Rogério de Santis foi golpeado no rosto diversas vezes quando fotografava manifestação. Juíza argumenta que agentes agiram em “legítima defesa” ao agredir profissional com cassetetes, socos e cabeçadas
Era uma noite de terça-feira, em julho de 2017, quando Rogério de Santis, 44 anos, foi acompanhar uma manifestação de estudantes que pediam o benefício integral do Passe Livre Estudantil. O ato começou tranquilo na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, e finalizou na Prefeitura, no Viaduto do Chá. A noite acabou em cenas de agressões deliberadas cometidas por funcionários da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) contra Rogério, outros jornalistas e manifestantes.
A truculência ocorreu depois que cerca de 100 participantes do ato desceram a escada rolante da estação da Sé e tentaram pular as catracas como forma de protesto. A maioria foi embora e cinco permaneceram protestando dentro da estação. O fotojornalista, que trabalha há cinco anos como freelancer em diversos veículos da imprensa nacional, foi alvo de oito agressões entre chutes, socos, cabeçadas e golpes de cassetete. Segundo ele, a maioria das agressões foi cometida pelo segurança Ícaro Cobuci.
As acusações foram formalizadas em um Inquérito Policial assinado pelo delegado Rogério Luís Marques em 19 de julho de 2017, a fim de que fosse apurado eventual abuso de direito, além de crime de lesão corporal cometidos pelo segurança. Em 2018, o inquérito foi arquivado pela promotoria da 14ª Vara Criminal da Capital por falta de “convicção sobre os elementos probatórios”.
Diante disso, a defesa de Rogério foi à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e Inclusão Social do Ministério Público de SP (MPSP), junto à organização Artigo 19, reivindicar a abertura de um Inquérito Civil para responsabilizar o Metrô, que também foi arquivado pelo promotor Eduardo Ferreiro Valério em setembro de 2018.
Em julho de 2020, a defesa de Rogério ingressou com uma ação de reparação de danos no valor de 40 salários mínimos contra o Metrô na Justiça, que novamente foi barrada, desta vez no início deste mês pela juíza Ligia Dal Colletto Bueno, do Tribunal de Justiça de SP, que considerou Rogério como único responsável por sofrer as agressões do segurança Ícaro Cobuci.
A magistrada argumentou que Rogério pulou a catraca e que devido às circunstâncias da manifestação de “algazarra e depredação de patrimônio”, as ações do segurança não configuraram excesso que enseje o dever de indenizar Rogério. Fora isso, a juíza declarou que o segurança agiu em “legítima defesa”.
Em entrevista à Ponte, Rogério de Santis diz que a decisão é absurda, uma vez que a própria juíza reconhece as agressões sofridas por ele. “Isso é dar carta branca para qualquer um que use uma farda bater mesmo, o que eles fizeram ali naquela noite foi agredir a esmo. Achei um absurdo porque querendo ou não a juíza diz que apesar de eu ter sido agredido e apesar da violência não ser o ideal, os seguranças agiram em legítima defesa”, critica.
O advogado Augusto Luiz de Aragão vê a decisão com profunda indignação. “A demorada sentença da primeira instância cível não faz menção específica de nenhum vídeo, prova ou palavra do jornalista, dando todo o peso às afirmações dos seguranças, que incapazes de reconhecer qualquer erro, saem encorajados e persistir e agravar as brutais agressões perpetradas e ora ‘naturalizadas’ pela sentença que as declarou ‘razoáveis’.”
Rogério lembra que tudo começou quando ouviu gritos de socorro no piso inferior da estação Sé do Metrô e junto a um grupo de jornalistas se deslocou até o local, onde estavam dois manifestantes feridos. Nesse instante, um colega do fotojornalista teve sua câmera destruída por um dos seguranças, Rogério tentou apaziguar a situação, apesar disso ele recebeu em troca um golpe de tonfa (cassetete) nas costas, dado pelo segurança Ícaro.
Ele tentou saber os motivos de tal agressão, mas foi afastado à força pelos demais seguranças, que passaram a agredi-lo diversas vezes. “Virei para ele e comecei a discutir, aí depois eu fui até ele para questionar sobre agressão a ele me deu uma cabeçada, só que um outro [segurança] veio de trás de mim e me empurrou.” Já nesse momento, outros jornalistas perceberam a agressão e passaram a gritar: “É imprensa, é imprensa”.
Mesmo após a cabeçada, Rogério continuou a ser acuado pelos seguranças, sobre a faixa amarela entre os trilhos e a plataforma e recebeu mais um golpe de tonfa e um soco de Ícaro, além de um novo golpe de tonfa, partindo de outro segurança.
Alguns momentos depois, ao se ver novamente próximo ao segurança que o havia golpeado, notou e apontou que o mesmo estava sem identificação no uniforme. Em resposta, foi intimidado novamente. “Foi quando eu resolvi tirar uma foto, ele mandou beijinho para a câmera.”
