‘Senti a dor dele’, diz viúva de Kaique após ver cenas de PMs tapando câmeras para matá-lo

Casal pretendia se casar neste ano. Após Ponte revelar que PMs foram denunciados por encobrir possível execução, Cassiane agora busca justiça: ‘Tiraram uma vida, tiraram um sonho’

Kaique era pai de uma menina de dois anos | Foto: Arquivo pessoal

Bastaram algumas semanas de namoro para a atendente Cassiane dos Santos Reis, 22 anos, decidir que queria passar o resto da vida com Kaique de Souza Passos, 24. No final de abril, os dois foram morar juntos, em uma casa no Guarujá, no litoral sul de São Paulo, e planejavam se casar antes do final do ano. Já tinham chá de cozinha marcado. “Nosso relacionamento foi muito intenso, parecia que estávamos há anos juntos”, lembra Cassiane. Os planos do casal acabaram na noite de 15 de junho de 2022, quando Kaique foi morto pela Polícia Militar.

Kaique, um jovem negro que trabalhava em um mercadinho e era pai de uma menina de dois anos, foi morto com sete tiros disparados pelos pelos policiais militares Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais Pereira de Souza, que o atingiram no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Os policiais taparam as câmeras na abordagem, conforme vídeos revelados em reportagem da Ponte nesta semana.

As cenas mostram que os cabos Paulo Ricardo e Israel, além do soldado Diego Souza Luna, todos do 21º Batalhão da PM do Interior (BPM/I), cobriram suas câmeras corporais na ação e não fizeram o acionamento do áudio dos equipamentos.

Apesar das imagens perturbadoras, as recordações de um namorado romântico e presente são as que permanecem na memória de Cassiane. “Um dia eu cheguei em casa e tinha um buquê de rosas e um papel do cartório com as documentações. Não chegamos a marcar a data, mas ele já tinha visto os documentos que precisava para formalizar”, conta.

Apesar de a morte ter ocorrido em junho, Cassiane só teve acesso às imagens quando viu a reportagem da Ponte, nesta semana. Os PMs foram denunciados pelo Ministério Público de São Paulo por homicídio qualificado. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafa a jovem.

Segundo ela, as imagens mostram claramente que Kaique se rendeu aos PMs, mas foi executado. “No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirma.

Cassiane conta que, como os familiares de Kaique vivem em São Paulo, o sonho dele era construir sua própria família no Guarujá, com Cassiane e a filha. “Ele era muito família, o sonho dele era uma casa, conquistamos nossos móveis, nossas coisas. Ele sempre foi um homem muito respeitador, um bom pai, um bom marido, um homem muito amoroso.” Nos momentos de lazer a programação do casal girava em torno de sair com os amigos, ir ao cinema e ir à praia. 

Kaique e Cassiane, que pretendiam se casar neste ano | Foto: Arquivo pessoal

Ela estava em casa no dia da morte de Kaique, já angustiada, esperando por ele, pois era raro que demorasse tanto. Geralmente Cassiane encontrava Kaique em casa por volta das 18h, quando ele chegava do trabalho, tomava banho e descansava. Ela, por sua vez, chegava às 15h e preparava o jantar. “Eu estava muito agoniada em casa, aí eu mandei um ‘oi’ por mensagem, que acabou nem chegando.”

A notícia da morte do companheiro foi recebida por um amigo do bairro na mesma noite do ocorrido. “Ele [o amigo] começou a falar: ‘acabaram de matar o Kaique’.” A informação é de que Kaique estaria participando de um roubo junto a outros dois jovens quando foi baleado pelos policiais.

Muito abalada, Cassiane não conseguiu ir à delegacia. “Fiquei à base de calmantes, muito mal. A mãe dele veio de São Paulo e uma irmã do Guarujá foi ao IML [Instituto Médico Legal]. Na mesma noite eu já não quis ficar em casa, era muita lembrança e eu ainda tinha esperança de que ele ia subir as escadas.” 

