Sergio Nascimento, 21, foi solto após vítima não reconhecê-lo como um dos três assaltantes que levaram seu carro em janeiro, na zona sul da capital; Ponte buscou câmera que mostra suspeito do crime e mostrou que Polícia Civil não investigou caso
“Graças a Deus” foi a primeira frase que a cozinheira Janete de Jesus Nascimento, 42, disse à Ponte ao se sentir aliviada de levar o filho para a casa. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou, em 12 de maio, a soltura do motoboy Sergio Nascimento de Jesus, 21, que foi preso após um reconhecimento irregular e acusado de roubar um carro no bairro da Vila Firmiano Pinto, na zona sul da capital, em 29 de dezembro de 2021.
A decisão aconteceu em uma das audiências do processo. Ao acolher o pedido de liberdade feito pela Defensoria Pública, a juíza Giovana Furtado de Oliveira, da 24ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda, considerou que a vítima não reconheceu Sergio como um dos três assaltantes que a roubaram, além de que ele não foi preso com nenhum objeto do roubo e sempre negou ter sido autor do crime. “Da mesma forma, tem-se que restaram enfraquecidos os indícios de autoria que apontam para o réu, assim esvaziando o fumus comissi delicti [existência de crime e indícios de autoria, em latim], razão pela qual revogo a prisão preventiva do acusado, que não tem antecedentes criminais, determinando a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor”, escreveu a magistrada.
O Ministério Público se manifestou contra a soltura. “Permanecem íntegros os requisitos para a decretação da prisão preventiva do réu, que, muito embora não tenha sido reconhecido pela vítima, nesta oportunidade, foi apontado pelas testemunhas, policiais militares, como sendo a pessoa que foi detida nas proximidades do local e reconhecida pela vítima, poucas horas depois dos fatos, como sendo o autor do roubo perpetrado”, argumentou o promotor Valcir Paulo Kobori. As testemunhas mencionadas no caso são os familiares de Sergio que confirmaram a abordagem policial, não o roubo.
A Ponte revelou o caso em janeiro deste ano, com diversas irregularidades e falta de investigação da Polícia Civil. Segundo a família, Sergio havia saído da casa do irmão para comprar coxinha quando foi abordado, a 400 metros do local, por policiais militares no trajeto e reconhecido sozinho pela vítima, sendo que o boletim de ocorrência não continha nenhum tipo de descrição das características dos assaltantes. O motivo que os policiais apresentaram para abordar Sergio seria ele ter transparecido “nervosismo” quando a viatura passou.
Esses dois pontos ferem o artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê como o reconhecimento de suspeitos deve ser realizado: a vítima descreve as características, depois são selecionadas pessoas que tenham semelhanças com as descrições, as quais são colocadas juntas, e é feito o reconhecimento. Reconhecer por foto antes de descrever, apresentar apenas um retrato ou uma única pessoa para a vítima são formas que acabam enviesando e contaminando o procedimento, como a Ponte já denunciou em diversos casos e entrevistas com especialistas que pesquisam o assunto.
O veículo da vítima foi encontrado estacionado e trancado na Rua Jaci, 163, no bairro da Saúde, e foi recuperado. O local fica a cerca de 1,4 quilômetro da Rua Américo Ribeiro, onde o motoboy foi abordado pelos PMs. A reportagem percorreu a rua onde o Fiat Toro foi encontrado na qual estão situados diversos prédios residenciais com câmeras de segurança. Um deles cedeu as imagens e mostra o suspeito do crime estacionando o carro e deixando o local a pé. A Polícia Civil sequer foi atrás de registros e também não buscou por testemunhas.
No depoimento à Polícia Civil, a vítima, que é médico, não informa o horário em que o crime aconteceu. O próprio boletim diz que a ocorrência foi 22h, mas não especifica se foi o horário do roubo ou da abordagem a Sergio. A vítima disse que havia estacionado o carro em frente de casa para abrir o portão da garagem quando foi abordado por três homens, dois deles armados, exigindo que saísse do veículo e entregasse seus pertences. Ele aponta que um o abordou pela janela dianteira esquerda, outro pela janela dianteira direita e o terceiro ficou na frente do automóvel, sendo que os que entraram pelas laterais que estavam armados, mas sem especificar que tipo de arma. O médico entregou seu relógio e o celular ficou no painel do Fiat Toro – os dois objetos não foram encontrados. O trio fugiu.
Ele afirmou que pediu ajuda a um vizinho, que chamou a Polícia Militar e passou as características dos assaltantes – as quais não são descritas em nenhum registro do inquérito. De acordo com ele, uma viatura foi até o local “e, nesse momento, tomou conhecimento de que haviam localizado uma pessoa com as características de um dos rapazes que o roubou, assim como que o seu automóvel fora localizado”. “Assim, foi até sua casa para pegar a chave reserva do automóvel e conduziu-o para o Distrito Policial junto com os militares”, prossegue o depoimento. O BO informa que Sergio foi reconhecido pela vítima na delegacia como um dos assaltantes, sendo aquele que “fez a abordagem pelo lado do motorista (dianteiro direito), apontando uma arma de fogo para sua cabeça e exigindo que saísse do automóvel”.
Os familiares de Sergio disseram à reportagem na época que só souberam que ele estava detido quando acionaram a PM, já que ele não tinha voltado para casa. “A gente entrou em desespero porque ele não aparecia e começamos a procurar”, contou Rodrigo, irmão do motoboy. “Daí a gente ligou para o 190 e disseram para a gente ir na delegacia”.
“Só consegui ver meu filho na cela chorando dizendo que não fez nada”, lamentou Janete, na ocasião. Em depoimento, Sergio negou que tinha roubado o carro e declarou que tinha saído da casa do irmão para ir a uma unidade da rede de restaurantes Ragazzo. “Eu fiquei perguntando lá como que a prisão foi em flagrante se ele não tinha nada, como que uma pessoa fica presa só porque outra acusou? Mas é preto e pobre, não querem nem saber”, criticou a cozinheira.
Em 12 de janeiro, sem questionar nenhum desses detalhes sobre o caso, o promotor Marcelo Luiz Barone denunciou o motoboy por roubo, reproduzindo o relatório da Polícia Civil. A denúncia foi aceita pelo juiz Paulo Fernando Deroma De Mello cinco dias depois. O processo segue em andamento e a família diz que vai provar a inocência do jovem. Nem a Polícia Civil nem o Ministério Público Estadual responderam os questionamentos da reportagem na época sobre a condução do inquérito e oferecimento da denúncia.