Na sequência, os detidos foram conduzidos para o andar de cima e Rogério foi acompanhá-los. Nessa hora, o fotógrafo tentou de novo identificar Ícaro, para embasar uma denúncia. Sem sucesso, ele seguiu com a cobertura para o lado de fora da estação, onde os manifestantes foram colocados em uma viatura da Metrô e levados para a Delegacia de Polícia do Metropolitano (Delpom) – Barra Funda. Ao passar ao lado do segurança das primeiras agressões, recebeu mais um chute e um soco. Outras duas agressões ocorreram naquela noite dentro da estação.
Na espera da lavratura do boletim de ocorrência na Delpom ele percebeu que seu notebook de trabalho que trazia na mochila tinha uma parte quebrada. Lá ele ainda foi intimidado por Ícaro, que também estava no local. O fim da noite se deu no Instituto Médico Legal, à espera de sua vez para o exame e atestado de suas lesões.
O fotógrafo conta ainda que as investigações foram tratadas com negligência. Em março de 2018 Ícaro foi intimado pela Polícia Civil e não compareceu na delegacia, e em um outro depoimento ele mentiu ao delegado e ao Metrô, segundo Rogério. “Ele diz que eu não estava identificado como jornalista, ele mentiu ou para a Metrô ou para o delegado. Meu capacete estava escrito imprensa atrás na frente e nas laterais ‘press’. Nos documentos oficiais ele narra que depois a cabeçada aconteceu porque eu segurei o colete dele, puxei ele e no momento de tentar se afastar ele deu levemente com a cabeça, e que depois disso ele não me agrediu mais, o que é mentira, nos vídeos dá para ver que tem outras agressões, inclusive depois da cabeçada.”
Por outro lado, o advogado Augusto Luiz chama a atenção pelo fato de que Rogério e a defesa só foram procurados uma única vez pela Polícia Civil, e nenhuma pela administração do Metrô, “que negou qualquer responsabilidade sobre qualquer ato de qualquer segurança sempre que pôde, exceto quando o grupo especializado do Ministério Público advertiu que havia graves falhas no serviço”.
Depois do pedido do MP, o Metrô aplicou uma sanção administrativa ao segurança agressor de Rogério. “Diante do jornalista, continua negando até agora absolutamente qualquer erro, e faz o mesmo tanto diante da polícia quanto diante da juíza cível”, diz o defensor.
O advogado explica ainda que o Metrô não pode justificar as agressões, mas já tentou, apresentando vídeos editados de seu sistema de segurança e insinuando por diversas vezes que os jornalistas estariam quebrando a estação, sem apresentar qualquer prova. “Dizendo ainda que não identificou os jornalistas (apesar de Rogério usar um capacete escrito imprensa com letras amarelas garrafais), e obviamente dizendo que ao acompanhar a manifestação quando essa pulou a catraca, teria se misturado indissociavelmente com a ‘baderna’”, explica.
De acordo com Rogério, essa decisão vai no mesmo sentido de outras já proferidas em desfavor de fotógrafos, como no caso de Sérgio Silva e Alex Silveira. “Eu ficaria com muito pé atrás de cobrir qualquer coisa agora, porque a gente tem a sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso do Alex Silva que diz que se a polícia deixar claro que é uma área de risco e a gente ultrapassar e se machucar, tomar tiro, a Justiça responsabiliza o profissional de imprensa.”
Na visão de Marcelo Träsel, presidente Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o caso se configura como uma ameaça ao jornalismo. “O jornalismo é fundamental para manter a sociedade informada, sobretudo em situações de conflito como o que lamentavelmente se seguiu ao protesto estudantil de cuja cobertura o fotógrafo De Santis participava quando, como reconhecido pela própria decisão judicial, foi agredido. Agentes de segurança privada devem ser orientados a respeitar o trabalho de repórteres, em especial quando estes agentes atuam dentro de organizações públicas como o Metrô de São Paulo.”
Por fim, Augusto Luiz aponta que a decisão não faz menção alguma à liberdade de imprensa, apesar de destacada diversas vezes na petição. “A omissão, nesse momento, parece querer dizer que a liberdade de imprensa é, diante da ‘necessidade de conter a baderna’, insignificante. Pretendemos apresentar embargos de declaração e Recurso Inominado nos próximos dias.”
Outro lado
A Ponte questionou a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) sobre as medidas tomadas com relação às agressões físicas cometidas pelo segurança e aguarda respostas.
Procurados, o Ministério Público e a Polícia Civil de SP, esta por meio da Secretaria da Segurança Pública, não responderam às motivações dos arquivamentos dos inquéritos. Questionado, o Tribunal de Justiça de São Paulo disse que “os magistrados não se manifestam sobre processos em andamento, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura”.