Mães contam que filhos são espancados e abusados por outros presos no interior de SP

Parentes afirmam que detentos são torturados, “sequestrados” de um pavilhão para outro e têm os pertences roubados, com conivência da direção da Penitenciária de Guareí 2; três rapazes teriam morrido na unidade por negligência médica

Corredor do setor de disciplina da Penitenciária Masculina de Guareí 2, em 2/10/2020 | Foto: Defensoria Pública

Célia* afirma que está com o coração na mão há um ano, desde que o filho ingressou na Penitenciária de Guareí 2, no interior de São Paulo. “A gente ficou feliz quando ele foi transferido porque estaria mais perto de casa, mas não imaginava que era desse jeito. Meu filho pede ‘pelo amor de Deus, mãe, me tira daqui porque um morreu e eu posso ser o próximo'”, lamenta. “O que o meu filho consegue contar é por alto porque quando as visitas saem, eles apanham, são torturados”.

Segundo familiares ouvidos pela reportagem, os detentos são agredidos por outros na unidade, sob conivência da direção. Uma outra mãe, Nádia*, que conseguiu a transferência do filho para outra penitenciária, relata que, de novembro de 2021 a janeiro deste ano, o rapaz sofreu espancamentos e estupros. Ela lembra a primeira visita que fez a Guareí 2 na época. “Depois que eu consegui fazer a carteirinha para visitar e fui ver meu filho, ele me recebeu todo tremendo, quase chorando e todo desconfiado. Diferente dos outros presídios que eu fui [que ele estava], ele chegava sorridente quando me via e ia me abraçar”, explica.

Ela afirma que o jovem pediu para ela falar com o diretor, Euclides Pereira, para que ele fosse transferido de raio dentro da unidade, que tem oito no total, porque estaria sofrendo muita “opressão”, mas sem conseguir contar o motivo. “Na hora que ele começava a conversar, vinha dois ou três presos que são ‘pau mandado’ do diretor”, prossegue. Segundo ela, na penitenciária, há detentos que seriam intermediários entre os demais e a direção. “Em todo raio o diretor escolhe 10 presos, que seriam chamados de ‘piloto’ e de ‘faxina’, e se um outro preso estiver passando mal tem que chegar em um desses 10 para eles pedirem assistência médica, remédio, enfermaria, e eles que chamam os agentes e os agentes passam para o diretor”. Segundo ela, são os grupos em cada raio que violentam os demais presos.

O rapaz trocou de raio, mas Nádia aponta que os motivos do filho ficaram mais visíveis. “Na segunda visita que eu fiz, meu filho estava cheio de calombo na testa, com o pescoço arranhado, roxo, a boca inchada e na hora de andar, eu percebi que ele se movimentava estranho, sentado de lado”, lembra. Ela afirma que também viu outros detentos com ferimentos no corpo e que o grupo costumava agredir com frequência, usar linha de rede de futebol como chicote, cometer estupro coletivo e subtrair os itens enviados por Sedex pelas famílias. “Meu filho estava com as costas toda chicotada, não só meu filho, outros também. Meu filho ficou 10 dias de cama por causa da surra que deram nele e eu só fiquei sabendo porque um homossexual de lá falou o que acontecia”.

“Eu tive que fazer um escândalo para tirarem meu filho de lá, mas tem muito preso sendo oprimido e as famílias têm medo de denunciar porque têm medo de que aconteça alguma coisa com eles lá”, afirma Nádia. “Três meninos morreram lá e disseram que foi por causa do coração, sendo que eram tudo jovem e saudável”, denuncia. “Meu filho saiu de lá, mas eu penso nos outros que ainda estão, por isso abri a minha boca porque eles têm pena para pagar, mas não devem ser tratados assim, é absurdo”.

A Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (Acat Brasil) fez uma representação ao Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo sobre um preso que foi alvo de agressões na unidade prisional, pedindo a transferência dele do local, além de informar que ao menos dois detentos morreram de infarto por negligência médica entre fevereiro e março deste ano, e informando sobre torturas, chicotadas, “sequestros de reeducandos de um pavilhão para outro, a mando de outros presos, onde ocorreriam torturas, sendo que os agentes da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) se omitiriam de qualquer providência”.

