Por ordem judicial, reportagem da Ponte sobre denúncia de racismo feito pela empresária Luanna Teofilo foi retirada do ar em 2020. Em nova decisão, ministro Luís Roberto Barroso evocou a liberdade de expressão e de imprensa
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou na última quinta-feira (25/3) que uma reportagem publicada pela Ponte sobre uma denúncia de racismo seja veiculada novamente após ter sido censurada pelo desembargador Piva Rodrigues do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
A reportagem relata a batalha judicial enfrentada pela empresária Luanna Teofillo para denunciar uma suposta prática racista realizada por Thais Antoniolli, ex-diretora da empresa PR Newswire. Passados quase cinco anos, a funcionária foi condenada a pagar uma indenização de R$ 15 mil à antiga empresa por suposta difamação.
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Na decisão da última semana, o ministro do STF afirma que a reportagem trata de um interesse público, tendo em vista a gravidade do fato. “A matéria em exame atende aparentemente ao requisito da veracidade, porque não se trata de divulgação deliberada de informação que se sabe falsa, já que a prática da discriminação racial, em si, não foi objeto das ações judiciais mencionadas, mas, apenas, a sua divulgação pela ex-empregada. Da mesma forma, há que se reconhecer a licitude do meio empregado na obtenção da informação e a gravidade dos fatos disputados, que revela também a existência de interesse público na divulgação em tese”, aponta Barroso na liminar.
A Ponte foi obrigada a retirar a reportagem do ar por conta de uma decisão do desembargador Piva Rodrigues, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), proferida em novembro de 2020. Além da Ponte, a decisão também atingiu Alma Preta e Yahoo Notícias, que também publicaram sobre o caso
Em dezembro de 2020, nove organizações condenaram a censura judicial e prestaram solidariedade à Ponte em uma nota de repúdio. Nela, as entidades destacam a gravidade da violação aos direitos de liberdade de expressão e de imprensa decorrentes da decisão que retira a matéria de circulação. “Mais uma vez, observamos a atuação do próprio Estado em deslegitimar os conteúdos jornalísticos por meio de censura velada, disfarçada de legalidade”, diz a nota.
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O documento também aponta que a comunicação tem sido essencial para dar visibilidade a casos de racismo em todo o mundo, e a garantia dos direitos de liberdade de expressão e imprensa. “Entendemos, a partir dessa noção, que a remoção de conteúdo opera como mais um instrumento de invisibilização e apagamento de determinados grupos — quando se tratando de conteúdo relativo às pautas de raça, gênero, sexualidade, entre outras”.
O veredito de Barroso também critica a censura, uma medida que somente pode ser tomada em casos excepcionais. “A decisão reclamada, no entanto, impôs censura prévia a uma publicação jornalística em situação que não admite esse tipo de providência: ao contrário, todos os parâmetros acima apontam no sentido de que a solução adequada é permitir a divulgação da notícia, podendo o interessado valer-se de mecanismos de reparação a posteriori”.
O ministro ainda lembra que “a liberdade de expressão é de extrema relevância para a ordem constitucional, por ser pré-condição para o exercício de outros direitos e liberdades e para o adequado funcionamento do processo democrático”.
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Tendo em vista a tentativa de silenciamento da imprensa, no início deste ano o advogado da Ponte, Roberto Rainha protocolou uma Reclamação Constitucional (RCL) no STF a fim de que a corte suspendesse a decisão de censura, mantendo respeitada a sua jurisprudência no que diz respeito à inconstitucionalidade da censura e à liberdade de imprensa, que resultou na atual decisão favorável ao veículo.
Na visão do advogado Roberto Rainha a decisão reitera a impossibilidade de haver qualquer espécie de censura no ordenamento jurídico brasileiro, garantindo à imprensa o seu pleno exercício. “A decisão do STF, no caso, é uma vitória não só da Ponte Jornalismo e dos demais meios de comunicação, mas, sobretudo, do estado democrático de direito, que tem na liberdade de imprensa e de expressão uma de suas pilastras de firmamento”.
O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel, comemorou que a decisão tenha sido revertida. Em dezembro de 2020, a Abraji foi uma das nove organizações que assinaram uma nota contra a censura judicial imposta à Ponte.
“A decisão do STF é de grande importância, especialmente nos tempos atuais, porque reforça a proteção da liberdade de expressão e de imprensa como estabelecida pela Constituição Federal, que deve ser garantida também pelo Judiciário”, afirmou.
O presidente da Abraji declarou, ainda, que o desfecho do caso reforça o papel fundamental da imprensa em levar ao conhecimento da população informações de interesse público, sobretudo quando se trata das populações historicamente marginalizadas e vulnerabilizadas.
