Maioria dos recapturados em saída temporária em SP não cometeu crimes, diz Defensoria

61,7% das pessoas presas descumpriram o toque de recolher e 12% estavam supostamente em locais proibidos; segundo relatório obtido pela Ponte, há registro de prisões irregulares

Ilustração: Junião

A maioria dos presos em saída temporária (a popular “saidinha”) recapturados em São Paulo não cometeu crimes. O dado é da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, com base na análise de 157 casos de pessoas nessa situação. Em 61,7%, as pessoas foram presas por estarem na via pública durante o horário das 19h às 6h da manhã, o que não é permitido. Outros 12% por supostamente estarem em locais proibidos e outros 12% por possível consumo de álcool.

O dado considera as prisões ocorridas na primeira saída temporária deste ano no estado — que aconteceu entre 12 e 18 de março. Na ocasião, cerca de 35 mil pessoas deixaram unidades prisionais e, até o dia 17, 417 haviam descumprido regras das saídas. A análise foi concentrada nas prisões ocorridas na Capital, região com maior volume de presos. 

Isso descortina, diz Diego Rezende Polachini, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria, a narrativa frequente de que os presos em saída temporária voltam a cometer crimes. “Muitas vezes, um pânico moral que se espalha no começo das saídas temporárias. ‘Não saiam de casa, bandidos estão na rua”, fala. 

A narrativa contribui para o apoio à aprovação de medidas mais restritivas aos presos, analisa Polachini, como foi no caso do PL das saidinhas. Especialistas ouvidos pela Ponte acreditam que o texto, caso seja sancionado como saiu do legislativo, consolide o fim do regime semiaberto. Após o veto de Lula ao trecho que acaba com as saídas para visita à família, a decisão está com o parlamento, que pode ou não derrubar a parte vetada.

O perigo é ainda maior, já que o levantamento da Defensoria mostrou também uma série de possíveis irregularidades nas prisões. São casos como de uma mulher em saída temporária presa em casa, de uma pessoa presa às 12h na cidade em que reside, sem qualquer indício de irregularidade.

Há também casos em que a pessoa descumpriu o toque de recolher para comprar remédio para a mãe ou levar a namorada ao hospital. Um homem que voltava para a unidade prisional no dia 18, data de retorno, foi preso em uma abordagem feita no horário permitido. Ele disse ter escutado do PM “vou acabar com a sua raça”. 

O pano de fundo disso é uma atuação inédita, aponta a Defensoria. Para o órgão, o Estado de São Paulo atuou para fundamentar as prisões de pessoas em saída temporária com pelo menos duas decisões.

No primeiro dia de saída, 12 de março, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), a Corregedoria Geral de Justiça e a Secretaria da Administração Penal de São Paulo (SAP-SP) publicaram resolução conjunta permitindo que quem fosse flagrado descumprindo medida poderia ser encaminhado para a unidade prisional mais próxima. 

A SSP-SP também anunciou parceria com o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para que policiais militares tivessem acesso aos processos de quem estava em saída temporária, permitindo que os agentes verificassem se eles estavam ou não cumprindo as medidas.

A consequência disso, fala a Defensoria, foi a Polícia Militar agindo como fiscal da medida. Dos 157 casos analisados, 91% foram prisões feitas pela Polícia Militar. Em alguns boletins de ocorrência, diz o órgão, os policiais e até mesmo os Guardas Municipais mencionam estarem atuando na “Operação Saída Temporária”. A situação também foi registrada no interior do estado. Rondas e diligências específicas para verificar custodiados teriam sido realizadas no período. 

Enquanto isso acontecia no Estado, os parlamentares avançavam na aprovação do projeto de lei (PL) das saidinhas. Guilherme Derrite, secretário da Segurança Pública de São Paulo, chegou a se licenciar do cargo para participar da votação no Congresso. Quando ainda era deputado federal, Derrite relatou o PL apresentando um substitutivo global — ou seja, mudando o texto quase na íntegra — sendo ele o idealizador do fim do benefício.

“Por essa conjuntura e como isso nunca aconteceu, parece-me que isso serviu para casar com o momento político de pressionar pela aprovação [do PL das saidinhas]”, afirma Polachini. 

O defensor público explica que o ideal em casos de descumprimento das medidas seria a elaboração de um boletim de ocorrência ou registro que fosse encaminhado para o juiz de execução penal. “É ele quem tem essa competência”, fala. O que se verificou na última saída foi o contrário. As pessoas foram levadas como em um flagrante, passaram por audiência de custódia e voltaram a unidades prisionais.

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Outro aspecto que chama atenção é a cor da pele dos presos. Em uma cidade que tem 10% da população negra, 72% dos recapturados na saída eram pretos e 28%, brancos. “Isso significa que a polícia está mais próxima, não no sentido de proteção, mas de fiscalização, de pessoas pretas ou pardas”, diz Polachini.

Os relatos foram reunidos pela Defensoria em um habeas corpus coletivo que pede o fim das prisões pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal de São Paulo das pessoas em saída temporária sem que haja flagrante de delito ou mandado de prisão. Rejeitado pelo TJ-SP, o pedido foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde ainda aguarda manifestação. 

O que dizem as autoridades

A reportagem procurou o Tribunal de Justiça de São Paulo, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo e a Secretaria da Administração penitenciária do estado para comentarem o relatório e as decisões tomadas. Apenas a SSP-SP respondeu. A pasta enviou uma nota uma primeira nota às 17h e, às 20h57, atualizou o texto.

Em nota, a SSP-SP disse informou que a parceria com a TJ-SP acontece desde 2023, ano em que Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Guilherme Derrite assumiram a pasta. Neste período, 1,5 mil detentos foram presos descumprindo regras das medidas temporárias e apenas 119 foram flagrados cometendo crimes.

Leia a nota na íntegra

A recondução de detentos que descumprem as normas legais do benefício de saída temporária é feita por meio de parceria do Governo de São Paulo e do Tribunal de Justiça de São Paulo desde 2023. Em todos os casos, os presos reconduzidos pela polícia a unidades prisionais passam por audiências de custódia nas 24 horas seguintes, cabendo à Justiça a avaliação de cada caso. Desde a implementação da medida, em junho do ano passado, cerca de 1,5 mil detentos beneficiados foram presos pela Polícia Militar por descumprimento das regras impostas pelo Poder Judiciário, dos quais 119 foram flagrados cometendo novos crimes. A medida contribuiu para a redução dos roubos e furtos em cerca de 6 mil ocorrências, durante os dias das últimas quatro saídas temporárias (junho, setembro e dezembro de 2023 e março de 2024), o que demonstra a efetividade do combate à impunidade promovida pela atual gestão.

Reportagem atualizada no dia 26 de abril de 2023 às 18h para incluir a primeira nota SSP-SP. O texto foi atualizado novamente no dia 29 de abril de 2023 às 9h20min para incluir o novo posicionamento da instituição.

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