Sem diálogo, a Universidade de São Paulo determinou a saída dos estudantes dando como alternativa uma bolsa-auxílio de R$500 ou outra vaga de favor no próprio Crusp, que deve ser encontrada pelos próprios estudantes
Desde de o dia 26 de julho deste ano o estudante Píi, 28 anos do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) vive a insegurança de não saber onde irá morar no próximo mês. Píi e outros 132 moradores do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (Crusp) foram notificados de forma informal pela Superintendência de Assistência Social (SAS) e pela Superintendência de Espaços Físicos (SEF) da USP que teriam que desocupar até o final de agosto os alojamentos do Bloco D do conjunto, mas não houve qualquer diálogo com os moradores.
O motivo alegado pela universidade é uma reforma sem qualquer emergência justificada a ser feita nos apartamentos que teria ao menos um ano de prazo para acabar. De acordo com o estudante que se mantém com uma bolsa de R$ 400 do Programa Unificado de Bolsas de Estudos para Apoio à Permanência e Formação de Estudantes de Graduação (PUB-USP), a USP não apresentou o planejamento das obras até hoje e nem fez a realocação dos alunos. “Se eu sair daqui vou ter que morar de favor, nem que seja na sala, em algum quarto por aqui. De fato precisamos de uma reforma na rede elétrica, mas não houve diálogo, não conseguimos falar nem com a SAS e nem com a zeladoria do Crusp”, diz.
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Sabendo disso, o Departamento Jurídico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP protocolou uma ação civil pública contra a USP a pedido dos moradores exigindo que a determinação para que 133 estudantes desocupem seus alojamentos no Crusp seja imediatamente anulada. O documento enviado à Justiça paulista na segunda-feira (16/8) também determina a realização de audiências de mediação envolvendo a USP e os moradores.
Além disso, a ação estipula que, se não houver consenso, a USP seja condenada a apresentar um cronograma de evacuação, devendo priorizar a reforma dos blocos vazios, com a desocupação em prazo razoável e medidas consistentes para assegurar o direito à moradia e educação dos moradores do Crusp. Entre elas, a ação indica: “a não retirada dos alunos e das alunas sem que haja realocação em outro local custeado pela própria USP, como, por exemplo, mediante identificação de vagas efetivas nos próprios blocos do Crusp ou outra alternativa viável ou o pagamento de bolsa-aluguel compatível com os custos de vida nos arredores da Universidade.”
No final de julho os estudantes tiveram uma reunião com a SAS, entidade responsável pelos alojamentos, onde receberam a informação de que após o dia 31 de agosto será feito o desligamento de luz e água e que eles deveriam se retirar dos imóveis até o dia 15 de agosto. Em 3 de agosto foi enviado um e-mail aos moradores com a primeira comunicação por escrito da desocupação.
No início deste mês a SAS postergou o prazo de desocupação em 15 dias, que passou a ser em 31 de agosto. Além disso, um calendário de pagamento do auxílio-moradia de R$ 500, sem maiores informações sobre o prazo de duração desse auxílio, foi apresentado.
Com isso, Píi afirma que a SAS mantém um diálogo individual com alguns estudantes que estão pedindo a realocação para o apartamento de outros moradores e outros que pedem um valor de R$ 500. “É insuficiente, a maioria não tem condições de estar complementando esse valor. A USP está fazendo pressão, desde o começo da semana estão quebrando o prédio do lado de fora, colocando placas da obra, cercando o prédio”.
Fora isso, a falta de emprego gera mais incerteza na vida do aluno. “A minha bolsa não vai renovar, estou mandando currículo, mesmo morando aqui precisamos comprar uma comida no fim de semana, pagar o transporte, na área de humanas não têm tanta oportunidade, ficamos em uma situação instável”, lamenta Píi.
Além da moradia, o Crusp também proporciona acesso a diversos serviços gratuitos, como o atendimento odontológico, hospital, empréstimo de bicicletas, serviços de manutenção, atendimento psicológico, entre outros. “Tudo isso permite que os alunos moradores do Crusp, notadamente em situação de vulnerabilidade social, detenham condições físicas e sociais para frequentar o curso”, diz a ação.
A ação do Departamento Jurídico XI de Agosto aponta que “é patente a condição de vulnerabilidade social que acomete os moradores, uma vez que os dormitórios são destinados somente aos alunos que não tenham condições financeiras de arcar com uma moradia na cidade de São Paulo”. Neste sentido, o grupo jurídico chama a atenção para a situação de desamparo dos estudantes. “Os moradores se veem desamparados pela instituição que havia lhes garantido uma permanência objetiva.”
