Marcos do Val ensina policiais a prender mãos e pés de pessoas em abordagens

Apelidada pelo senador de “pacotinho tático”, prática é semelhante à ação de PMs contra homem negro amarrado em SP; para pesquisadores, técnica é considerada tortura

Em edição de 9 de outubro de 2015 do programa “The Noite”, Marcos do Val imobiliza as mãos do humorista Murilo Couto com uma algema de plástico pelas costas e usa o instrumento para segurar uma das pernas dobradas | Foto: reprodução/YouTube

Nas redes sociais do senador Marcos do Val (Podemos-ES), agora bloqueadas após operação da Polícia Federal, era possível visualizar diversas postagens, a maioria delas feitas pelo próprio parlamentar, de um tipo de imobilização muito parecida com o caso de Robson Rodrigo Francisco: homem negro suspeito de furto que teve os pés e mãos amarrados pelas costas com cordas por policiais militares de São Paulo na última semana. Ele usa o mesmo princípio, mas, ao invés de cordas, do Val ensina a usar as algemas presas nas mãos para segurar o pé dobrado pelas costas.

O “pacotinho tático”, nome usado por ele para apelidar essa imobilização, virou uma hashtag disseminada pelo parlamentar, especialmente no Instagram e no Facebook, em que ele divulga fotos feitas por policiais que usaram a tal técnica durante abordagens. O senador já ensinou essa forma de algemamento em emissoras de televisão para promover sua empresa de cursos de táticas de imobilização e defesa pessoal.

Em 2015, em entrevista ao programa The Noite com Danilo Gentili, no SBT, ao empregar o “pacotinho” no humorista Murilo Couto, do Val diz que esse é um tipo de técnica para ser usada contra suspeitos que têm “muita agilidade” para se soltarem. “A vantagem, Danilo, é que quando a gente liberou [a perna porque o humorista reclamou], ele não tá com nenhuma agressão, não foi violentado, não tem hematomas, não tem problema nenhum. Você manteve ele sob controle para que você faça o trabalho policial”, declarou na ocasião. “O policial não vai sofrer processo por ter sido violento e ele [a pessoa imobilizada] vai ficar numa posição em que ele vai evitar de fugir”, prosseguiu.

A Ponte localizou, por exemplo, a descrição do método do “pacotinho”, com o uso de algemas, como leg-lock (chave de perna, em tradução livre) em um relatório de 1994 da Anistia Internacional sobre abusos policiais na Dinamarca. A entidade considerou essa prática uma forma “cruel, perigosa e degradante” de contenção e apontou no documento que é “extremamente dolorosa” e pode lesionar membros e nervos.

Já o uso de cordas ou instrumentos similares para prender as pernas às mãos pelas costas é conhecido como hogtie ou hogtying (nó ou gravata de porco). A origem desse tipo de imobilização é imprecisa e é ou já foi usada em diversos países, inclusive por integrantes de forças da segurança pública, afirmou à reportagem Matthew McEvoy, pesquisador da Omega Research Foundation, organização do Reino Unido que pesquisa sobre uso de armas letais e menos letais e atua pela proteção de direitos humanos e combate à tortura. “É algo documentado, por exemplo, pelo comitê de prevenção à tortura aqui na Europa, em países como Eslovênia e Alemanha”, diz.

No Instagram, hashtag “#pacotinhotatico” tem 121 publicações. A maioria é do senador Marcos do Val reproduzindo imagens enviadas a ele por policiais de diversos estados | Foto: Captura de tela da página do Instagram

Em alguns departamentos de polícia dos Estados Unidos, onde a atuação é municipalizada, os policiais usam uma espécie de cinto chamado hobble, parecido com o utilizado para imobilizar as patas de animais. Uma reportagem de 2021 dos sites NBC News e The Marshall Project apontou que em 22 manuais de polícia das 30 maiores cidades norte-americanas havia proibição explícita do uso de hogtie. Em todo o país, identificaram 23 mortes envolvendo a prática ou o uso desse tipo de instrumento pela polícia desde 2010.

