Versão de que Forças Amadas teriam enfrentado Jair Bolsonaro para preservar a democracia é uma “falácia” espalhada pelo “jornalismo declaratório”, afirma Acácio Augusto, professor da Universidade Federal de São Paulo
Na última semana, o troca troca de ministros da ala militar trouxe à tona novamente o debate sobre a presença dos militares na política. As discussões voltaram quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou a troca de seis ministros, tudo isso às vésperas do dia em que o golpe militar de 1964 completou mais um ano.
O general Fernando Azevedo e Silva saiu do ministério da Defesa, sendo substituído por Braga Netto, que começou os trabalhos assinando um texto emque dizia que a ditadura militar deve ser “celebrada”. André Mendonça, deixou o ministério da Justiça para o posto ser ocupado pelo delegado Anderson Torres, aliado da bancada da bala. Já o general Luiz Eduardo Ramos foi para a Casa Civil.
Na dança das cadeiras, Mendonça foi para a Advocacia-Geral da União (AGU) ocupando o lugar de José Levi. O embaixador Carlos Alberto Franco França assumiu o Itamaraty. E a deputada federal do centrão Flávia Arruda (PL-DF) foi para a Secretaria de Governo, no lugar do general Braga Netto.
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Assistimos também a uma debandada coletiva dos comandantes das Forças Armadas, como reação à demissão do ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Os comandantes Edson Leal Pujol, do Exército, Ilques Barbosa, da Marinha, e Antônio Carlos Bermudez, da Aeronáutica, deixaram seus cargos à disposição de Bolsonaro, que preferiu trocar a cúpula de todas as Armas.
Logo, uma série de teorias começaram a circular nas redes e nas telas de televisão, alguns veículos afirmaram que a principal justificativa para a derrocada dos comandantes foi a recusa de Azevedo e Silva de apoiar a intenção de Bolsonaro tomar medidas duras contra os governadores que decretassem fases emergenciais ou lockdowns contra a Covid-19.
Por outro lado, houve aqueles que apostaram em uma nobreza dos comandantes pelo zelo à democracia e à República ao saírem dos altos postos, que também foi interpretada como uma negação à política.
Todo esse cenário é contestado pelo professor Acácio Augusto, do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASinTec/EPPEN-UNIFESP).
Em boletim recém publicado pelo grupo de pesquisadores do LASinTec chamado “Militares no Brasil: o golpe de Estado permanente”, eles ressaltam: “As Forças Armadas brasileiras sempre estiveram envolvidas na política nacional e quase sempre no comando”. Em entrevista à Ponte, Acácio lembra que os militares formam uma organização com interesses políticos, com intervenção nas mais diversas áreas da sociedade ao longo da história.
Confira a entrevista:
Ponte – Recentemente o presidente Jair Bolsonaro trocou vários ministros colocando militares novamente no governo. Quais as razões dessas trocas na sua visão?
O Bolsonaro não à toa é um presidente sem partido, ele é o candidato do “Partido Militar”. Então, todos esses militares da ativa e da reserva, que durante todo esse tempo influenciam na política brasileira, tentam influenciar mais ou menos ao longo da história. Tentam garantir as suas verbas, tentam manter seus postos de poder, ampliar a sua zona de influência.
O Piero Leiner, um antropólogo professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que pesquisa as relações entre militares e governos, conta que quando um clube de reformados lá do Rio de Janeiro, do qual Mourão faz parte, publicou uma nota comemorativa ao 31 de março, a o que eles chamam de “Revolução Gloriosa “,decidiram apostar com Bolsonaro como o candidato deles desde 2014. Tanto que o Bolsonaro só usou o partido para se candidatar, porque o programa que ele representa é dos militares.
Então, quando a imprensa fica dizendo “os militares não querem se envolver na política”, é uma falácia, eles se envolvem o tempo todo. Segundo, obviamente que existem disputas internas entre eles. Uma ala que é mais radical, uma ala é menos radical, uma é mais simpática ao bolsonarismo, outra é menos simpática. Mas a questão é inversa, Bolsonaro sabe o quanto que ele depende dos militares. E depende cada vez mais, conforme ele vai se tornando um presidente fraco.
Ele [Bolsonaro] cria situações com as Forças Armadas para dizer que ele está comandando tudo, mas no fundo ele não vai fazer nada que desagrade os militares, ele sabe mais do que ninguém que ele depende desses caras. Em relação às trocas, pode ter sido um acordo interno, um pequeno desentendimento.
É um jogo complexo, mas chega a ser mais simples, é como uma mobilização de partido. Se um partido ocupa um governo e ele vai trocando membros do próprio partido especula-se que tem algum racha dentro do partido. Eu acho que não chega a ser um racha, mas chegam a ser adequações, porque a maior preocupação dos militares é manter essa boa imagem que tem com a população civil brasileira, mesmo com ele [Bolsonaro] sendo um sanguessuga do Estado.
Ponte – Em governos anteriores à ditadura civil-militar os militares se envolviam na política com tanta intensidade?
