Desembargadores reverteram absolvição e entenderam que cabos mexeram nos equipamentos para simular confronto e evitar registro da ação que matou Kaique Passos e baleou um sobrevivente no Guarujá, em 2022
O Tribunal de Justiça Militar (TJM) condenou por fraude processual, nesta terça-feira (17/9), três policiais militares que participaram da ação que matou Kaique de Souza Passos, de 24 anos, e deixou outro jovem ferido em junho de 2022, no Guarujá, litoral paulista. Na época, a Ponte revelou que os PMs taparam as câmeras nas fardas que utilizavam, não acionaram o áudio e se posicionaram de forma que o equipamento não registrasse imagens de parte da abordagem.
Os desembargadores militares reverteram por unanimidade parte da sentença que havia absolvido oito PMs pelo crime. Isso porque o Ministério Público Militar (MPM) tinha recorrido da decisão apenas em relação aos cabos Diego Nascimento de Sousa e Israel Morais Pereira de Souza e ao soldado Eduardo Pereira Maciel por fraude processual, já que pediu a absolvição dos demais.
Os magistrados descreveram que o cabo Paulo Ricardo da Silva teve conduta semelhante a de Israel, mas não o incluíram na condenação ao afirmarem que o MP não recorreu em relação a ele. Assim, Israel e Eduardo foram condenados a um ano, nove meses e 18 dias de detenção em regime aberto.
Já Diego, além da mesma pena por fraude processual, também foi sentenciado por falsidade ideológica porque não informou no relatório da PM que atirou contra o jovem sobrevivente. Ele foi penalizado com dois anos, quatro meses e 24 dias de prisão em regime semiaberto.
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Em seu voto, o relator Paulo Adib Casseb argumentou que as imagens “esclareceram a dinâmica da ocorrência” e comprovam que houve intenção dos policiais em obstruir os equipamentos. “Ainda que os policiais tenham se esforçado bastante para obstruir o mecanismo de controle das operações policiais, em ambas as tentativas foi possível perceber as condutas criminosas ali perpetradas. A ação deliberada em não se posicionar de tal forma que deixasse livre a visão do que ocorria, tinha um propósito”, criticou.
Ele ainda afirma que os PMs Israel e Diego simularam o confronto que resultou na morte de Kaique. “Ocorre que a imagem é bastante clara: Morais simula as frases acima e atira, com o corpo de Kaíque caído ao solo já na posição em que foi encontrado. Seu parceiro Paulo Ricardo da Silva volta e sussurra: ‘Chega! Tá bom!’. A imagem é rápida, mas muito elucidativa. Morais montou a cena e acreditou que sua câmera estava completamente obstruída”, descreveu.
O desembargador também refutou a justificativa do juiz Ronaldo João Roth — que havia absolvido os policiais — de que o crime de fraude processual não se aplicaria às câmeras corporais porque os equipamentos não teriam modificado a cena do crime: “(…) frise-se que a profissão policial militar pressupõe o emprego de arma de fogo como instrumento de trabalho, o que confere inegável poder desses servidores em relação à sociedade, no quotidiano do exercício profissional. Ora, nas democracias
inexiste poder sem controle, ainda mais se tratando de força armada, sendo que a obrigatoriedade de uso de câmeras acopladas ao uniforme nada mais constitui do que controle estatal da atividade policial”.
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Paulo Casseb ainda destacou que as câmeras nas fardas “servem para garantir a regularidade da atividade policial, o que significa que também compreendem mecanismo revelador, por imagens em movimento, não somente de culpa, mas igualmente de demonstração de inocência de policiais, conforme aquilo que filmaram”.
Além do processo na Justiça Militar, os três cabos que participaram da ação foram acusados de homicídio e tentativa de homicídio e irão a júri popular. O trio ficou preso por um ano até o juiz Edmilson Rosa dos Santos, da Justiça Comum, conceder a liberdade em dezembro de 2023 para exercerem funções administrativas na corporação.
A Ponte procurou a assessoria do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) sobre a decisão, mas não obteve retorno. Também buscamos o advogado Renan Claro, um dos que representam os PMs Israel Morais e Diego Nascimento, também sem sucesso. Não conseguimos localizar o advogado Eugenio Malavasi, que consta como defensor do soldado Eduardo Maciel.
Relembre o caso
Em 15 de junho de 2022, Kaique de Souza Passos foi morto por policiais militares com sete tiros no Guarujá, litoral paulista, após ter participado de um roubo em Bertioga, uma cidade vizinha. Um outro rapaz foi baleado durante a fuga, mas sobreviveu. Na época, na esfera da Justiça Comum, a promotoria não solicitou nem viu as gravações e tinha pedido o arquivamento do caso. O MPSP só denunciou os PMs envolvidos pelo homicídio seis meses depois por causa da apuração da Corregedoria da PM com base nas filmagens das câmeras corporais. A Ponte revelou o caso na mesma semana.
Parentes da vítima só descobriram como a ação aconteceu após a reportagem da Ponte. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafou Cassiane dos Santos Reis, 22, que planejava se casar com Kaique no final daquele ano.
“No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta ela. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirmou.
Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três PMs que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços — o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estava se rendendo.
Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão. Também não dá para ouvir nada, pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MP-SP. Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor.
Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrada uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas do roubo.
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Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.
O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.
Durante as audiências, o rapaz que sobreviveu aos disparos efetuados por Diego, que vamos chamar de Pedro, disse que participou do roubo com Kaique e outro jovem, que vamos nomear de Henrique, a uma residência de uma família em Bertioga, cidade vizinha a Guarujá, mas não estavam portando armas de fogo e sim uma arma de brinquedo. O trio fugiu com o carro das vítimas e ele afirmou que os policiais atiraram com fuzil contra o veículo durante a perseguição na rodovia. Ao passarem por um bloqueio policial, decidiram abandonar o carro e cada um correu para um lado depois de pularem um muro, sendo que Kaique acabou levando a mochila com o simulacro de arma.
Pedro disse que os policiais continuaram atirando e que ele “não tinha nenhum objeto em mãos e não fez menção de estar armado”. Ele relatou que foi atingido por três tiros, sendo um o atingiu no tórax pelas costas e o segundo na perna, o que o impediu de continuar correndo. O terceiro, segundo ele, foi dado quando já estava caído por Diego à queima-roupa, “que atingiu seu pulmão”, quando se aproximou dele junto com o soldado Eduardo Maciel. No depoimento, consta que Pedro “contou que, após o disparo, Diego se aproximou do declarante [Pedro] e pediu para que levantasse a camisa. Em seguida, o declarante pediu socorro e Diego disse que o declarante estava demorando para morrer” e o outro nada disse. Essa frase foi captada pela câmera da farda.
Diego Nascimento negou que tenha disparado quando o jovem já estava rendido. Ele afirma que revidou tiros com um dos suspeitos que estava correndo na perseguição, mas nenhuma arma foi encontrada pelo soldado Maciel quando foi fazer a revista. Segundo ele, quando declarou “não olha” teria sido direcionado a Pedro quando mandou que ele deitasse no chão de bruços “com a finalidade de diminuir a capacidade de reação e de fuga do preso, porque até então não sabia da gravidade dos ferimentos” e não para que o colega de farda se virasse para deixar de registrar a ação. Ele disse que acionou o socorro e não zombou da vítima ao dizer que estava “demorando para morrer”, mas declarou que “se o fez, foi movido pelo stress da ocorrência”.
Paulo Ricardo disse que, ao perseguir Kaique, que havia invadido uma residência durante a fuga, “estava à frente, chutou a porta da residência e visualizou Kaique, que levantou as mãos. Nesse momento, pediu para os demais policiais pegarem o escudo e fala algumas vezes para Kaique: ‘Vem, vem, vem’, só que Kaique, ao invés de ir em sua direção, foi em direção à porta da residência, forçando para abri-la.
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Nesse momento, como tinha muita gritaria no interior da residência, inclusive de criança, foi em direção a Kaique e, ao chegar próximo da metade do corredor Kaique sacou uma arma e, então, o interrogando [Paulo] efetuou disparos. Disse que Kaique apontou a arma em sua direção e, por isso, se jogou para o lado esquerdo, onde tinha algumas bicicletas, tentando se proteger de um iminente disparo de arma de fogo. Nesse momento, o cabo Israel Moraes, que estava na sua retaguarda, efetua alguns disparos e pergunta se o interrogando estava bem, efetuando, após alguns segundos, outros disparos”.
Ele negou ter tapado a câmera, disse que segurou o equipamento “para que, com o impacto do chute, ela não caísse”, pois, segundo o cabo, “os integrantes da Força Tática precisam fixar as COPs [câmeras operacionais portáteis] com fios e barbantes, sendo que em ocorrências anteriores sua COP já caiu”. Isso, contudo, não se sustenta pois os policiais devem verificar os equipamentos antes de sair para a patrulha para que, caso algum problema seja observado, a câmera tem que ser trocada. Ele disse que viu Kaique e a arma ao lado.
O cabo Israel declarou que não tinha total campo de visão do local por ser estreito e que se posicionou ao lado de Paulo. “Em segundos, viu Paulo Ricardo um pouco mais à frente e escutou disparos de arma de fogo. Em seguida, viu Paulo Ricardo indo ao solo. Nesse momento, conseguiu ver o indivíduo com arma de fogo em punho e com ela apontada em sua direção, tendo, então, efetuado dois disparos. Olhou para Paulo Ricardo para ver se ele estava baleado e depois, ao direcionar o olhar para o criminoso, percebeu que ele ainda estava com a arma de fogo em punho, verbalizando por diversas vezes para que ele largasse a arma”, disse.
Ele negou que tenha tapado a câmera que usava “mas em dado momento teve que se abaixar para ingressar no corredor, porque ele era muito estreito e para diminuir sua própria silhueta”.
Na ocasião, além de outros policiais que participaram da ação e as vítimas do roubo, foi ouvido o capitão Fábio Ferreira Cheles, que foi encarregado pela apuração na esfera militar. Ele disse em audiência que, além de ouvir o sobrevivente e mais dez policiais, “pelo que analisou das imagens, não tem nenhuma dúvida a respeito do seu relatório; de que houve uma execução e uma tentativa de execução contra os ofendidos. Confirmou que não houve comprovação de que as vítimas estivessem em posição de ataque ou oferecendo agressão aos policiais ou, ainda, que estivessem armadas”.