Juiz aceitou denúncia do MP nesta quarta (14) contra cabos Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais, acusados de matar Kaique Passos com 7 tiros no Guarujá (SP), em junho de 2022
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) determinou, nesta quarta-feira (14/12), a prisão dos cabos Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais Pereira de Souza, que taparam suas câmeras e mataram Kaique de Souza Passos, de 24 anos, com sete tiros no Guarujá, litoral paulista, em junho deste ano. A Ponte revelou o caso há uma semana.
Outros dois policiais envolvidos na ação, o cabo Diego Nascimento Sousa e o soldado Eduardo Pereira Maciel, também tiveram as prisões decretadas porque Diego teria disparado em um outro suspeito, que sobreviveu e foi preso, quando já estava rendido e pedido para que Eduardo se virasse para que sua câmera corporal não registrasse a ação.
O juíz André Rossi, da 2ª Vara Criminal de Guarujá, argumentou que a prisão dos quatro “se mostra necessária para a garantia da ordem pública, em razão da gravidade concreta dos fatos revelados e da repercussão social dos delitos, praticados por policiais militares remunerados pelo Estado para preservar a ordem pública e proteger os cidadãos, sendo seu dever atuar com prudência nas ocorrências e respeitar a integridade física, moral e psíquica da pessoa do preso ou de quem seja objeto de incriminação”.
O magistrado também aceitou a denúncia do MPSP de homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima e por motivo torpe (desprezível) contra Paulo Silva e Israel Morais, e de tentativa de homicídio, com essas mesmas qualificadoras, contra Diego Sousa e Eduardo Maciel. Rossi classificou os crimes como “bárbaros” e que há indícios de que os policiais não agiram “para repelir injusta agressão, atual ou iminente, ainda que putativa [quando se acredita que está em risco], dos suspeitos da prática de roubo, os quais teriam sido atingidos por disparos de arma de fogo quando já detidos e aparentemente sem possibilidade de resistência, fuga ou reação”
Cabe recurso à decisão. Os acusados devem ser levados ao Presídio Militar Romão Gomes, unidade destinada a policiais.
Essa é a segunda vez que são decretadas as prisões dos policiais. Na esfera militar, a Corregedoria da PM tinha feito a solicitação, que foi aceita pela Justiça Militar. O processo envolve mais três policiais. Porém, durante uma das audiências, o juiz Ronaldo Roth mandou liberá-los em 30 de novembro.
Relembre o caso
Na última quarta-feira (7/12), a Ponte revelou as imagens das câmeras corporais de três policiais na ação que resultou na morte de Kaique Passos. Além dos cabos Israel Morais e Paulo Silva, mostramos também as imagens do equipamento do soldado Diego Souza Luna, que também cobriu a lente com a mão e pediu para para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, que obedece.
Parentes da vítima só descobriram como a ação aconteceu após a reportagem da Ponte. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafou Cassiane dos Santos Reis, 22, que planejava se casar com Kaique no final do ano. “No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirmou.
Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços, o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estaria se rendendo.
Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão (também não dá para ouvir nada pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MPSP) e Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, e ele obedece.
Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrada uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.
Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.
O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.
Ainda em junho, 10 dias depois da morte do jovem, a promotora substituta Mariana da Fonseca Piccinini pediu o arquivamento da apuração do homicídio, por ter entendido que os cabos Paulo e Israel agiram “em legítima defesa própria e de terceiros”. Nem ela nem a Polícia Civil tinham solicitado as imagens das câmeras das fardas.
A Promotoria só mudou de ideia depois que o inquérito policial-militar (IPM), conduzido à parte da investigação do roubo, foi remetido à Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por determinação do juiz militar Ronaldo João Roth, em 17 de novembro, para analisar o crime de homicídio, e teve acesso às imagens dos equipamentos.
Com isso, são três investigações separadas sobre o caso: uma corre no Tribunal de Justiça Militar (TJM), que trata dos crimes de fraude processual (oito policiais), omissão de socorro (dois policiais) e falsidade ideológica (três policiais); outra na Vara Criminal de Bertioga do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para o crime de roubo que Kaique é supeito de ter participado, com outros dois jovens que foram presos no mesmo dia e permanecem respondendo o processo encarcerados; e a terceira na Vara do Júri de Guarujá do TJSP sobre a morte de Kaique pelos dois cabos, além de uma acusação de tentativa de homicídio que recai contra o cabo Diego Nascimento Sousa e o soldado Eduardo Pereira Maciel.