Atriz, diretora e cantora, única travesti no elenco da série brasileira 3%, da Netflix Brasil, artista lança nova música de trabalho sobre sexualidade
“O processo criativo é muito ligado a minha existência, é impossível me imaginar sem ser artista”, diz Marina Mathey, 27 anos. Atriz, diretora e cantora, Marina lançou no último dia 29 de outubro o seu primeiro single, “Monstro“, que aborda a relação de corpos trans com a sexualidade.
Foi durante o processo de ensaio de um espetáculo na EAD (Escola de Arte Dramática), da USP (Universidade de São Paulo), onde se graduou, que Marina percebeu que era uma travesti. “Estávamos ensaiando ‘Angústia’, feito a partir do livro de Graciliano Ramos, e a minha ficha caiu: nossa, sou travesti”, narra em entrevista à Ponte.
“Foi um flashback de todas as coisas que sempre propus no teatro, tava ali na minha cara. Tanto que o meu nome vem de uma personagem desse livro do Graciliano. Aí eu fiquei dois anos sem conseguir mostrar minha travestilidade, fui caindo no buraco. Me fechando, com muita crise de pânico, ansiedade, depressão, várias coisas”, lembra.
Leia também: Oscar prova: pessoas trans podem ser interpretadas por… atores trans
Nesse meio tempo, conta Marina, havia uma enorme dificuldade de falar com as pessoas sobre o assunto. “Falei com duas amigas e mais para frente com um amigo aqui, um amigo ali, mas chegou uma hora que não dava mais”. Em 2016, após uma performance feita na Parada LGBT, a artista decidiu contar para todas as pessoas sobre a sua identidade de gênero.
“Posso fazer uma coisa aqui e uma coisa ali, mas o processo artístico é um espaço de pesquisa de mim mesma, pesquisa do mundo”, define.
Do teatro para a Netflix
Desde os 12 anos, Marina Mathey já sabia que nasceu para ser atriz e começou a fazer teatro. Nascida em Americana, interior de SP, veio para capital paulista aos 15 anos para se profissionalizar. Aos 16 anos, em 2010, mudou definitivamente. Teve todo o apoio de sua família para a mudança. “Morei de favor e fiz vários corres para me manter aqui”.
Depois do curso e de terminar o ensino médio, entrou para a EAD, onde começou a se entender uma pessoa trans. “De certa forma eu precisava sair da EAD para transicionar para não lidar com as várias camadas de violência estrutural. Sempre vivendo no teatro e com um pouco de publicidade”.
Leia também: Coletivo de Artistas Transmasculines: ‘A nossa luta é primeiro por visibilidade’
Pouco antes da transição, Marina fez teste para uma mega produção da Netflix Brasil, que viria a se tornar a primeira produção da filial da gigante do streaming no país. A série 3% é uma distopia de um futuro não tão distante em que a sociedade é dividida em duas: os que merecem ter luxo e os que são abandonados à miséria.
“Eu tinha feito teste antes de transicionar e não rolou. Em 2017 me chamaram de novo porque estava pensando em transicionar uma personagem que ainda não estava na primeira temporada. Eles tinham dúvidas se deixaram o personagem como cis ou se transformariam em um personagem trans. Fiz testes para pessoas com as duas possibilidades e no fim rolou”, conta.
“Entrei e fui até a quarta (e última) temporada, que foi quando minha personagem ganha mais destaque. Foi a primeira vez que eu estive em um set de filmagem com uma estrutura tão grande. Foram três anos seguidos fazendo esse trabalho. Eu saio do 3% muito feliz com o resultado e da Ariel ter crescido, poder virar uma personagem trans vivida por uma atriz trans na Netflix Brasil. É uma série que me abriu portas e me fez amadurecer muito”, comemora.
A atriz conta que, durante os anos que deu vida a Ariel, sempre batalhou por mais representatividade trans dentro da série, que contou com pontas com a cantora Liniker e o ator Daniel Veiga, ambos transexuais. No time cisgênero de 3% havia nomes como Bianca Comparato, Rodolfo Valente, Vaneza Oliveira, Zezé Mota, Fernanda Vasconcellos e Maria Flor, entre outros.
Leia também: De objetos a sujeitos de pesquisa: como alunos trans conseguiram mudar a UFBA
“Desde que eu entrei, sendo a única travesti do elenco, eu falava que precisávamos de mais e trazia a discussão de que a Ariel era uma figura extremamente importante, que ela merecia ganhar um lugar de escolha, um espaço de autonomia da personagem”.