Relembre o caso

A morte de Kaique ocorreu às 23h35 em uma comunidade no bairro Cachoeira, quando ele estaria escondido em uma residência suspeito de participar de um roubo. De acordo com as gravações, os policiais Paulo, Israel e Diego invadem a casa e gritam “polícia”, “larga a arma” após alguns cobrirem as câmeras com a mão e outro com o antebraço. Na ação, o soldado Willian Lopes Bulgarelli também sai do campo de visão da localização dos demais policiais para se ocultar.

Na sequência tiros são efetuados e Kaique diz “ai” ao menos três vezes. O policial Paulo cai no chão e o jovem negro que já estava caído recebe outros dois disparos de Israel, o mesmo tambem impede a entrada de outros colegas na residência. 

Com o atendente, teria sido encontrado uma arma de brinquedo. Ele também estaria com uma mochila nas costas com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.

“Legítima defesa” foi o argumento citado pelos policiais na delegacia e à Corregedoria, pois segundo eles, Kaique havia sacado a arma na direção deles. Afirmaram, ainda, que os dois juntos efetuaram oito tiros porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.

Atualmente oito policiais estão envolvidos em investigações separadas em três esferas: uma corre no Tribunal de Justiça Militar (TJM), que trata dos crimes de fraude processual (oito policiais), omissão de socorro (dois policiais) e falsidade ideológica (três policiais) contra os PMs.

Para o crime de roubo que Kaique teria participado com outros dois jovens há uma investigação na Vara Criminal de Bertioga do TJSP.

Já as investigações sobre a morte de Kaique pelos dois cabos e uma acusação de tentativa de homicídio contra o cabo Diego Nascimento Sousa e o soldado Eduardo Pereira Maciel correm na Vara do Júri de Guarujá do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. De acordo com os autos, Diego teria disparado em um dos suspeitos presos quando já estava rendido e pediu para que Eduardo se virasse para que sua câmera na farda não registrasse a ação, conforme apontando na reportagem da Ponte.

Abordagens da PM e perseguições

Tudo aconteceu depois que um casal relatou em boletim de ocorrência que havia sido vítima de um roubo na cidade de Bertioga, a aproximadamente 20 km de Guarujá, na noite de 15 de junho. De acordo com as vítimas, por volta das 21h15, três pessoas armadas invadiram sua residência, os renderam e os trancaram no banheiro, roubando jóias, celulares e realizando transações via Pix. O grupo fugiu do local no Fiat Toro preto de uma das vítimas. Características físicas dos suspeitos não constam no registro da Polícia Civil.

Diante disso, a Polícia Militar foi acionada iniciando diversas abordagens, a primeira foi feita pelo tenente Roberson Fabiano Alves Pereira e pelo cabo André Felipe dos Santos, ambos localizaram o veículo na Rodovia Conego Domenico Rangoni, sentido Cubatão a Guarujá e após perseguição prenderam um dos rapazes envolvidos no crime. Uma das vítimas do roubo reconheceu uma correntinha de ouro que estava com Kaique, junto a uma quantia de aproximadamente R$ 343,60 em dinheiro.

Os policiais dessa abordagem estão sendo acusados por falsidade ideológica pois não informaram que realizaram disparos na ação. O cabo e o sargento também são acusados pelo promotor militar Rafael Magalhães Abrantes Pinheiro por fraude processual pois não acionaram o áudio das câmeras nas fardas, danificando a captação do som dos tiros. 

Uma outra perseguição a pé foi feita pelo cabo Diego Nascimento de Sousa e pelo soldado Ulisses Lopes dos Santos Junior e ocorreu em direção ao Atacadão e ao bairro Cachoeira. O cabo teria atirado contra um jovem depois de ter ouvido disparos em sua direção.

Eles teriam encontrado o segundo rapaz desarmado baleado na perna, no tórax e na costela em uma mureta, perto da passarela e disseram que chamaram o resgate.

Kaique era bem humorado e romântico, segundo a viúva | Foto: Arquivo pessoal

Os dois PMs foram denunciados por fraude processual e por omissão de socorro pelo Ministério Público Militar (MPM). Diego não acionou o áudio da sua câmera quando efetuou ao menos dois disparos contra o terceiro suspeito e atirou quando o homem estava desarmado e tentava fugir, ele também havia tentado evitar que o soldado Ulisses filmasse o ocorrido. O mesmo policial ainda é denunciado por falsidade ideológica pois não informou em seu relatório que desferiu os disparos.

