Justiça ignora álibi e condena jovem negro reconhecido por foto do WhatsApp

Preso há 11 meses, Kaick Lemes Santana foi acusado de participar de um roubo que teve troca de tiros em São Bernardo do Campo (SP); para especialista, reconhecimento não é prova suficiente

Kaick Lemes Santana está preso desde o dia 15 de dezembro de 2021 no CDP de São Bernardo do Campo. | Foto: arquivo pessoal

O Natal da família Lemes Santana não será o mesmo pelo segundo ano consecutivo. “A minha vida é só chorar dia e noite, mal consigo trabalhar porque é difícil. Eu estou fazendo um apelo mesmo para todos porque a gente não tem mais o que fazer”, lamenta a auxiliar de limpeza Carminda Lemes Farias, 47, mãe de Kaick Lemes Santana, jovem negro de 20 anos. 

Desde 15 de dezembro de 2021, Kaick está preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) de São Bernardo do Campo acusado de participar de um roubo que ocorreu em novembro na cidade do ABC paulista e terminou em troca de tiros. Apesar dos esforços de familiares e amigos em provar sua inocência, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) condenou o jovem a 15 anos de prisão de pelo crime, baseando-se em reconhecimentos fotográfico e pessoal que não seguiram as regras previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).

“É uma injustiça muito grande. Meu filho nunca teve passagem, nunca fez nada”, afirma a mãe de Kaick. Abalada emocionalmente pela situação, Carminda conta que até hoje não teve forças para ir visitar o filho no CDP e que não tem mais um fim de ano em paz. “Nós viemos de uma família simples, mas eu sempre eduquei meus filhos. Ele nunca fez nada, é um menino direito, tanto que o bairro inteiro está inconformado porque todo mundo que conhece meu filho sabe que jamais estaria nesse lugar fazendo isso.”

Kaick estava com sua mãe, seu pai e a irmã mais nova em casa, na região do Sacomã, na zona sul da capital paulista, quando por volta das 6h da manhã policiais civis chegaram para cumprir o mandado de prisão um mês após o crime. Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Sandro Mazzo, na noite do dia 13 de novembro de 2021, o policial civil Cleber Rodrigues Gimenez flagrou uma tentativa de roubo a um casal na rua Mário Fongaro, próximo à Rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo, quando saía de um estacionamento.

Por volta das 20h30, as vítimas estavam em uma Mercedes Benz estacionada na rua quando observaram que uma moto com dois rapazes de capacete se aproximou do veículo. Segundo os relatos, Vitor de Souza Ocanha, 19 anos, conduzia a moto e o outro indivíduo, na garupa, estava armado e determinou que o casal passasse todos os pertences. O policial Cleber relata que, nesse momento, interviu ordenando que os assaltantes levantassem a mão, mas que em seguida o rapaz armado efetuou disparos em sua direção e houve troca de tiros.

Ambos os assaltantes fugiram do local abandonando o revólver calibre .38, da Taurus, utilizado no crime, a moto e uma jaqueta preta com perfurações de bala que pertenciam ao homem que estava armado. Durante as diligências, Vitor foi localizado sem ferimentos pelo policial e levado para a delegacia, onde foi preso em flagrante após ser reconhecido pelas vítimas. Foram apreendidas a moto, a arma, as munições, um rolo de fita isolante, dois capacetes, o telefone celular de Vitor, a jaqueta preta e R$ 120 em espécie.

À Ponte, Vanderlei Santana, 43, autônomo e pai de Kaick, conta que naquela noite o filho estava em casa com a família. Sem emprego fixo, o jovem fazia “bicos” de marcenaria em lojas de veículos e cuidava da irmã mais nova, de 9 anos. “Ele estava jantando, mexendo nas configurações do meu celular”, recorda Vanderlei. Depois das 20h, Kaick passou a receber várias ligações do colega Vitor, que mora na mesma rua que eles, pedindo ajuda. Em seguida, pegou uma moto emprestada de um outro colega na rua, foi atrás de Vitor mas não o encontrou. 

Já no 2º DP de São Bernardo do Campo, as vítimas descreveram as características de ambos os homens que as abordaram e disseram que o rapaz que estava armado era “moreno, forte, trajava calça e camiseta preta e estava de capacete preto”. Segundo a polícia, ainda na delegacia, o celular de Vitor recebeu chamadas e mensagens no WhatsApp de um contato salvo como “Cebola”, que era do colega Kaick. 

Com o celular de Vitor em mãos, o policial Cleber mostrou a foto de Kaick no WhatsApp às vítimas, que reconheceram o jovem como sendo o segundo homem que participou do roubo. Quase um mês depois, Kaick foi levado para a delegacia e submetido a um reconhecimento pessoal irregular, ficando somente com uma outra pessoa diante das vítimas.

Com isso, a promotora Roseli Naldi Souza, do Ministério Público de São Paulo (MPSP), se manifestou favorável à prisão preventiva e denunciou Vitor e Kaick por roubo, receptação e adulteração de placa de veículo. No mesmo mês, a juíza Fernanda Alves da Rocha Branco de Oliva Politi, da 2ª Vara Criminal do TJSP, decretou a prisão de ambos.