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Assim como Píi, a estudante de pedagogia Sara Viena Moreira, 23 anos, está desempregada e não tem para onde ir caso tenha que sair do conjunto de moradia. Fora isso, ela já vive em situação irregular no Crusp, uma vez que, a entidade de assistência social da USP não regulariza a situação da estudante, mesmo após várias tentativas. “Não tenho como ir para fora daqui, agora está começando outro semestre e no meio de tudo outras dificuldades que já existem aqui como a insegurança alimentar. Então a situação inteira é de muita insegurança e ansiedade, a saúde mental de todo mundo está bem afetada, a saúde física também, nessa situação de insegurança a gente não consegue comer bem”.
De acordo com Sara, são cerca de 50 pessoas que não estão regularizadas no Crusp. Por meio do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), ela tenta a regularização desde 2018.
Mesmo sabendo da situação desses estudantes, a universidade disse para que eles procurassem vagas em outros apartamentos por conta própria, segundo ela. “Os irregulares entraram em contato com as assistentes sociais e elas falaram: ‘Vai ser irregular em outro bloco’, então é isso, estamos por conta própria. Além disso ficamos sabendo da reforma pela imprensa, não sabíamos a data de quando começaria”.
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Uma das estudantes do curso de Direito da USP que assina a ação junto aos advogados Maria Cecília de Araújo Asperti e André Ferreira, Marcela Aparecida Fernandes da Silva, 22 anos, diz que são várias as violações de direito cometidas pela USP nesse caso. “As alternativas oferecidas são completamente irrazoáveis. Dessa forma, o direito à moradia está sendo colocado em xeque. Além disso, a desocupação do bloco da forma que está sendo imposta implica na perda não só de um lugar pra morar, mas também de toda uma estrutura de apoio para que os alunos que estão em condição de vulnerabilidade econômica consigam acessar uma universidade pública. O direito à educação também está em jogo”.
Além disso, uma vez que a decisão para a desocupação foi tomada de forma unilateral pela USP e sem consulta alguma aos seus moradores, a estudante avalia que a garantia do contraditório e da ampla defesa foi violada. “Não foi dada a oportunidade de contestarem a desocupação que vai ser promovida em face deles. Sem diálogo, a única opção dada aos moradores foi aceitar que vai haver uma reforma e que, para tanto, eles devem desocupar o imóvel em um prazo curtíssimo de tempo”, aponta Marcela.
A ação civil pública aponta ainda que “desocupar os dormitórios por completo em um prazo extremamente exíguo, incluindo o transporte de móveis, em plena pandemia de Covid-19, o que revela uma desproporcionalidade e razoabilidade da decisão administrativa, assim como afronta direitos fundamentais à moradia e educação”. Na tarde desta quinta-feira (19/8), o Departamento Jurídico XI de Agosto entrou com um pedido de concessão imediata do pedido cautelar liminar formulado, que ainda está sem resposta da juíza Paula Micheletto Cometti.
Outro lado
A reportagem solicitou esclarecimentos à Universidade de São Paulo a respeito das reformas e das medidas que serão tomadas com relação à realocação dos 133 estudantes. A Ponte também questionou se o valor de R$ 500 é o suficiente para que os estudantes se mantenham em outros imóveis e para onde irão as pessoas em situação irregular. Além disso, foi perguntado se serão mantidos os benefícios ofertados aos estudantes do Crusp, como o atendimento odontológico, hospital, empréstimo de bicicletas, serviços de manutenção, atendimento psicológico, entre outros.
Em resposta à reportagem a USP enviou uma nota publicada no dia 27 de julho deste ano dizendo que: “O processo licitatório bem-sucedido foi finalizado e o contrato com a empresa Harus Construções ltda. assinado, tornando próxima a realidade desse momento memorável. A SAS estabeleceu um procedimento cuidadoso, a ser executado com cada estudante, visando à realocação temporária das/os alunas/os moradoras/es do Bloco D em apartamentos dos demais blocos do Crusp. Essas/es alunas/os têm sido contatadas/os pelas assistentes sociais, individualmente ou em grupo por apartamento, estabelecendo um diálogo e análise conjunta para chegar às melhores providências a serem tomadas”.
O comunicado diz ainda que a “Superintendência pede especial atenção de todas/os aos comunicados provenientes dos canais oficiais da USP como forma de assegurar a veracidade dos fatos e a circulação de informações que visam, genuinamente, às melhorias das condições de moradia no Crusp”.
Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo não respondeu às questões solicitadas.
Reportagem atualizada às 12h28 de 20/08 para a inclusão das respostas da USP.