O MPM também verificou que Diego tentou impedir que uma policial feminina, identificada como cabo Amaro tentasse chamar socorro. Ela acionou o Samu minutos depois, o jovem está vivo e está detido assim como o primeiro que foi preso pelos PMs Roberson Pereira e André Santos.

Já outra viatura do cabo Paulo Ricardo da Silva, sargento Gilmar Oliveira do Carmo e soldado Elton Wesley da Silva Lobo Lima e demais equipes se deslocaram para a comunidade do bairro de Cachoeira e iniciaram uma perseguição a pé. 

Segundo as investigações, o cabo Paulo Ricardo disse à Polícia Civil que teria visto uma pessoa, que seria Kaique tentando forçar a entrada de uma porta no corredor de uma casa, ouvindo gritos de moradores. Na sequência, o grupo de policiais encontraram o jovem, momentos depois ele teria sacado uma arma após a presença dos PMs resultando nos disparos dos policiais contra o rapaz.

Acusações na justiça comum

Paulo Ricardo e Israel Morais foram acusados por homicídio contra Kaique no âmbito da Justiça Comum, na Vara do Júri com agravantes de abuso de poder, recurso que dificultou a defesa da vítima e por motivo torpe (desprezível).

As promotoras Nayane Batagini e Mariana Piccinini também usaram essas qualificadoras para acusar de tentativa de homicídio os policiais Diego Sousa e Eduardo Maciel. Os PMs estão soltos por determinação do juiz Ronaldo Roth em 30 de novembro e respondem às acusações em liberdade. As promotoras também solicitaram as prisões preventivas dos quatro PMs. 

Namorada quer justiça

Motivada por o que ela considera um “baque”, as imagens do vídeo assistidas após a publicação da reportagem da Ponte fizeram com que Cassiane buscasse ajuda de uma advogada e com isso a busca por justiça se tornou ainda mais intensa. “Algo que eu nunca vivi antes, eu vivi com o Kaique em pouco tempo e do nada o mundo desabou enquanto eu estava me erguendo, agora vem baque do vídeo”, conta. 

Entre as razões dessa busca por respostas está o anseio de que outras famílias não passem pela mesma situação, afirma a jovem. “A advogada está apurando o caso, poderiam ser outras famílias passando por essa situação. Eles vão querer a todo o custo sujar a imagem dele. Eu espero que a justiça seja feita.” 

Kátia Marcella Inácio Gomes, advogada da família, afirma que está fazendo análise técnica do caso dele e que entrará com uma ação de responsabilidade civil contra o Estado, uma vez que os policiais são servidores que em suas atuações representam o Estado. “Diante de um dano deve o Estado ser responsabilizado por erros que seus agentes cometeram. No caso a responsabilidade é de forma objetiva, ou seja, sem demonstração de dolo ou culpa, portanto o Estado responderá por danos que seus agentes em serviço causaram a terceiros, no caso, a morte de um cidadão”, diz.

Ajude a Ponte!

Segundo a advogada, é de extrema importância que as câmeras corporais sejam utilizadas corretamente  para monitorar as ações dos policiais e para a segurança do policial e do cidadão, o que não ocorreu no caso de Kaique. “São utilizadas como um controle também para que não haja qualquer ilegalidade, abuso de poder, ou até mesmo crime por parte do servidor público, por isso sua utilidade deve ser respeitada”, entende a advogada. 

“Quero justiça, vou lutar até o fim, independente do que o Kaique estava fazendo ele se rendeu na hora, as imagens dizem tudo”, ressalta Cassiane.

O que diz o governo

A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre a situação atual dos policiais na corporação e sobre o projeto das câmeras, a pasta informou apenas que o caso é investigado sob sigilo pela 3° Delegacia de Homicídios do DEIC de Santos, e que outros detalhes serão preservados para garantir autonomia ao trabalho policial. 

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo disse que o processo ainda consta como inquérito policial e corre em segredo de Justiça.

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