Além disso, a denúcia informa que parentes seriam ameaçados a depositar dinheiro para presos que não são seus parentes e os detentos não teriam informações sobre pecúlio (reserva que familiares depositam para que o preso compre mantimentos ao invés de enviar Sedex) nem benefícios. À Ponte, o coordenador-auxiliar do Nesc, Mateus Moro, disse que a solicitação foi encaminhada ao defensor André Paulo Francisco Fasolino de Menezes, que atua na região de Sorocaba, onde está a o juízo de execução penal responsável por Guareí 2.

A Defensoria havia feito uma inspeção na Penitenciária de Guareí 2 em 2 outubro de 2020, na qual identificou superlotação, falta de assistência médica, queixas sobre alimentação inadequada, atendimento jurídico insuficiente, demora de expedição de alvará de soltura e transferência para o regime semiaberto, desrespeito à identidade de gênero de pessoas LGBT+. Na parte de “disciplina/ocorrências”, consta que “com exceção das pessoas do raio 7, em todos os demais setores fomos informados de situações de agressões físicas contra pessoas presas, mas aqueles que nos informaram não quiseram detalhar com receio de represália”.

A ativista de direitos humanos Clara Sousa também levou o caso à Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) cujo presidente deputado Emídio de Souza (PT) fez, em 5 de abril, um requerimento de informação (que pode ser acompanhado aqui) à Secretaria da Administração Penitenciária sobre as mortes e as violações denunciadas. Segundo a assessoria do parlamentar, a resposta pode demorar até dois meses. Souza também encaminhou ofício solicitando apuração do caso à pasta, em 8 de abril.

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O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) também foi procurado pelas denunciantes. O presidente do conselho, Dimitri Sales, disse que recebeu os relatos no final de março. “Estamos verificando se outros órgãos já adotaram medidas e verificar o que podemos fazer. Também estamos verificando a possibilidade de uma inspeção in loco”, declarou por mensagem.

O que diz a Secretaria da Administração Penitenciária

A Ponte questionou a pasta sobre as denúncias, o relatório de inspeção e pediu entrevista com o diretor da unidade prisional. A assessoria encaminhou a seguinte nota, confirmando quatro mortes na unidade, mas declarou que não houve negligência no atendimento nem denúncias de violência.

A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) esclarece que a direção da Penitenciária II de Guareí não recebeu denúncias de familiares de presos sobre casos de sentenciados espancados ou com sinais de violência, como questionado pela reportagem da Ponte. A Pasta, que preza pela garantia das condições de habitabilidade e salubridade de suas unidades, está aberta ao diálogo com a sociedade civil para aprimoramento do sistema carcerário e ressocialização de todos os presos do estado de São Paulo. Os presídios paulistas recebem constantemente inspeções de órgãos e entidades, e todas as denúncias recebidas são apuradas dentro dos critérios legais.

Os presos da SAP têm atendimento de saúde garantido em todas as unidades prisionais do Estado, que pode ser oferecido por meio da equipe médica existente na própria unidade ou na rede pública de saúde local. Atualmente, na penitenciária em questão, há dois médicos, dois técnicos de enfermagem e dois dentistas. A equipe de saúde da unidade está fazendo o monitoramento das condições de saúde dos sentenciados.

Sobre os óbitos, a unidade registrou quatro mortes entre o fim de fevereiro e começo de abril. Em 27/02, foi registrado um óbito sem sinais de violência ou lesões. O preso teria caído subitamente após levantar da cama para ir ao banheiro, foi resgatado e levado ao hospital, onde morreu. Foi aberta uma apuração pela unidade, sendo que foi reiterado recentemente ao IML o exame necroscópico que determina a causa do falecimento. Em 20/03, foi registrada uma morte por pneumonia. Em 28/03, o preso faleceu de insuficiência respiratória aguda em hospital da região. No último dia 2, faleceu um preso que estava internado para atendimento médico e teve como causas prováveis de sua morte uma doença reumática endocardite bacteriana, acidente vascular encefálico, sepse de origem não determinada e tuberculose.

*Nomes foram trocados a pedido das entrevistadas que temem represálias.

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