Ministério da Saúde e CNJ voltam atrás e proíbem cremar pessoas não identificadas na pandemia

    Medida determina como lidar com sepultamentos de pessoas não identificadas e destaca importância de necropsia em presos mortos

    Identificação numérica de Cemitério São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro, em 2013 | Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

    O Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça reeditaram portaria que autorizava os estabelecimentos de saúde, na ausência de familiares ou pessoas conhecidas do falecido, enviarem corpos para os cemitérios para serem sepultados.

    A nova determinação orienta a como lidar com casos de óbitos de pessoas não identificadas e é válida por 180 dias, conforme a assinatura em 28 de abril. Uma das medidas, por exemplo, proíbe cremar pessoas que morreram e não foram identificadas.

    A norma leva em consideração, dentre outros pontos, um ofício do Ministério Público Federal, assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, em 6 de abril, no qual apresentava preocupação com a possibilidade de aumento dos casos de desaparecidos.

    No documento, há recomendações baseadas em normas nacionais e internacionais para preservação dos dados do falecido, para que ele possa ser identificado posteriormente. A diretriz é importante especialmente pelo momento em que vivemos uma pandemia por causa do coronavírus.

    Divulgada na edição do dia 7 de maio do Diário da Justiça Eletrônico, a portaria (leia aqui) ainda estipula a suspensão da obrigatoriedade do registro civil de óbito (emitida por cartórios) para a realização dos sepultamentos, apontando como alternativa as declarações, que são feitas por médicos.

    Porém, o texto proíbe que os corpos não identificados sejam cremados, o que possibilita a exumação para confirmação de identidade. Na norma anterior, as cremações estavam previstas.

    No caso das declarações de óbitos, é determinado anotar no campo do nome a expressão “pessoa não identificada” e detalhar características do corpo, como cor da pele, idade presumida, estatura, vestuário, sinais aparentes, fotografia do rosto e coleta de impressões digitais.

    Além disso, todas as informações devem ser inseridas no Sinalid (Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos), banco de dados coordenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Antes, o preenchimento desses itens descritivos não era obrigatório.

    A promotora Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização de Identificação de Desaparecidos do Ministério Público de São Paulo, considera um avanço importante para viabilizar a busca por desaparecidos, mas, para funcionar, estados e municípios precisam seguir a determinação.

    “A gente espera que essa mudança, com a adoção do Sinalid, seja efetivamente implantada pelos governos, porque já passou um bom tempo de internações e mortes, e esses dados não podem ficar só anotados nos hospitais”, explica. “Esses dados precisam estar conectados [no sistema] para que a gente possa fazer o confronto de informações e as famílias busquem seus parentes desaparecidos”, pontua.

    Desaparecimentos em prisões

    Outro destaque da portaria é a exigência de necropsia em pessoas que estão sob custódia do Estado (em unidades prisionais, socioeducativas, hospitais de custódia, em tratamento psiquiátrico, etc) em casos de morte natural, inclusive por Covid-19, a ser realizada pelo Instituto Médico Legal dos estados. Esse trecho leva em consideração um relatório de 2018 (leia aqui), feito pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que aborda, dentre diversas situações de tortura, os desaparecimentos no sistema prisional brasileiro.

    No relatório, são citados casos de rebeliões nos estados do Amazonas, Rio Grande do Norte e Roraima. Um desses casos foi da Penitenciária Estadual de Alcaçuz (RN), em 2017, após uma disputa das facções PCC (Primeiro Comando da Capital) e Sindicato do Crime.

    “Em Alcaçuz, foram 26 mortes e nós contabilizamos cerca de 60 desaparecidos. Só depois o governo reconheceu que 16 estavam desaparecidos. Além disso, não houve a preservação dos locais, o que prejudicou uma perícia adequada”, aponta Camila Prando, que assessorou o órgão na realização desse documento, atualmente é professora de Direito na Universidade de Brasília e uma das coordenadoras do Projeto Infovírus, que acompanha a situação do sistema prisional na pandemia.

    A pesquisadora aponta que o reconhecimento dessa população na nova portaria “permite que se tenha maior transparência e controle do social” de como a proliferação da Covid-19 tem ocorrido nas unidades prisionais. “É uma forma de a gente garantir que, num cenário de subnotificação de dados, os óbitos tenham uma perícia técnica independente, o que pode evitar uma possível ocultação de causa das mortes e até mesmo desaparecimentos forçados”, explica.

    No entanto, ela destaca que é necessário acompanhar o cumprimento da norma pelos estados e como estão atuando em relação às necropsias. Um exemplo é a resolução conjunta das secretarias da Polícia Civil e da Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, assinada em março, que estabelece que os médicos das próprias unidades prisionais emitam a declaração de óbito de presos durante a pandemia, com exceção de casos de mortes violentas ou suspeitas. “Existe esse conflito legal de qual norma vai ser seguida, já que a portaria indica a determinação conforme respeitados os fluxos de trabalho acordados nos estados”, enfatiza Camila.

    Já no estado de São Paulo, desde março, também houve mudanças na realização de perícias e exames de corpo de delito. Resoluções da Secretaria de Segurança Pública definiram que casos de mortes violentas sejam periciadas pelo Instituto Médico Legal, que é ligado à Polícia Científica, com métodos menos invasivos, e casos de mortes sem violência, suspeitos ou não de Covid-19, sejam encaminhados aos Serviços de Verificação de Óbitos, vinculados às secretarias de saúde dos municípios.

    De acordo com a promotora Eliana Vendramini, a definição do Instituto Médico Legal na portaria é uma forma de definir “uma diretriz, já que muitos municípios no país não têm os serviços de verificação de óbitos”.

    Outro lado

    Procuramos as assessorias de imprensa das secretarias da Polícia Civil do Rio de Janeiro e da Segurança Pública de São Paulo sobre a questão das perícias nos sistemas prisional e socioeducativo e se as pastas já passaram a aderir o Sinalid. Até a publicação, não recebemos resposta.

    Errata: O titulo informava que o Ministério da Justiça assina portaria com o CNJ. O correto é Ministério da Saúde. O erro foi corrigido às 20h50 de 13 de maio de 2020.

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