Lacunas na investigação

No decorrer deste ano, a Polícia Civil pediu perícia da arma, da jaqueta, da fita isolante recolhidas no local do roubo e também do celular de Kaick, além de colher imagens de câmeras de segurança da região que registraram a ação. No entanto, a perícia no celular de Vitor não foi pedida. O Instituto de Criminalística constatou 14 disparos e apontou que não haviam ligações realizadas no WhatsApp por Kaick logo após o horário do crime. Porém, uma foto encontrada no celular, em que ele segura uma pistola airsoft, tirada no mês de outubro, foi considerada pela polícia como um outro indício de sua participação no roubo. 

A família de Kaick contesta as acusações, diz que Vitor teria ligado para outras duas pessoas e reitera que Kaick é inocente. “A prova das perfurações, das manchas de sangue… eu falei no dia da audiência para o policial que se eles investigassem direito, iam chegar na pessoa. Sabe o que ele falou para mim? ‘Eu provei que é seu filho, agora prove você que não é’”, conta Vanderlei. 

A defesa de Kaick apontou que ele não tinha qualquer indício de que foi baleado e apresentou a localização das chamadas realizadas em seu telefone celular, que mostraram que estava a mais de 20 km de onde o crime ocorreu, na Rua Inhambu, na região de Moema, zona sul de São Paulo. Apesar disso, o jovem foi condenado pela juíza Marta Oliveira de Sá, do TJ-SP, junto com Vitor e agora aguarda uma decisão sobre o recurso de apelação, na tentativa de reverter a sentença.

À esquerda, fotografias feitas por peritos mostram uma jaqueta preta com perfurações de bala; à direita, durante as audiências, nenhum indício de que Kaick foi baleado no abdome. | Foto: reprodução

“Nós estávamos até esperançosos porque nós tínhamos bastante provas, ficamos naquela ansiedade, e a única coisa que prevaleceu foi a [palavra da] vítima. É um sentimento de injustiça muito grande”, desabafa Vanderlei. Ele conta que Kaick estava prestes a tirar a habilitação e planejava comprar uma moto para trabalhar. 

“Ele fala assim ‘pai, eu não sei o que eu estou fazendo aqui’. Ele acorda de madrugada, conversa com o pessoal e fica tentando entender”, relata Vanderlei sobre os últimos meses. “A gente fica sem palavras e sem chão para dar um conforto vendo a esperança dele acabando”, prossegue. 

Em um vídeo publicado no Instagram, Kauê Santana, 26, analista de relacionamento e primo de Kaick, cobra justiça pelo primo e apresenta algumas provas levantadas pela defesa. “É uma pessoa muito querida da família, principalmente comigo. É alguém que estava muito próximo, saia junto”, lembra. “Eu acho que é negligência mesmo, porque tudo o que a gente poderia fazer, a gente fez.”

Reconhecimento ‘contaminado’

A advogada criminalista Fernanda Peron Geraldini, integrante do apoio jurídico da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo a pedido da Ponte e destaca no caso uma prática recorrente da polícia que acabam nas prisões sem provas: o reconhecimento fotográfico seguido de um reconhecimento pessoal. Segundo ela, esse método aumenta a chance das vítimas apontarem a pessoa que viram anteriormente por foto.

“Nesse caso, o fato de as vítimas terem tido contato com uma foto de WhatsApp pode ter contaminado totalmente o reconhecimento pessoal feito posteriormente. Isso porque a memória humana permite interferência de fatores externos, isto é, a vítima de um crime pode acabar confundindo detalhes dos fatos ao ser exposta a outras imagens, como rostos e lugares”, explica.

Para ela, o reconhecimento também pode ter sido influenciado por estereótipos racistas que existem sobre jovens periféricos, baseando-se na cor da pele, cortes de cabelo e estilos de roupa. “O reconhecimento pessoal possui diversas formalidades legais destinadas a dar mais segurança, mas hoje já se sabe que mesmo essas regras não são suficientes para garantir um resultado acertado”, afirma.

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Uma decisão de 2020 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já determinou que os reconhecimentos fotográficos não podem ser provas únicas para condenações. Mas, passados dois anos, a decisão pouco repercutiu nas justiças estaduais.

Além disso, a falta de uma investigação adequada pela polícia e pelo MP é outro problema que prejudica os processos. No caso do Kaick, Giraldini acredita que a foto achada na perícia, apesar de não ser prova de roubo, pode ter pesado na sentença. “Para o juiz, é a certeza de que o rapaz é bandido, e então as provas do crime em si perdem relevância. É como se o julgamento fosse sobre a pessoa de Kaick, não sobre o roubo”, observa.

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) e a Polícia Civil sobre os procedimentos adotados pela delegacia de São Bernardo do Campo para realizar reconhecimentos e sobre a jaqueta com perfurações de bala encontrada no local do crime. A pasta encaminhou a seguinte resposta:

“A Polícia Civil de São Bernardo do Campo esclarece que todos os procedimentos obedeceram às regras processuais. Na ocasião, as vítimas da tentativa de roubo foram pessoalmente na Delegacia, onde reconheceram o homem citado na reportagem como sendo um dos assaltantes.”

Também foi solicitada uma entrevista com o policial civil Cleber Rodrigues Gimenez, mas não obtivemos retorno.

O que diz o MP

Questionado pela Ponte em relação às irregularidades dos reconhecimentos, o Ministério Público não se manifestou até a publicação desta reportagem.

O que diz a Justiça

Em nota, o TJ informou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”. 

“Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”

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