Os militares sempre foram uma força importante na política nacional. Na verdade, a história recente do Brasil marca essa participação desde sempre. O próprio Estado brasileiro é fundado por uma missão militar de massacre do seu próprio povo que é a campanha contra Canudos, de lá pra cá a República foi feita por marechais. Na primeira República, o Estado Novo foi permeado por militares, houve um pequeno interregno ali no governo Juscelino, mas com presença também de militares.
E obviamente, a Ditadura Civil Militar de 1964 a 1985 e no que se chamou de transição democrática, que os próprios militares nomearam como lenta, gradual e segura. Lá já havia uma disputa no interior das forças militares que ocupavam o governo, entre uma ala mais radical, que era a ala do porão, que queria manter o regime, e uma ala favorável à abertura. De qualquer maneira, eles conduziram a abertura, que inclusive garantiu a presença deles na própria formulação da Constituição e os artigos 142 e 144, são a marca da presença dos militares.
Ponte – Da ditadura civil-militar para cá, como se deu a influência deles na política?
Houve tentativas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002) de estabelecer algum tipo de controle civil sobre eles, com a própria criação do Ministério da Defesa, que deveria ser comandado por um civil. Mas em nenhum momento houve total tranquilidade em relação a isso.
Em 2004, no primeiro governo Lula (2003-2007), casos como a renúncia do José Viegas, que era ministro da Defesa e pediu demissão por desentendimento com o comando do Exército, quando o Exército divulgou uma nota em 17 de outubro de 2004 com elogios às práticas adotadas durante o regime militar contra militantes de esquerda. Viegas também era contra a formulação da política de defesa nacional em 2005, onde se mantinha a nomenclatura da doutrina de segurança nacional dos militares.
Talvez o imbróglio mais tumultuoso foi em torno da demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, que fazia de fronteira com a Venezuela e com a Guiana., onde os militares viram ali uma possibilidade de ameaça à soberania. À época, em 2005, o responsável pelo comando da Amazônia era o general Augusto Heleno, que se pronunciou contra a demarcação da TI.
Em 2008, houveram reações ao então ministro da Justiça, Tarso Genro, no que ele chamou de Caravana da Anistia, em que buscou-se resolver as violações de direitos humanos cometidas pelos militares, seguida da proposta de Comissão da Verdade, que acabou acontecendo em 2010, no final do segundo governo Lula e que deixou um monte de militar incomodado.
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Mas a presença deles na política continuou por meio das operações de Garantia da Lei e Ordem (GLO), recorrentes pelo menos desde 2013, quando tivemos as manifestações, e uma recusa a cooperar com a Comissão da Verdade já em 2014.
Em megaeventos, como nas Olimpíadas de 2016, o general Augusto Heleno tinha um salário volumoso, só para participar do Comitê Olímpico Brasileiro. Então, hoje no governo Bolsonaro, eles participam mais diretamente, mais visivelmente, mas eles nunca deixaram de ser uma força importante do governo civil no Brasil.
Desde 2014 existe o envolvimento político de Bolsonaro nas tropas, por exemplo, ele frequenta as formaturas na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), onde se lançou candidato em 2014. O Mourão chegou a fazer declarações contra o governo [Dilma] em 2015 e ficou super conhecido. Além da atuação do general Villas Bôas, ainda quando era comandante do Exército, em todo o processo de julgamento do Lula.
Até chegarmos à volta direta dos militares no governo Temer com a reativação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) nomeando à frente o Sérgio Etchegoyen, um dos grandes opositores da Comissão da Verdade, que vinha de família de torturadores e a própria volta de um militar no Ministério da Defesa.
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No fundo os militares sempre procuraram influenciar mais direta ou indiretamente o governo civil e foram cidadãos “vip” na população brasileira, quer dizer, tendo benefícios de previdência, de moradia, de se reformarem muito novos, com aposentadoria integral, essas coisas todas. E voz ativa na política a todo momento. O que é bastante complicado para uma democracia no Estado de Direito.
Ponte – No Boletim vocês citam que parte da imprensa tem tentado “limpar” a imagem dos militares. Por que isso vem acontecendo? Existem interesses por trás disso?
Acho que não tem exatamente uma questão por trás da imprensa ser benevolente com os militares. Eu acho que uma parte disso é mau jornalismo. Eles ouvem um general reformado, algum integrante das Forças Armadas e compram o que o cara fala acriticamente. Uma parte que explica isso é o jornalismo mal feito. Segundo, esse jornalismo é declaratório, de comentarista, então veja que as principais fontes ouvidas entre os militares, que eu não vou revelar, são os comentários da GloboNews, a CNN, entre outras.
E terceiro, eu acho que é um misto de medo e interesse. Porque como eles são uma força política muito decisiva hoje e eram uma força política quando a Globo foi criada em 1965, acho que existe um jogo de ciclo de poder, eles não vão fazer a crítica radical, porque mais para frente pode ser ruim para eles. Vamos lembrar que, por exemplo, uma emissora de TV depende de concessão estatal. Então, por ser uma força política que tem tanta influência no governo, os jornalistas dessas emissoras vão ter medo de falar mal dos militares. Eu acho que são esses três pontos, mau jornalismo, jornalismo declaratório e um misto de medo e interesse em relação a continuidade dos seus postos e dos seus empregos.
