Após quase dois anos preso, júri popular reconheceu inocência de jovem negro nesta terça-feira (16); Ponte revelou inconsistências do caso em reportagem de 2022
O Tribunal de Justiça da Bahia absolveu, nesta terça-feira (16/5), Túlio de Jesus Silva, de 25 anos, de uma acusação de homicídio que aconteceu em agosto de 2021, na cidade de Pintadas, após ter sido submetido a um reconhecimento irregular. O jovem negro permaneceu quase dois anos preso até ser levado a júri popular.
Durante todo esse período, a Polícia Civil e o Ministério Público estadual (MPBA) sustentaram que Túlio tinha matado a tiros a gerente de um bar, que também funcionava como bordel, e roubado clientes do local, apenas com base em reconhecimentos que se descobriram irregulares só quando as cinco testemunhas foram ouvidas durante as audiências.
Contudo, uma das principais testemunhas denunciou neste ano que foi agredida e coagida por policiais a reconhecer o jovem como um dos dois autores do crime. No julgamento que aconteceu nesta semana, a própria Promotoria que acusou Túlio pelos crimes resolveu pedir que os jurados o absolvessem.
“O pedido do MP se baseou na mudança do depoimento da principal testemunha que apontava Túlio como autor dos disparos. Ela mudou sua versão dos fatos semanas antes do Júri, já transcorridas as etapas de inquérito, denúncia e mesmo de pronúncia, quando a Justiça decide levar o réu a Júri popular”, disse à Ponte a assessoria do órgão. “A ausência de indícios de autoria, decorrente dessa mudança, levou o MP a pedir a absolvição. Não haverá recurso da decisão”, completou a nota.
A reportagem não teve acesso aos desdobramentos da íntegra do processo pois poucos dias antes o juiz Marcon Roubert da Silva decretou o sigilo dos autos. A sentença de absolvição também não foi disponibilizada pelo tribunal com a mesma justificativa.
Para a defesa de Túlio, porém, todo o inquérito já indicava a fragilidade das acusações desde o início, como a Ponte contou no ano passado. “Antes de a gente assumir a defesa, a Defensoria Pública fez um trabalho de investigação defensiva, muito bem feito, inclusive, que demonstraram através de câmeras de segurança conseguidas por familiares que Túlio estava em outro local da cidade [no momento do crime]”, aponta Caio Guerra Gurgel, um dos advogados que representa o rapaz.
“As testemunhas disseram que os possíveis criminosos que chegaram no local onde houve o homicídio estavam de motocicleta, mas Túlio passa de bicicleta em outro local na cidade, em horário praticamente o mesmo de quando aconteceu o crime”, prosseguiu.
Na época, a família conseguiu imagens da câmera de segurança de uma loja na Avenida Osório Batista em que Túlio aparece de bicicleta às 19h26 e depois às 19h50, como se tivesse indo a um local e retornando em seguida. As testemunhas do crime disseram que o ataque aconteceu entre 20h e 21h.
O bar está localizado numa área rural, distante 1,7 quilômetro da casa de Túlio. Naquele dia, a mãe dele contou à Ponte que ele ficou a tarde toda na residência e saiu à noite de bicicleta para encontrar a namorada na Praça Anacleto Gonçalves, retornando por volta de 20h. “Depois disso, ele não saiu mais de casa”, afirmou. A companheira dele confirmou em audiência que eles se encontraram por volta das 19h30, permaneceram na praça por cerca de 20 minutos e comeram um lanche. Ele retornou para casa e ela foi na casa de uma amiga antes de encontrá-lo novamente já na residência da família.
No dia seguinte ao crime, a mãe de Túlio relatou que ficou surpresa quando o delegado da cidade e dois policiais da 98ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) apareceram na sua casa e levaram o jovem sem dizer o motivo.
Na delegacia, ele foi submetido a reconhecimento por quatro pessoas. Um ponto que chama a atenção é que todos os autos de reconhecimento têm a mesma descrição das características dos assaltantes e é indicado que foram colocadas pessoas parecidas numa sala para serem reconhecidas: o primeiro seria de “cor parda (moreno)”, estatura alta, aproximadamente 1,80m, cabelos curtos pretos cacheados, compleição física magro, aparentando 22 anos, e o segundo elemento como sendo de cor negra, estatura baixa, compleição física normal, medindo aproximadamente 1,70m, aparentando ter idade de 38 anos”.
Pelo documento, em tese, as normas do artigo 226 do Código de Processo Penal estariam sendo seguidas: primeiro é feita uma descrição, depois apresentadas pessoas com características semelhantes para o reconhecimento. Porém, não foi o que aconteceu, segundo os depoimentos durante as audiências.
Tanto os policiais militares quanto as testemunhas e o próprio Tulio disseram que ele foi colocado sozinho para ser reconhecido e que foi visto algemado na delegacia pelas testemunhas. Além disso, primeiro teria ocorrido o reconhecimento fotográfico no local do crime, depois na delegacia e só no dia seguinte Tulio foi preso e apresentado às testemunhas. Ele também relatou ter sido agredido em audiência de custódia.
No entanto, apesar de Ministério Público estadual, na figura da promotora Laise Carneiro, e o juiz Marcon Roubert da Silva reconhecerem que a prisão não aconteceu em flagrante e que ocorreu de maneira ilegal, ou seja, Tulio não foi pego com objetos do crime ou em uma perseguição policial logo após o homicídio, entenderam que ele deveria ser mantido preso por questão de “ordem pública” por ter antecedentes por furto. O MP e o juiz também não buscaram apurar a denúncia de agressão na audiência de custódia.
Apesar de todas as inconsistências, o juiz Roubert da Silva determinou que Túlio fosse julgado por um júri popular, que é formado por um corpo de sete jurados provenientes da sociedade civil. Durante todo o processo, o rapaz permaneceu preso. Primeiro, na carceragem da delegacia de Ipirá, cidade vizinha a Pintadas, e depois na Penitenciária de Feira de Santana, todas no interior da Bahia. Com a sentença de absolvição, ele foi imediatamente colocado em liberdade.
O advogado afirma que ainda vai conversar com a família sobre a possibilidade de ingresso de uma ação judicial com pedido de indenização ao Estado. “É importante ressaltar que houve reconhecimento completamente irregular e isso tem sido veiculado nos meios de comunicação, de como esses reconhecimentos têm colocado inocentes na cadeia, e Túlio foi um deles”, destaca Caio Gurgel.