Justiça manda soltar Victor, motoboy negro que foi preso ao denunciar furto da própria moto

Juíza considerou que Victor Gabriel não tem antecedentes criminais e que o auto de reconhecimento por foto não continha as características do rapaz; “tenho fé em Deus que eu vou ser absolvido”, diz o jovem

Família de Victor Gabriel fez bolo e estendeu cartazes para comemorar a liberdade do rapaz nesta quinta-feira (10/6) | Foto: arquivo pessoal

“Foi um dos momentos mais felizes da minha vida depois de 40 dias de sofrimento”, desabafa a professora Amanda Frigatti Nogueira Albornoz, 42, quando viu o irmão Victor Gabriel de Almeida Frigatti, 22, sair pela porta do Centro de Detenção Provisória de Diadema (Grande SP). O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a liberdade do rapaz nesta quarta-feira (9/6), após a Defensoria Pública entrar com um pedido de soltura.

O motoboy foi preso em abril deste ano quando foi a uma base da Polícia Militar do bairro de Cocaia, na zona sul da capital, para denunciar o furto de sua moto após tê-la emprestado a um conhecido. Ele acabou acusado de participar de um roubo de celular no qual o veículo foi utilizado horas depois na região do Grajaú, também na zona sul, e foi reconhecido de forma irregular, por foto.

A juíza Adriana Costa, da 32ª Vara Criminal do Foro Central Criminal da Barra Funda, acatou a solicitação da Defensoria Pública para que Victor respondesse o processo em liberdade. A reportagem da Ponte que contou a história, em maio, foi usada para embasar a petição da defensora Juliana do Val Ribeiro.

A magistrada considerou que o rapaz não tem antecedentes criminais, sendo que ele foi detido na delegacia após ter procurado um posto da PM para registrar o furto da própria moto e argumentou que no auto de reconhecimento fotográfico “não constam os sinais característicos que teriam sido descritos pela vítima quando o apontou como autor do delito”. Com isso, ela determinou que Victor cumpra medidas cautelares enquanto o processo corre: compareça ao juízo a cada dois meses, manter o endereço residencial atualizado, não sair da cidade sem autorização e permanecer em casa durante à noite.

“Quando eu fiquei sabendo que chegou o alvará, eu quase caí, minha perna ficou bamba, chorei que nem criança”, contou Victor à Ponte. “Eu ainda não estou acreditando”. Amanda registrou o momento em que a mãe, Eva Frigatti, muito emocionada abraça o filho. “Foi muito difícil para gente, mas principalmente para ela ficar longe do Gabriel”, aponta. A família recebeu o jovem com cartazes e um bolo para comemorar o retorno para casa. “A gente sente um misto de alívio mas também de revolta por tudo o que ele está passando”, lamenta.

Victor disse que ficou pelo menos 11 dias sem se alimentar no CDP de Belém, para onde foi levado antes de ser transferido para Diadema. “Me entregaram comida azeda, com bicho, era difícil tomar banho e acabei tendo uma coceira por lá”, relata. “Em Diadema, a situação foi um pouco melhor porque me entregaram cobertor, roupas, o kit completo, mas pensei em muita besteira, com medo de ficar preso mesmo porque isso acabou com a minha vida”.

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A versão da polícia é de que os PMs Leonardo Rodrigues Aires e Gabriel dos Santos realizavam um patrulhamento quando tiveram notícia do roubo que havia ocorrido na rua Vicente Ascêncio, onde houve uma colisão de veículos. O boletim de ocorrência, registrado no 101º DP (Jardim Imbuias) narra que Yago Melo Nunes Almeida, 27, e mais um homem haviam roubado o celular de um motorista de aplicativo utilizando uma motocicleta e teria sido usava uma arma de brinquedo.