Ponte – Quais são as estratégias dos militares para se manterem em altos postos do governo?
A estratégia deles é continuarem relevantes em vários temas. Os militares estavam envolvidos na realização dos megaeventos, estão envolvidos em empreendimento com a Petrobras, em mobilizações de defesa da Amazônia, preservação do meio ambiente, na elaboração de políticas públicas de segurança. Então, a estratégia deles, desde a chamada redemocratização, na verdade, desde a transição, é continuarem sendo uma força influente na política brasileira, sem necessariamente ocupar os cargos.
Na verdade eles descobriram a grande mágica, que é: sem ter que desgastar a imagem deles diretamente, terem influência por ocuparem cargos na burocracia, por terem influência em várias áreas diferentes, existem uma série de Projetos de Lei relativos aos mais diferentes assuntos do meio ambiente, até a questão tecnológica.
Por exemplo, o controle aéreo civil no Brasil é feito por uma gestão mista de civis e militares, não haveria a menor necessidade de ter militares no controle de tráfego aéreo comercial e turístico e eles estão lá. E quando se tentou tirar houve uma crise das companhias aéreas, que cancelaram voos, e eles não quiseram mais largar isso. A estratégia deles é se manterem nos postos, principalmente na burocracia, de maneira que eles garantam seus privilégios e a sua influência na política nacional.
Ponte – Por que a sociedade brasileira tolera esse tipo de intervenção até hoje? Mesmo após 21 anos de ditadura civil-militar.
Várias pesquisas de opinião têm mostrado que os militares são, junto com a Igreja e a Polícia Federal, a instituição em que os brasileiros mais confiam. Os motivos são vários, mas me parece que um deles é um certo imaginário nacional de que os militares são corretos, honestos, disciplinados e assim por diante. Da mesma maneira que a gente pode encontrar em territórios periféricos das cidades gente que é super a favor da polícia mesmo sendo alvo deles.
Ponte – Um golpe militar aos moldes de 1964 seria possível hoje em dia?
Eu acho que a chance de uma quebra institucional, que poderia chamar de um golpe, é zero por dois motivos. Primeiro, porque a própria composição das democracias contemporâneas aprendeu, via ativação dos dispositivos de segurança, formas de exercer um governo que seja autoritário sem precisar deixar de ser uma democracia, por isso que um dos temas no LASinTec é essa categoria analítica da democracia securitária, onde você pode ir de um governo mais autoritário, para um menos autoritário, dentro do que se reconhece institucionalmente como uma democracia.
E segundo porque eles não têm a necessidade de dar um golpe. Eles estão no comando das ações, digamos que, o momento onde essa influência deles foi mais ameaçada foi no período de 20 anos entre o primeiro mandato do governo Fernando Henrique em 1994 até o segundo mandato da presidente Dilma em 2014, quando eles reagiram. Começaram a soltar nota de dentro do clube militar, a ocupar redes sociais, criaram um candidato próprio.
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Então, na verdade, não vai ter golpe, porque não se solucionaram as questões que ficaram penduradas no período civil militar onde os militares que quebraram financeiramente o Estado, praticaram violações regulares de direitos humanos, tortura institucionalizada e continuaram, mesmo assim, presentes na vida civil.
Seja via GLO, via as participações em missão da ONU, via a influência direta que eles têm nas políticas de segurança pública, nas políticas de meio ambiente, nas de controle informacional, eles não têm porque dar um golpe. Então acho que muito do que aparece nos blogs, na imprensa, está muito mais ligado a um debate público atual do que propriamente uma ameaça real. Desde que o Bolsonaro assumiu, quando chega março, abril [época das comemorações do golpe de 1º de abril de 1964], essa ameaça aparece e desaparece. E nada se faz em relação aos militares e a uma série de violações que eles mesmo provocaram.
Enfim, a própria influência regular de comandantes do Exército da ativa e na política nacional via redes sociais, é uma coisa que em tese em uma democracia de Estado Democrático de Direito, não seria aceitável. Pior que isso, já tivemos militar da ativa ocupando o Ministério da Saúde até outro dia, ele comanda tropas, não poderia estar lá. Essa coisa que os próprios militares repetem para suas fontes jornalísticas, que os militares não se metem na política é irreal, eles se metem na política o tempo todo.
Até quando eles dizem “os militares não se metem na política”, eles estão fazendo política. Eu não acho que haja uma possibilidade de ter um golpe, mas isso não quer dizer que a gente não viva o período mais autoritário da democracia brasileira. Então, essa perseguição a jornais, a ONGs, aos grupos de movimentos sociais, a repressão regular entre os mais pobres via polícia, é uma prova de que a gente vive em uma democracia com traços altamente autoritários, por isso que chamamos de democracia securitária e não de ditadura.
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