Mesmo com lei, Justiça nega prisão domiciliar para cerca de 80% de mães e grávidas

    Prevista pelo Marco Legal da Primeira Infância desde 2016, prisão domiciliar é ignorada em audiências de custódia e processos de primeira instância, segundo ITTC

    Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ

    “O dia a dia na prisão, quando você é mãe de uma criança, é o de uma mãe olhando para a outra em contagem regressiva, imaginando o corredor da morte, da entrega do seu filho”. Egressa do sistema prisional, Desirée Mendes descrevia a um público pequeno no centro de São Paulo, o período em que esteve presa na capital, acusada por tráfico de drogas, enquanto era mãe de três filhos pequenos. 

    Durante evento, na última quarta-feira (4/9), para o lançamento do relatório “Diagnóstico da Aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o Desencarceramento de Mulheres”, do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Desirée relatava uma realidade verificada pelo estudo: o direito ao exercício da maternidade, previsto em lei, tem sido negado pela Justiça brasileira a gestantes e mães presas provisoriamente na maioria dos casos analisados.

    Sancionada em 2016, a Lei 13.257 garante a aplicação da prisão domiciliar a presas provisórias quando gestantes e mães de crianças de até 12 anos ou com filhos portadores de deficiência. O relatório do ITTC, contudo, revela que a maioria das mulheres que se enquadram nesse perfil é mantida na prisão, a partir da análise de decisões judiciais em audiências de custódia e processos de primeira instância.

    O estudo acompanhou o caso de 601 mulheres em três etapas de julgamento: audiências de custódia, processos de instrução e recursos em tribunais superiores. Nas duas primeiras fases, foram acompanhadas as decisões do Fórum Criminal da Barra Funda (SP), entre junho e agosto de 2018, e do Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, entre março e novembro do mesmo ano. Já na última etapa, os processos analisados são de março de 2016 a julho do ano passado, a maioria de Tribunais Superiores da capital paulista (52%) e os demais vindos outras regiões brasileiras, do sul ao norte do país.

    Segundo Amanda Rodrigues, uma das autoras da pesquisa, verificou-se nas primeiras etapas processuais a existência de padrões decisórios pautados em “noções subjetivas de gênero e maternidade”.

    “Ainda existe uma maioria [de juízes] que usa critérios não fundamentados em lei para a não aplicação do Marco Legal. São decisões que demonstram que a questão de gênero ainda é muito subentendida e a noção da maternidade muito pautada em valores morais dos atores judiciais”, avalia a pesquisadora.

    De acordo com o relatório, nas audiências de custódia foram assistidas 201 mulheres, das quais 56% são negras, 53% jovens entre 18 e 29 anos, e 74% com renda mensal de até R$ 1.000. Entre as potenciais beneficiárias da prisão domiciliar, 83% tiveram o direito negado nessa primeira fase. 

    No CDP de Franco da Rocha, as decisões judiciais seguem um padrão parecido: 80% das possíveis beneficiárias não tiveram suas prisões provisórias convertidas em domiciliar. Do total dos casos analisados, a maioria é também de mulheres negras (62%) e jovens (54%), enquanto 26% declararam que sua ocupação profissional se relacionava a serviços domésticos e de limpeza. 

    Sobre o perfil das mulheres acompanhadas nas primeiras etapas da pesquisa, Amanda ressalta a seletividade das decisões condenatórias. “A gente sabe que essa é uma visão seletiva, uma vez que ela recai sobre a maioria das mulheres pobres, negras e jovens, de territórios geralmente privilegiados para ações da polícia”, avalia.

    Dados divulgados pelo Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), no ano passado, confirmam a avaliação da pesquisadora. Segundo o mais recente relatório do sistema, há um perfil comum entre as mulheres no sistema penal brasileiro: 50% têm entre 18 e 29 anos, 62% são negras, 45% não chegou a completar o Ensino Fundamental, a maioria possui dificuldade de acesso a ocupações profissionais formais e 74% delas têm filhos.

    Guerra às drogas

    Ainda segundo Amanda, também foi possível identificar nas fases iniciais da pesquisa que a maioria das mulheres mantidas presas foi sentenciada por crimes relacionados ao tráfico de drogas, embora a maior parte dos casos que chegavam às audiências e tribunais fossem de infrações patrimoniais relacionadas a furto e roubo.

    “A gente pode relacionar o aumento do encarceramento feminino com as operações feitas a partir da Lei de Drogas [promulgada em 2006], porque foi a partir daí que o encarceramento de mulheres cresceu em proporções muito maiores que o masculino”, explica.

    De acordo com o Infopen, entre os anos 2000 e 2016, houve um aumento de 656% da população carcerária feminina, enquanto a masculina cresceu 293% no mesmo período. O sistema aponta que a maioria das mulheres encarceradas no país responde por crimes praticados sem violência, sendo o tráfico de drogas o mais recorrente, responsável por 62% das prisões. O furto, crime patrimonial também praticado sem violência, é responsável por 9% do encarceramento, enquanto a incidência de roubo é de 11%.

    Tribunais Superiores

    Na última etapa da pesquisa, o instituto acompanhou 200 decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todas relativas a mulheres que teriam direito à prisão domiciliar. Neste grupo, diferentemente dos anteriores, a maioria dos casos recebeu a substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Do total, 11 tiveram liberdade e, das 189 mulheres restantes, 116 tiveram concedida a domiciliar e 73 tiveram o pedido negado. A taxa de concessões de prisão domiciliar nos Tribunais Superiores foi, portanto, de 61,37% e a de negativas de 38,62%.

    Para Amanda, conforme as mulheres se aproximam das instâncias superiores, mais “abstratas” elas se tornam aos olhos da Justiça, uma vez que os juízes não têm acesso ao perfil das condenadas. Esse distanciamento físico, segundo a pesquisadora, “torna mais fácil para os ministros e ministras reconhecerem-nas enquanto mães, dentro de um ideal abstrato, a serem protegidas por suas decisões”.

    A pesquisa indica ainda para uma mudança no perfil de quem tem acesso a instâncias superiores quando comparado a quem chega às fases iniciais do processo. “A maioria possuía advogado constituído. Eram, por exemplo, esposas de políticos, funcionárias públicas e advogadas, ligadas a crimes de colarinho branco e que ocupam uma posição econômico-social muito distinta daquelas que auferem sua renda através de atividades informais e instáveis”, explica Amanda.

    Habeas corpus coletivo

    Em fevereiro do ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou, por meio de um “Habeas Corpus Coletivo”, que a aplicação da prisão domiciliar deveria ser concedida a todas as mulheres na condição de gestante ou mãe previstas pelo Marco Legal da Primeira Infância. Em dezembro daquele mesmo ano, foi publicada a Lei 13.769, estabelecendo critérios objetivos para a substituição da prisão preventiva por domiciliar.

    Proferida pelo relator Ministro Ricardo Lewandowski, a decisão, no entanto, foi mais restritiva que a lei de 2016. Nela, foram incluídas exceções nos casos de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, contra descendentes, ou ainda em “situações excepcionalíssimas”.

    “Mesmo assim, o que a gente viu é que não são os crimes dessa natureza que levam os juízes a negar. Então a maioria das mulheres que a gente analisou está sendo acusada de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, como tráfico de drogas ou furto. Mas, aparentemente, os juízes seguem considerando o tráfico como um crime gravíssimo”, afirmou Irene Maestro, também pesquisadora do ITTC e uma das autoras do relatório, durante o lançamento.

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