Policiais alegaram averiguar denúncia anônima de tráfico de drogas; juiz considerou que cabo e sargento tentaram agir como Polícia Civil apesar de não terem prerrogativa de investigar crimes
Um juiz da Vara de Plantão de Taubaté, no interior paulista, considerou ilegal a prisão de uma mulher de 30 anos após policiais militares entrarem em seu apartamento sem mandado para averiguar uma denúncia anônima de tráfico de drogas.
O caso aconteceu em Pindamonhangaba, cidade vizinha, na última quarta-feira (6/1). De acordo com o boletim de ocorrência, o sargento Juarez José Santos Duarte e o cabo Givanildo dos Santos Justo, da 2ª Cia do 5º Batalhão da PM, relataram que por volta das 17h50 estavam atuando numa ação chamada “Operação Pindamonhangaba Segura” e que receberam uma denúncia de que um apartamento de um condomínio residencial seria utilizado como depósito de entorpecentes e arma de fogo. Ao chegarem no prédio, afirmam que viram a porta do edifício “entreaberta” bem como a do apartamento denunciado, sendo que apareceu uma mulher que disse ser moradora do local junto com uma amiga.
Os PMs afirmam que ela autorizou a entrada deles e que, ao realizarem as buscas, encontraram uma mochila em cima de uma cama com 49 invólucros de crack, nove invólucros de maconha e cinco embalagens com cocaína. Na cama ainda teria um pé de meia com cinco munições de calibre 38 e, embaixo do colchão, dentro de uma sacola, mais 46 porções de crack, 20 de maconha e sete de cocaína. Dentro do guarda-roupa, descreveram, uma arma de calibre 38 com numeração raspada teria sido encontrada entre roupas infantis. Questionada, a mulher disse, na versão dos policiais, que a mochila pertenceria a um ex-namorado e que não sabia informar onde a amiga havia ido.
Na delegacia de plantão da cidade, a mulher afirmou que quando chegou ao seu apartamento, os policiais já estavam dentro do local. Ela declarou que havia arrumado a mochila “há dias” com roupas do ex-namorado para devolvê-lo e que mora com a amiga e seis crianças, sendo duas delas seus filhos.
O delegado Felipe de Bona Moreira entendeu que havia ocorrido uma prisão em flagrante e a indiciou por tráfico de drogas e posse ilegal de arma.
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Na audiência de custódia, ocorrida no dia seguinte, o promotor Tiago Oliveira Prates da Fonseca também seguiu o entendimento do delegado e se manifestou a favor de transformar a prisão em flagrante em prisão preventiva. O juiz Pedro Henrique do Nascimento Oliveira, no entanto, considerou que os policiais agiram de forma ilegal ao terem feito a prisão sem um mandado judicial.
O magistrado argumenta que a situação não se caracteriza em um flagrante e que os PMs deveriam ter acionado a Polícia Civil ou o Ministério Público para obtenção de ordem judicial de busca e apreensão. “A diligência não se originou de observação repentina de situação flagrancial, mas sim de planejamento metódico e reunião organizada de informações acerca de práticas delitivas”, escreveu.
De acordo com Oliveira, os policiais militares acabaram tomando para si uma atribuição que não é da corporação e sim da Polícia Civil, que é responsável por investigar crimes, e considerou “grave” a obtenção de prova por meio ilegal, decidindo soltar a mulher para que ela responda o processo em liberdade.
“A opção unilateral dos policiais de agir sem mandado judicial, no período noturno e com base unicamente em informações anônimas é absolutamente írrita aos princípios básicos de um Estado Democrático de Direito, não podendo contar com a chancela do órgão jurisdicional, sob pena de rebaixamento do próprio Poder Judiciário, que estaria abrindo mão de seu poder-dever constitucional de garantidor dos direitos fundamentais em favor do juízo exclusivo de policiais militares que não contam com legitimação constitucional nem preparação técnica jurídica para tal mister”, justificou o magistrado.
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Na avaliação de três especialistas ouvidos pela Ponte, a decisão do juiz foi correta. Para o doutor em direito do Estado pela Universidade de Brasília e pesquisador do grupo de criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana Felipe da Silva Freitas, a prisão em flagrante, prevista entre os artigos 301 e 310 do Código de Processo Penal, é um tipo excepcional. “Consiste na hipótese de prender quem esteja cometendo uma infração penal, quem acabe de cometê-la, quem é perseguido em situação que faça presumir ser autor da infração ou que é encontrado, logo depois da infração”, explica.
Freitas também destaca que “se se tratava de um ponto regular de venda de drogas não havia risco iminente de fuga e nem ameaça à integridade física ou a vida de ninguém” e que a Polícia Civil ou o Ministério Público poderiam ter sido comunicados.
Outro ponto evidenciado pelo pesquisador é de os policiais terem entrado na residência sem ordem judicial, tendo visto com estranheza a alegação de a porta de um suposto local de venda de drogas estar entreaberta. “A regra geral prevista pela Constituição é que o domicílio é inviolável, assim, o ingresso em domicílio sem mandado é situação excepcionalíssima que deve ser acompanhada de fortes elementos apresentados pela polícia de que de fato tratava-se de prisão em flagrante ou de entrada franqueada, que é quando o morador autoriza a entrada da polícia”, avalia.
Freitas também considerou como “gravíssima violação da lógica do sistema” o delegado e o promotor terem legitimado a atuação dos policiais. “Se o MP e o juiz limitarem-se a repetir o que os policiais militares disseram no relato da operação não há porque essas instituições existirem”, critica.
O tenente-coronel da reserva da PM paulista, mestre em Direitos Humanos e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo Adilson Paes de Souza concorda e considera que a ação dos policiais foi “abusiva”. “Não compete à Polícia Militar exercer atividades de polícia judiciária, de investigação, busca e apreensão”, analisa.
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Além disso, o tenente-coronel destaca haver uma “confusão de papéis” entre as polícias. “A Polícia Civil e a Polícia Militar não se confiam, não se dão bem e competem uma com a outra. Nunca vão [conseguir] trabalhar em conjunto”, pondera.
Para o professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani, ao não seguirem os ditames legais, os policiais acabam beneficiando quem pode vir a cometer crimes. “O juiz constatou que a Polícia Militar estava tentando usurpar de uma função que não lhe cabe e é muito perigoso quando uma polícia decide que ela tem o poder de decidir o que pode fazer ou não ao arrepio da lei”, pontua. “É delicado porque é uma ação dessa que pode deixar uma pessoa com envolvimento com tráfico na rua”, complementa.
O que dizem polícia e MP
A Ponte solicitou entrevista com os policiais militares, o delegado e o promotor, mas as assessorias de imprensa dos órgãos não responderam até a publicação desta reportagem.
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