Os sites também levantaram que a polícia do município de Aurora, que proibiu o hogtie em 2020, usou o hobble em 350 pessoas desde 2016. Apesar de as pessoas negras terem representado 39% do total das prisões na cidade nesses cinco anos de intervalo, 46% das pessoas que tiveram os pés e mãos amarrados eram negras. Em 16% dos casos em que a polícia aplicou o hogtie, houve feridos que precisaram de atendimento médico.

O próprio Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que seria o equivalente ao nosso Ministério da Justiça, havia alertado para que o hogtie não fosse utilizado em um boletim de 1995 sobre como evitar mortes sob custódia de agentes de Estado. O documento orienta que uma pessoa algemada de bruços deve ser colocada de lado depois e não ficar com o rosto para baixo.

O Manual de Referência da ONU sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo na Aplicação da Lei também recomenda que o hogtie não seja utilizado por causar “desconforto e sofrimento desnecessários”, além de risco de asfixia porque a posição pressiona o diafragma, músculo que fica entre o abdômen e o tórax e é fundamental para a atividade respiratória. “Essa é a primeira razão para ser considerada uma forma de tortura”, aponta Matthew McEvoy. “Além da dor física, também existe o sofrimento mental: é degradante, é humilhante, um ataque à dignidade humana e está em desacordo com as práticas de direitos humanos.”

Quando a reportagem encaminhou imagens do “pacotinho tático” ao pesquisador, como o de um jovem fotografado dentro do porta-malas de uma viatura, ele considerou “chocante”. “Se já é difícil e doloroso para a pessoa estar nessa posição, estar em um ambiente com mais restrição física, em que não pode se mover, é ainda mais desumano”, declarou.

McEvoy explica que se de alguma maneira for necessário o algemamento dos pés, que seja com as pernas esticadas e a pessoa colocada de barriga para cima, sem comprometer a respiração. “O método tem que ser o menos invasivo possível e o último recurso”, afirma em referência ao manual de Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, também conhecido como Regras de Nelson Mandela.

Em 2020, a Omega Research Foundation participou da elaboração de um manual em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre como utilizar algemas e outros instrumentos de contenção em audiências judiciais de maneira que não fira os direitos fundamentais ou gere riscos de vida para a pessoa contida.

O parâmetro é a súmula vinculante nº 11, proferida em 2008 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que estabelece o seguinte texto: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Uma súmula vinculante significa a unificação de um entendimento jurídico que deve ser seguido de forma obrigatória pela administração pública e por órgãos do Poder Judiciário.

No Brasil, não é parte do treinamento e do ensino nas academias de polícia o uso de cordas como instrumento para conter os membros de uma pessoa nem de se prender os pés junto às mãos pelas costas. A própria Polícia Militar de São Paulo, assim que o caso de Robson repercutiu, declarou que a prática não faz parte dos manuais da corporação.

“Pelas normas escritas da polícia, oficiais, o policial pode usar os conhecimentos de defesa pessoal para imobilizar o oponente e usar algema”, explica Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e tenente-coronel da reserva da PM paulista. “Não existe isso [de prender as pernas dobradas junto às mãos pelas costas] em nenhum manual, em nenhuma norma”, enfatiza.

Entre os instrumentos de contenção que podem ser utilizados como menos letais estão a tonfa (tipo de cassetete), spray de pimenta e arma de eletrochoque (também chamado de taser). No caso de Robson, os PMs alegaram que ele teria resistido à prisão e os ameaçado de morte e que por isso foi amarrado pelos pés e mãos.

Autor de O Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares, o especialista aponta, contudo, que existe uma “subcultura” nas polícias que fomenta práticas que não estão nos Procedimentos Operacionais Padrão (POP) ou na formação oficial. “É um conjunto de normas, valores e atitudes que é compartilhado de maneira informal, mas mais forte que as normas oficiais, que realmente de fato determina como devem ser as ações dos policiais no dia a dia”, afirma. “O que estamos vendo aí é a evidência na prática da subcultura policial com essas normas peculiares de como imobilizar certos segmentos da população”, critica.

