“O Estado não imagina o erro que foi me prender de forma injusta”, diz educador preso por seis meses
Marcelo Dias não para. Ao receber a reportagem da Ponte em sua casa, na Vila Brasilina, zona sul de São Paulo, ele pede alguns minutos. Faz fisioterapia com sua mãe, que se recupera do Covid-19. Pede mais outros, recita mantras budistas antes de subir para preparar o café. Enquanto é entrevistado, para para atender o telefone, falar com representantes da ONG que preside, a Herdeiros Humanísticos. É sábado.
Com a pandemia, o trabalho da ONG se intensificou e eles passaram a distribuir cestas básicas e kits de higiene na região. Ao longo do dia, Marcelo foi à sede da Herdeiros Humanísticos para ajudar na distribuição de cestas básicas, passou num evento de um vereador para cobrar melhorias na região, foi a um supermercado onde voluntários de sua organização colhiam doações, atravessou bairros para ajudar a mobilizar o esforço de vizinhos na construção de um barraco para uma moradora que perdeu tudo e mediou um conflito entre vizinhos e usuários de uma praça.
Por toda parte, alguém chega para cumprimentar e conversar com ele: jovens numa praça que foram violentados pela PM e que ele ajudou a denunciar, uma mãe agradecendo a cesta básica. Quando o dia vai terminando, pergunto se ele vai para casa descansar: ele ri.
Em 2018, Dias foi preso em frente à sua ONG. Policiais militares atribuíram a ele, em meio a ofensas racistas e acusações infundadas, quase cinco quilos de pasta-base de cocaína que foram deixadas por ali. O educador parece querer recuperar os seis meses que os PMs que o acusaram, o delegado que o indiciou e o juíz que não o escutou, roubaram.
“Eu falo pra todo mundo: o Estado não imagina o erro que foi me prender de forma injusta. Porque eu comecei a abrir a mente de muitas pessoas, a educar nosso povo. Quando o Estado mata uma pessoa, ele está levantando mais 20, 30 para lutar. A gente está se organizando e eles tão dando munição pra gente se articular. E aí o Estado já era”, desafia.
Quando foi preso, Marcelo contou com a solidariedade da sua rede de contatos. “Eu vi a importância da mobilização da minha comunidade, das lideranças se organizando, da minha família, dos amigos, se mobilizando para minha liberdade, fazendo protestos, indo na porta da delegacia”. Segundo ele, tudo isso mudou sua visão das forças de segurança do Estado.
“Eu acreditava que a polícia tinha que ser participativa, sempre participei do Conseg [Conselho de Segurança] do meu bairro, queria aproximar a PM dos jovens. Hoje eu sou totalmente contra a militarização. Tem que acabar o tipo de polícia que a gente tem no nosso país, é uma máquina de triturar seres humanos de pele preta”, afirma.
Marcelo foi inocentado por falta de provas em abril de 2019. A experiência de injustiça fez com que ele passasse a se mobilizar em casos de violência do Estado. Ele montou um coletivo, SOS Forjados, que trabalha com familiares de pessoas presas injustamente e busca divulgar casos de flagrante desrespeito às prerrogativas legais e à presunção de inocência.
Ele também se envolveu na denúncia de casos como o de Rogério Ferreira Silva Jr., assassinado por um PM no dia 9/8, no Parque Bristol, próximo de sua casa. No sábado, gostaria de ter ido ao protesto que pede a liberdade de Kaique Alves da Silva, catador preso suspeito de ter furtado um celular mesmo com evidências de que ele não estava no mesmo local. Mas pela distância – e pelo tanto a fazer em seu bairro – não pôde.
Além disso, quando sua liberdade completou um ano, em 19 de dezembro de 2019, o educador realizou um protesto na frente do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Praça da Sé. Desde então, todo dia 19, ele volta ao lugar para mostrar sua indignação. “É um ritual meu. Pode estar chovendo, posso estar sozinho, mas vou”, conclui.
O que diz o tribunal que decretou a prisão de Marcelo
Por meio da sua assessoria de imprensa, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo enviou a seguinte nota: “O Tribunal de Justiça não pode se manifestar sobre matéria judicializada. Os magistrados têm independência funcional para proferir suas decisões de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação”.
O que diz o Ministério Público, que denunciou Marcelo
A Ponte escreveu ao MP perguntando se eles consideram que houve erro em oferecer a denúncia e manter um inocente preso cautelarmente e se o procedimento de acatar apenas a palavra dos policiais como prova é eficaz. Até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.
O que diz o governo João Doria (PSDB), que prendeu o educador
A reportagem também escreveu para a Secretaria de Segurança Pública (SSP). Foi perguntando se algum procedimento foi instaurado para investigar a ação dos policiais envolvidos no caso, se existe um plano para evitar que casos assim se repitam e como a polícia e a SSP enxergam as acusações de racismo e forjamento de evidências. Até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.
[…] Marcelo foi inocentado por falta de provas em abril de 2019, mas será impossível reparar toda a dor e sofrimento que teve com a situação. E o Estado, como fica? (Leia na íntegra – clique aqui) […]