A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, apontou que o STF cumpriu seu papel de ser guardião da Constituição Federal ao reformar a decisão do TJ-SP. “A liberdade de imprensa está garantida pela nossa Constituição, mas juízes de primeira instância e até tribunais têm atacado esse princípio constitucional com decisões de censura a veículos de imprensa. No caso da censura imposta à Ponte Jornalismo, caracterizou-se inequivocamente um atentado à liberdade de imprensa, que felizmente a decisão do STF restaurou”.
Emmanuel Colombié, diretor regional da Repórteres sem Fronteiras para a América Latina lembra que “a decisão que determinou a retirada do ar da reportagem, que tem óbvia relevância jornalística, demonstra de forma emblemática o grau de incompreensão sobre o papel da imprensa de parte do judiciário”.
Para ele, o papel do STF é de extrema importância, uma vez que as tentativas de censura tornam-se frequentes. “O caso ilustra também uma tendência preocupante, de intensificação de pressões judiciais como estratégias de silenciamento, movidas tanto por agentes privados como públicos. É fundamental que o STF siga se posicionando de forma clara e inequívoca sobre esses casos para salvaguardar o direito à liberdade de imprensa”.
A carta de apoio à Ponte e aos demais veículos, alvos da censura do TJ-SP, é assinada pela seguintes organizações: Artigo 19, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – FNDC, Instituto Vladimir Herzog, Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Rede Jornalistas Livres, Rede Nacional de Proteção a Comunicadores e Repórteres sem Fronteiras.
Relembre o caso
O episódio que deu início ao processo ocorreu em outubro de 2016, quando Luanna decidiu usar tranças no cabelo. Acabou surpreendida pela reação de sua chefe, que teria repetido por três vezes a frase: “Tira isso”. Logo, Luanna entendeu que havia sido vítima de racismo e denunciou o ocorrido para a área de recursos humanos da empresa, mas o setor disse que não aconteceu nada. Além disso, ela tentou abrir uma queixa crime na delegacia, mas o inquérito foi arquivado antes de chegar no Ministério Público.
As perseguições teriam continuado até que Luanna teve seu contrato de experiência encerrado pela empresa no mesmo mês. Depois do silenciamento ocorrido no trabalho, Luanna criou uma página no Facebook chamada #TiraIsso, onde a empresária denuncia crimes de racismo em ambientes de trabalho. O nome da empresa não era divulgado nas postagens. “As pessoas contavam as histórias e mandavam suas fotos”, resume ela em entrevista à Ponte em 2020.
Luanna foi processada pela empresa duas vezes no juízo trabalhista e uma vez na esfera civil. Na esfera civil, Thais cobrou danos morais de Luanna por difamá-la, mas a Justiça evocou a liberdade de expressão para defender em ambiente online as denúncias de crimes raciais e não julgou a denúncia procedente. Depois de recorrer, Thais conseguiu uma liminar para retirar as páginas do Facebook e do Twitter de Luanna do ar. O processo ainda não foi julgado em segunda instância.
Na área trabalhista a empresa perdeu em primeira e segunda instância inicialmente. Em uma terceira ação, a empresa tentou punir Luanna novamente, e a juíza Isabel Cristina Gomes condenou ex-funcionária a pagar R$ 15.184,63, incluindo danos morais e custos advocatícios, por imputar uma prática preconceituosa à PR nas redes sociais, em razão de uma postagem feita em 2019 no LinkedIn e que foi rapidamente excluída.
Quando analisado em segunda instância, os desembargadores Rovirso Aparecido Bolso, relator do caso, Silvia Almeida Prado Andreoni e Adalberto Martins mantiveram a sentença. Assim, Luanna teve de pagar R$ 15 mil por danos morais e outros valores por juros e honorários advocatícios.
Procurada pela Ponte, a empresária afirmou que ainda teme outros processos e prefere não se pronunciar. “Não vou dar depoimento justamente para evitar outros processos”, disse.
Hoje ela pauta seu trabalho na luta contra o racismo em diversas esferas. Luanna escreve no blog Efigenias, onde se dedica a divulgação de textos com a temática racial. Atua também em mídias sociais para desenvolver negócios digitais e culturais na empresa Doorbell Ventures, onde é criadora.
Além disso, é diretora-executiva do Painel Bap, plataforma onde pessoas participam de pesquisas de mercado online e são recompensadas com dinheiro, produtos e serviços fornecido por empreendedores negros.
A Ponte questionou a PR Newswire sobre o caso denunciado por Luanna e as decisões judiciais e aguarda um posicionamento.