A vítima declarou que o garupa era “magro e branco” e portava uma arma e o condutor da moto era “pardo, usava óculos, alto e forte” sendo que exigiram dinheiro e o garupa roubou seu celular. O motorista de aplicativo resolveu seguir a motocicleta em seguida e quando chegou em uma rua cortada por uma viela, os autores do crime viraram a motocicleta para a viela “com tudo”. Assim, a vítima bateu o seu carro em uma “tartaruga” (lombada) que havia ali e em seguida bateu o carro na traseira da motocicleta. O airbag do carro teria estourado e a vítima desceu do veículo sendo ajudada por pessoas que circulavam no local.

Victor contou à reportagem que estava na travessa Arroio Uirapuru com amigos conversando na hora em que o crime ocorreu na rua Vicente Ascêncio e logo ficou sabendo do acidente. Ele havia emprestado a moto a Yago horas antes. “Veio um outro amigo meu avisar e eu fiquei em choque, subi para a base da PM para prestar queixa, mas não quiseram nem ouvir, disseram que eu fui reconhecido pela vítima, e me levaram para a 101 [delegacia]”. Ele também afirma que em nenhum momento confessou o crime, como os policiais apontaram. “Lá [na delegacia] não quiseram nem me ouvir”.

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O motoboy afirma que ficou pelo menos quatro horas algemado na viatura e que os policiais tiraram diversas fotos dele. “Não teve nada de me colocar na salinha”, disse. No boletim de ocorrência, é apontado que foi mostrada foto de Victor, que foi reconhecida pela vítima, embora essa ação contrarie os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal, no qual a vítima deve descrever as características do suposto autor do crime e depois devem ser apresentadas pessoas com características semelhantes para que a pessoa faça o reconhecimento.

Por causa do acidente com a moto, Yago foi hospitalizado e depois encaminhado ao CDP. De acordo com o relatório de saúde da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), Yago teve fraturas na diáfase da tíbia, do sacro e do púbis, tendo sido submetido a cirurgia, e está usando um fixador circular tipo Ilizarov em membro inferior esquerdo e fixador externo transarticular em bacia. Com isso, ele tem dificuldade de locomoção para necessidades fisiológicas e de higiene. A juíza Adriana Costa determinou o cumprimento de prisão domiciliar a Yago por conta dessas fraturas, a pedido da defesa dele. Ela também analisou fotos do acidente.

Imagens da motocicleta após o acidente levantadas pela defesa de Victor | Fotos: Reprodução

Para Victor, esse também é um ponto de contradição no caso. “Eu encontrei o Yago no CDP e ele não sai da cama, tem dificuldade para fazer qualquer coisa, e o que mais me indigna é que como me acusaram se com a gravidade desse acidente eu não tive um arranhão?”, contesta. Ele também declarou que Yago não o incriminou. “Ele me disse que desmaiou na hora do acidente, só acordou depois de dois dias no hospital”.

Na mesma noite do crime, Amanda contou à reportagem que policiais foram na casa de sua mãe, por volta das 23h50 de 29 de abril. “Pediram para entrar, disseram que estavam procurando arma, que o Victor Gabriel havia sido encontrado na cena de um crime, que ele estava fazendo assaltos”. Ela também apontou que na rua onde aconteceu o acidente também não há as “tartarugas” descritas no BO.

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Agora, a família busca levantar provas para provar a inocência de Victor. “Eu tenho fé em Deus que eu vou ser absolvido”, sonha o rapaz.

O que diz a SAP

A Ponte procurou a assessoria de imprensa da SAP a respeito das condições do CDP Belém. Em nota*, a pasta declarou que “as denúncias não procedem” e que alimentação é fornecida bem como as celas são esterilizadas, havendo entrega de medicamentos caso tenha alguma ocorrência de escabiose (sarna). “A alimentação dos Centros de Detenção Provisória de Chácara Belém I e II é adquirida de empresa terceirizada e fiscalizada na chegada, antes de ser servida aos custodiados. Havendo qualquer irregularidade aparente, servidores da Comissão de Recebimento acionam a Diretoria do Centro Administrativo para providências necessárias à empresa de alimentação”, informou.

*A reportagem foi atualizada às 14h49, de 11/06/2021, após recebimento de resposta da SAP.

Correções

*A reportagem foi atualizada às 14h49, de 11/06/2021, após recebimento de resposta da SAP.

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