relacionadas com o fato relatado”.

    Segundo registros do Conselho Rrgional de Medicina, Guilherme atua desde 2002 como médico do trabalho e médico legista. Ele é médico legista de 3ª classe na Secretaria da Segurança Pública desde 2017 e no mês de janeiro recebeu o equivalente a R$ 20 mil, com bônus e salário mensal de R$ 9 mil. Ele também atua no Hospital Santa Marcelina, da rede privada de saúde.

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    Em fevereiro de 2021, a Ponte contou em primeira mão que Sol havia sido levada para delegacia após flagrar abusos um ano antes, em fevereiro de 2020, e está sendo processada por desobediência e favorecimento pessoal. Além disso, os policiais militares a chamaram pelo nome antigo e não respeitaram sua identidade de gênero.

    Na ocasião, os PMs Gleydson Paiva de Sousa, 26 anos, e Jefferson Andrade Silva, 31 anos, da Força Tática do 11º Batalhão Metropolitano da PM paulista, relataram ao delegado Maurício de Thomazi Guedes, do 78º DP (Jardins), que Sol, ao filmar a prisão e agressão de um suspeito de roubo, começou a gritar para que os policiais soltassem o suspeito, causando aglomeração e “grande dificuldade à realização dos procedimentos” de modo que “não sabiam se essa parte estaria junto com o detido”.

    Com o caso vindo à tona, Sol, que é travesti negra, de origem periférica, se sentiu pronta para contar que também também sofreu transfobia no IML, quando foi fazer o exame de corpo de delito. “A minha advogada achou que era interessante [fazer o exame] para poder usar como prova”, conta Sol em entrevista à Ponte.

    “Chegando lá, minha advogada pediu para me chamarem pelo meu nome, Sol, e a recepcionista passou isso pro médico. Na sala de espera, porém, ele me chamou pelo nome que não me representa mais, na frente de todo mundo que tava ali esperando, fiquei morrendo de vergonha”.

    Sol narra que Vivian Marconi, sua advogada, tentou argumentar com o médico para que ele a chamasse pelo nome social. “Quando a gente entrou na sala, ele não demonstrou nenhuma alteração, nem vergonha. Ele falou: ‘ah, é o nome que tá no papel, vou chamar pelo nome que está aqui'”, denuncia. “E aí ele nem me avaliou, ele não nem avaliou os hematomas. Em nenhum momento ele tocou em mim”.

    A veterinária lembra que o médico ainda reforçou que se sentiu desconfortável de chamá-la de Sol. “Eu, sinceramente, já estava desestruturada, porque tinha acabado de sofrer uma grande agressão por policiais e cheguei no IML pra ser avaliada por um médico, que é uma pessoa formada pra avaliar pessoas, pra cuidar de pessoas e ele não soube me tratar, ele não soube falar comigo”.

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    Ela explica por que é transfobia não respeitar o nome de uma pessoa trans e travesti: “Muitas vezes o nome que é dado pra gente quando somos criança não nos representa e a gente muda pro nome que a gente se sente mais confortável. Só queria ser chamada por Sol e ainda até que eu vi que ele não se sentia confortável”.

    “Eu tinha sido agredida, arrastada, totalmente ofendida, verbalmente, fisicamente e eu tava indo lá pra receber laudo, sabe? De um médico, que se formou, estudou dez anos pra cuidar de pessoas e não sabia e não sabe lidar com uma pessoa trans”, aponta Sol.

    Vivian Marconi, uma das advogadas de Sol, conta que o laudo sequer foi anexado ao processo de Sol e que a defesa não conseguiu ter acesso ao documento. “Não fomos atrás disso, na época, porque sabíamos que o laudo não constataria nenhuma lesão pelo modo que o exame foi feito”.

    “Fomos atrás agora pelo desejo da Sol de representar contra esse médico. Mas, por conta das restrições sanitárias, não conseguimos pegar o laudo e nem pedir pro delegado que fizesse, porque o antigo delegado foi transferido e o que está no lugar não estava no 78º DP (Jardins) nesta sexta [19/3]”.

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    A advogada reforça que o médico não encostou em Sol durante o exame. “Ele não ficou perto dela. Então, eu fiquei com muita dúvida do que que ele tinha colocado naquele laudo. E aí eu perguntei se ele tinha colocado alguma coisa específica, e ele falou que tinha colocado”.

    “E aí eu perguntei se podia ver, mas, assim, foi ingenuidade da minha parte, mas eu perguntei, e ele já tinha feito o laudo, ele já tinha enviado no sistema, eu não estava querendo constranger ele. E aí ele veio com essa que eu tava querendo intimidar ele”.

    Vivian conta que, após os dois episódios transfóbicos no mesmo dia, Sol precisou lidar com o medo, a depressão e a insônia para conseguir denunciar os fatos, um ano depois. “Tudo isso foi potencializado pela injustiça de se ver como uma ré num processo totalmente forjado, ardilosamente enviesado por policiais e ainda em um contexto de pandemia”.

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    “Ela avaliou, na perspectiva dela, que era importante trazer esse outro caso à tona para que isso pudesse servir de exemplo para uma mudança significativa das estruturas estatais que estão postas. Porque, no mesmo dia, mais de um braço do Estado foi transfóbico com ela”.

    Outro lado

    Em nota, a Secretaria da Segurança Pública argumentou que o “médico não havia visto a vítima antes de chama-la, não tendo qualquer intenção em desrespeitá-la ou causar desconforto”, completando que o instituto “tem o compromisso em atender qualquer cidadão, sem qualquer tipo de discriminação”.

    De todo modo, apontou a pasta informou que o caso será apurado pelas vias administrativas para verificar se houve qualquer desconformidade no atendimento prestado. “Sobre o exame, após finalizado, ele é disponibilizado primeiramente para a autoridade responsável. Após relatar o inquérito, as partes podem solicitar no protocolo do IML a segunda via do laudo”.

    Após o envio da nota, a Ponte reforçou o pedido de entrevista com o médico, além de questionar como a SSP está treinando profissionais do Estado para atender a população trans e travesti.

    Uma segunda nota informou que “a Superintendência da Polícia Técnico-Científica trabalha para aprimorar o atendimento, garantir os direitos, o respeito e a proteção da comunidade LGBTQIA+. Na Acadepol houve o aumento da carga horária de matérias relacionadas aos Direitos Humanos. A SPTC esclarece que o profissional foi reorientado e todas as providências foram tomadas para evitar que esse equívoco seja cometido novamente.”

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