Leituras Decoloniais: ‘A literatura tem viés libertador, de encontrar histórias que nunca foram contadas’

Para debater literatura e decolonização, live da Ponte recebeu Camilla Dias, Maria Ferreira, Pétala e Isa Souza, as quatro curadoras do clube Leituras Decoloniais: “as pessoas pretas estão produzindo, mas falta oportunidade e plataforma”

Quantos livros escritos por pessoas negras, LGBT, latino-americanas ou africanas você leu nos últimos anos? Quantos tinham personagens negros, LGBTs? A Academia de Literatura das Ruas da última quarta-feira (23/07) teve essas perguntas como mote. A editora de relacionamento da Ponte, Jessica Santos, recebeu as quatro criadoras e curadoras do clube Leitura Decoloniais: Camilla Dias, Maria Ferreira e as irmãs Pétala e Isa Souza. A live sobre produção literária e decolonização está disponível na íntegra no canal da Ponte.

O clube é uma iniciativa de quatro autoras negras que sentiram a necessidade de decolonizar suas leituras. Camilla Dias é assistente social, mediadora de leitura e pós-graduada em Docência em Literatura e Humanidades. Maria Ferreira é formada em Letras pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é escritora e publicou o conto Vozes Negras em 2019. As irmãs Pétala e Isa Souza produzem conteúdo literário com perspectiva afrofuturista, periférica e pluriversal no Afrofuturas. Pétala é bacharel em Têxtil e Moda pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de estéticas decoloniais, e Isa estuda ciências sociais na Unifesp.

Os livros ingressaram na vida de cada um delas de uma forma diferente. Camilla Dias e Maria Ferreira tiveram acesso às obras na escola e foram incentivadas desde cedo por seus familiares. Por outro lado, Pétala conta que as escolas pelas quais passou não despertaram o interesse dela pela leitura.

“Em casa, minha mãe tinha muitos livros. Ela era psicóloga, então eram livros de psicologia, não de literatura, mas o objeto livro não me era estranho. Sempre tive um encantamento com as palavras, aprendi a ler com quatro anos. Não tínhamos esse hábito de comprar livros, mas eu me refugiava sempre nas bibliotecas da escola”, lembra. Com o passar do tempo, Pétala pode também incentivar a leitura da irmã mais nova, Isa, e conversar com ela sobre as histórias lidas.

Negritude na literatura

O vínculo com a literatura se tornou ainda mais forte para Camilla, Maria, Pétala e Isa quando elas puderam se sentir representadas nas narrativas enquanto mulheres negras. Durante o bate-papo Camilla conta sobre sua identificação com A Cor da Ternura, de Geni Guimarães, ao ler a obra infanto-juvenil aos 11 anos: “Foi ali que eu percebi que poderia ter personagens negros igual a mim. Foi uma ótima curadoria que a minha tia fez, gostei muito do livro e tenho ele até hoje pois tem um valor sentimental grande. Sempre indico esse livro para meninas negras”.

O contato com obras escritas por autores negros, ou que abordassem questões raciais, veio mais tarde para Maria Ferreira. Ela diz que só depois que saiu do ensino médio conheceu a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. “Aquele livro me transformou muito porque nela eu me vejo enquanto mulher negra e moradora de periferia. É um livro que mudou muito a minha vida e que todos deveriam ler para ter consciência do que é ser uma mulher negra no Brasil, e para refletir o quanto a gente não avançou na discussão sobre a fome. Infelizmente estamos voltando para essa realidade”, pontua.

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Já para Isa Souza os livros ajudaram no processo de conscientização racial e autoconhecimento. “Lembro que estava lendo O Sol Também É Uma Estrela, da Nicola Yoon, que tem uma protagonista negra, e tem um capítulo que fala sobre cabelo e um outro que fala da relação das mulheres nos Estados Unidos com a lace. Achei incrível um livro que parasse para falar sobre isso e que desse um histórico sobre essas coisas, do processo do cabelo natural. Acho que foi a primeira vez que eu tive esse reconhecimento”, recorda.

Todas estas referências literárias, segundo Camilla, são ainda mais fundamentais para pessoas negras e é preciso evidenciá-las. “Quando a gente começa a escrever sobre a nossa realidade e aonde dói e cutuca o outro, nesse caso o homem e a mulher branca, eles não querem sentir essa dor. As pessoas pretas estão aí produzindo, mas o que falta é oportunidade e plataformas para que as pessoas possam divulgar suas produções, sejam elas artísticas, literárias, musicais”, ressalta, lembrando do pensamento da escritora Conceição Evaristo.

Ela explica que isso guiou a decisão para que o projeto do clube de leituras se voltasse a narrativas decoloniais, com foco na produção literária negra. “Acredito que decolonizar é você olhar para a diversidade, tirar o que cada um tem de melhor e construir saberes a partir das experiências das outras pessoas”, completa.

Leituras Decoloniais

Envolvidas na produção e na divulgação literária de autores negros, as quatro leitoras deram início ao projeto em 2020. O Leituras Decoloniais é um espaço coletivo que trabalha a reflexão a fim de romper com os pensamentos e as práticas colonialistas e racistas. Os livros escolhidos pelas autoras trazem ensinamentos e vivências que geram um debate acerca de raça e gênero nos ciclos de leituras. Quem participa do coletivo segue todas as orientações dos ciclos e um cronograma de leitura. No final do ciclo, há um encontro online para a discussão da obra lida.

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São cerca de 200 pessoas que apoiam e sustentam o clube atualmente e há possibilidade de bolsas aos leitores. “A gente acredita no nosso trabalho enquanto coletivo e enquanto mudança social”, afirma Maria sobre o financiamento coletivo. Camilla diz que a experiência de um clube é pensada para a contribuição de conhecimento e vivências adquiridas. Jéssica Santos, editora de relacionamento da Ponte, também comenta na live sobre sua participação no clube e o aprendizado ao saber pontos de vistas diferentes acerca de um mesma leitura.

Para Pétala e Isa, o conhecimento construído de forma coletiva e a reflexão sobre potencialidades são os diferenciais do Leituras Decoloniais. “Nossos apoios são majoritariamente de mulheres e percebemos que as pessoas que mais se abrem para falar no clube são mulheres negras. O clima de aquilombamento dele é muito grande”, reitera Isa.

“A literatura tem esse viés libertador pois temos realmente essa possibilidade de encontrar histórias que nunca foram contadas e é isso o que queremos trazer no Leituras Decoloniais. Nós pessoas pretas somos muito ocidentalizadas, fomos roubadas de nossas origens. Quando encontramos isso de algum forma é muito tocante. Quando vemos os nossos falando, não só sendo colocados ali, vemos nós mesmos, é muito libertador. E o livro tem essa potência”, prossegue Isa.

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Cada atividade do clube é pensada pelas curadoras e inclui não só a leitura como também a escrita. “Durante o ciclo de leituras, a gente incentiva muito que as pessoas escrevam o que estão sentindo, o que aprenderam, como aquele livro entrou na vida delas e o que mudou. No final, nos nossos encontros compartilhamos nossos escritos com todos que se sentirem à vontade. As trocas são muito legais, pois as pessoas se mostram muito subjetivamente mostrando a confiança que as pessoas têm na gente”, conta Maria Ferreira.

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