Ele destaca que, apesar de ser “informal”, a própria instituição tem conhecimento dessa subcultura, mas se omite e, muitas vezes, considera como “uma maneira útil de combater a criminalidade”. “A subcultura policial permite que o racismo estrutural se dissemine e se fortaleça dentro da cultura policial como em outras instituições que compõem o sistema de justiça criminal porque o racismo é uma característica marcante na vida pública brasileira”, afirma.

Paes de Souza ressalta, ainda, que essas práticas, tanto do caso de Robson quanto o “pacotinho” do senador Marcos do Val, desumanizam a pessoa abordada. “O oponente não é visto com uma pessoa, um ser humano semelhante à pessoa que está atuando contra ele. Ele é visto como um animal, um objeto, um algo não humano. Então, vale qualquer coisa para aplicar, para imobilizar ou dominar”, pontua.

Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani concorda. “Você não pode sair do contexto de uma imobilização para preservação da vida de terceiros e da pessoa para uma imobilização que visa claramente gerar um sofrimento, visa gerar uma punição, saindo da legalidade e entrando no campo da tortura”, diz.

O pesquisador sinaliza que o senador também fomenta a “memetização” de violações de direitos humanos. “A espetacularização da violência feita por agentes políticos com muita visibilidade, com cargos políticos, como, por exemplo, um senador da República falando de violações como se fosse uma brincadeira, é um elemento que passa uma mensagem para os policiais de que isso é legítimo e, muitas vezes, de que isso é desejável”, alerta Langeani.

Ele também analisa que essa “celebração da violência” opera pela lógica do racismo. “Você não vai achar nenhuma postagem do senador Marcos Val cobrando que a Polícia Federal fizesse um pacotinho tático com o ex-deputado Roberto Jefferson, que tentou matar três policiais. Pelo contrário, o Marcos do Val estava fazendo visita para ele no hospital”, critica. “Não se trata de cobrar medidas duras contra criminosos, se trata de fazer um recorte específico contra um tipo de criminoso que eles consideram, que é geralmente o crime patrimonial, pequeno crime de drogas. Para além de toda a violação de direitos, a gente tem uma hipocrisia generalizada.”

Outro problema indicado pelos especialistas é a atuação dos órgãos de controle nesses casos, como o Ministério Público, o Judiciário e as corregedorias. No caso de Robson, na audiência de custódia, que tem como princípio analisar a legalidade e a necessidade de uma prisão, além de verificar se o preso passou por algum tipo de violação, tortura ou constrangimento pelos policiais, tanto a promotoria quanto a juíza não consideraram que houve violência contra o homem.

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Os PMs usavam câmeras nas fardas desde o início da abordagem e a juíza só solicitou a íntegra das filmagens uma semana depois, quando a Defensoria anexou o vídeo gravado por uma testemunha que chegou a ser coagida pelos policiais a não filmar e que foi ignorada pela Polícia Civil. Questionada pela Ponte, a assessoria do tribunal justificou que Robson negou ter sofrido tortura quando foi perguntado e que, por isso, não pediu as imagens das câmeras naquele momento.

Contudo, Langeani avalia que o sistema de justiça deveria ser mais “proativo” e verificar os casos. “Deveria ser uma praxe que esses vídeos fossem disponibilizados na audiência de custódia para consulta”, afirma. “Em muitos casos, a gente sabe que o suspeito pode ter apanhado a vida inteira da polícia e não achar que aquilo é um tipo de violência. Mas isso não impede o Estado de fazer aquela apuração. Mesmo que o preso diga que não sofreu violência ou porque ele se sinta ameaçado pelo policial que está ali atrás dele [na audiência], é papel dos outros atores do sistema de justiça trazerem visibilidade para essa violência”, enfatiza.

O que diz o senador

A Ponte tentou contatar o senador Marcos do Val sobre o “pacotinho tático” e os meios de imobilização que ferem os direitos humanos, mas não houve resposta.

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