“A Ariel lutou pela meritocracia e isso reflete sobre as nossas existências, enquanto pessoas trans, de lutar por tudo, conseguir tudo, porque só depende de mim, vou chegar lá, essa grande ilusão. Isso representa as pessoas trans que muitas vezes acessam espaços de poder e se esquecem de suas raízes. Depois vem a desilusão, porque é óbvio que esse lugar não vai contemplar ela, o espaço da meritocracia não é feito para nos validar”, analisa Marina.
Pandemia e sexualidade: o surgimento de ‘Monstro’
Foi ao lado de uma colega de elenco de 3%, que também foi colega de faculdade, que Marina Mathey lançou seu novo trabalho musical. Com produção artística de Amanda Magalhães, que deu vida à personagem Natália na série, o single “Monstro” chegou nas plataformas digitais no fim de outubro.
“Eu e Amanda já vínhamos conversando de produzir alguma coisa juntas, mas ainda não sabíamos o que. Aí eu falei ‘mana, você topa produzir ‘Monstro’?’ e mandei para ela conhecer e ela topou. Então ela produziu a minha música e deixamos a possibilidade de cantar algo juntas mais para frente”, lembra.
Pouco depois, em junho de 2020, o processo de criação e produção do single e do clipe, começou. “Eu sou uma pessoa que gosta de fazer um pouco de tudo nos meus processos de criação, não por controle, mas porque é uma forma minha de experimentar”, brinca Marina. “Eu fui para a música para experimentar a minha criação autoral, entendendo que o lugar do canto e da música era um canal que me permitia uma expressão criativa maior, que fazia mais sentido”.
Gravado em agosto, durante o quinto mês de pandemia do coronavírus, o clipe precisou ser pensado dentro desse contexto. “A música tem essa dicotomia: eu preciso do outro, eu não preciso do outro, tem dias que te quero inteiro e outros só um pedaço cabe. Essa dependência afetiva que temos, do encontro do outro, seja ele qual for, mas no caso do ‘Monstro’ do afetivo e sexual, e por outro lado uma potência da gente se sentir plena sozinha, sem precisar do encontro. São sensações que me acompanham bastante”.
“Nesse tempo todo da pandemia eu tava totalmente isolada e foi a primeira vez que eu saí para um trabalho, pensando que eu não podia me encontrar e gravar um clipe me relacionando com outra pessoa, não condizia com o momento, não dava para arriscar”, explica.
Foi então que Marina teve a ideia de trazer frutas para o clipe. “Eu comecei a pensar, então, a relação com as frutas, de como seria me relacionar com elas. Eu quis brincar um pouco com essa ideia de lidar com frutas, na solidão em casa, poderiam ser gatilhos dessa sexualidade”.
“Aí fui elaborando isso, pensando e pensando qual seria o caminho. Tem a questão dessa música não ser uma música leve e delicada. A sexualidade é tão reprimida na sociedade e ela é um norte de pesquisa para mim. É lidar com a morte, como no orgasmo, que é a pequena morte. É um perigo para a sociedade temos prazer com o nosso corpo”, elabora Marina.
A artista já pensa nos próximos passos da sua carreira. Em 2021, pretende lançar seu primeiro “álbum visual”, como faz questão de dizer. Além do álbum, conta, pretende lançar também um curta-metragem, criado em parceria com a Casa Chama e com um grupo composto por 90% de pessoas trans.
“Pouco a pouco venho me encontrando com a minha banda, virtualmente, para pensar o meu álbum visual. Durante esse ano já levantamos todo o repertório, já temos letra e música de todas as canções, ainda sem os arranjos. É a primeira vez que vou lançar um projeto bastante autoral e teremos duas participações especiais”.
Um dos nomes ainda é segredo, mas Marina adianta que é dos mais conhecidos da cena trans atual. A segunda ela conta: é a cantora argentina Susy Shock. Aliás, há mais planos ao lado de Susy. “Ela está comigo em um projeto em que o Reino Unido financia na América Latina”.
“Fomos convidadas e estamos juntas para elaborar para fevereiro um projeto de criação entre eu, Susy, Eme, que é transmasculine e do Peru, e a Delfina Martínez, que é uma travesti preta do Uruguai. Estamos elaborando um projeto musical com esse financiamento”, antecipa.
[…] Leia também: Marina Mathey: ‘O processo artístico é um espaço de pesquisa de mim mesma’… […]
[…] Leia também: Marina Mathey: ‘O processo artístico é um espaço de pesquisa de mim mesma’ […]