Mães de Maio participam de performance criada pela atriz Lucimélia Romão sobre letalidade policial, dor e racismo em SP
Os baldes pretos enfileirados causaram certa estranheza em quem passava pelo Largo da Batata, zona oeste de São Paulo, no último sábado (28/9). Uma piscina de plástico vazia no meio dos baldes tornava a cena ainda mais insólita. Um alto-falante anunciava, seguidamente, nome, idade de uma vítima do Estado e terminava com a frase “homicídio policial”. Era também do sistema de som que vinham, de tempos em tempos, um amedrontador barulho de helicóptero e sirene da viatura da PM.
Perto da piscina, 30 mulheres do Movimento Mães de Maio se preparam para o início da performance.
Os mil baldes pretos continham 7 litros de água tingida de vermelho em referência ao sangue derramado pela violência do Estado. O volume é o mesmo que, em média, o ser humano tem de sangue no corpo. Na alça de cada balde, uma etiqueta com nome, idade e a causa da morte: homicídio policial.
Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, toma frente e recita um texto que soa aos ouvidos como uma poesia trágica sobre dor e realidade que cada uma daquelas mães conhece bem.
“Levaram nossos filhos, pais, avós e bisavós. Tudo no mesmo dia que insiste em não acabar. É a mão do ‘capitão do mato’ que está atrás do homem fardado. Nossos filhos não viraram monumento, nem nome de rua.
Nós carregamos eles na nossa barriga. Como ousam negar a sepultura dos nossos? Não podemos ter medo da bala, nem do açoite. Mas lembrem: se que eles morreram como filho, irmão, pais e avôs, não deixem que meu grito se transforme numa palavra muda. Nossos mortos têm voz, têm mãe”, falou Débora.
Um sinal toca. As mães se aproximam da piscina com baldes nas mãos. Débora continua: “Edson Rogério Silva, presente”. E despeja o conteúdo na piscina. Sucessivamente, uma a uma, as participantes fazem o mesmo gesto com cada balde até que todos estivessem vazios.
Criada pela atriz, performer e artista de rua Lucimélia Romão, “Mil litros de preto – O largo está cheio” inaugura a 9ª Mostra 3M de Arte – Manifestos por outros mundos possíveis, que segue no Largo da Batata até dia 28 de outubro. A curadoria é de Daniel Lima, que foi o responsável por colocar Lucimélia em contato com Débora Silva, fundadora das Mães de Maio.
Em entrevista à Ponte, Lucimélia conta que pensou a performance depois de conhecer a história de Marcos Vinicius da Silva, 14 anos, morto no dia 20 de junho do ano passado, com um tiro na barriga dentro da escola Ciep Operário Vicente Mariano, onde estudava, no Complexo da Maré, zona norte do Rio. “Eu estava fazendo um estudo sobre racismo estrutural no Brasil e essa morte me bateu muito forte porque eu vi a teoria na prática. Eu fui tentar expurgar o que é essa violência que as mulheres negras, pobres, periféricas vêm sofrendo ao longo da história do Brasil. E então eu montei esse trabalho, uma performance-instalação para tentar dimensionar e mostrar para a sociedade o que vem acontecendo e que o movimento negro denuncia há tanto tempo”, explica Lucimélia.
A performance foi apresentada pela primeira vez no ano passado na Universidade Federal de São João Del-Rey. Lucimélia conta que repetiu o mesmo ato, de lançar baldes com água vermelha em uma piscina a cada 25 minutos, durante 60 horas.”No final do segundo dia, eu comecei a ter dificuldade para levantar. Porque a cada 25 minutos, eu virava um balde na piscina para encher uma piscina de mil litros. A minha mãe que estava me assistindo começou a olhar no relógio e me acordar minutos antes de dar 25 minutos. Dessa forma eu conseguia me preparar, soava o alarme eu ia lá e jogava o balde e, assim, consegui terminar a performance. Ficou difícil fazer a ação sem ela. E comecei a perceber que não dava pra fazer isso sem mãe”, conta.
Em pesquisas sobre o tema também conheceu as Mães de Maio e, com ajuda de Daniel Lima, fez contato com Débora que prontamente topou o desafio. “Eu sinto satisfação de ver essa performance acontecer. Estar com as mães aqui representa muito para mim, para a arte contemporânea, para a militância. A gente estar junto e fazer a união de caminhar junto. Porque uma coisa é eu falar sozinha, elas falarem sozinhas, agora a gente juntas é outra coisa. a importância desse trabalho de hoje é imensa”, conclui Lucimélia Romão.
Dois casos tiveram destaque ao final da performance: Ágatha Felix, 8 anos, morta no dia 20 de setembro no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante uma operação policial; e Miguel de Souza, 12 anos, assassinado no dia 6 de setembro, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Débora lembrou, ao microfone, conforme mostrou reportagem da Ponte, que um PM passou na casa de Miguel dias antes de ele ser morto e falou para a mãe “encomendar um caixão pequeno”.
Algumas mães se revezam no microfone homenageando a memória do filho, filha, neto, e pedindo o fim do genocídio. “Dia 2 de outubro completa 27 anos do Massacre do Carandiru. Há 27 anos aconteceu esse massacre. Mas é preciso falar, é preciso dizer que todos os dias na periferia tem um massacre. Todos os dias as mães choram, todos os dias tiram o direito dessas mulheres negras, pobres, periféricas de serem mães na periferia. Até quando vamos suportar tudo isso? Temos que nos unir e avante. Chega de matança. Se antes já matavam, com esse governo que está aí, a ordem agora é pra matar mesmo”, conclui Miriam Duarte Pereira, ativista da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos).
No final, as mães fizeram um grande círculo e encerraram com as mãos unidas rezando um Pai-Nosso, que é para proteção e, sobretudo, para seguir tendo força na luta.
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