Gari que entrega pães para pessoas em situação de rua e dependentes químicos registrou ferimentos em peito, costas e pernas de ao menos três vítimas, sendo uma delas um idoso
O gari José Carlos Rodrigo de Matos, 52, mais conhecido como Pastor do Pão conta que se surpreendeu ao chegar na Praça Julio Prestes, no centro da capital paulista, na terça-feira (14/9), e encontrar algumas pessoas em situação de rua com ferimentos.
“Elas relataram para mim que a IOPE jogou bomba e disparou tiros de bala de borracha de madrugada, entre 3h e 4h da manhã”, afirma. IOPE é a Inspetoria Regional de Operações Especiais, espécie de tropa de elite da Guarda Civil Metropolitana. Durante a manhã daquele dia, ele registrou ao menos três pessoas atingidas, todos homens, sendo um deles um idoso. A Ponte não divulgará os vídeos para não expor as identidades das vítimas.
Um rapaz negro, com curativos na perna e no pé, disse que foi atingido por bomba quando estava na calçada. Outro homem, branco, tinha uma marca no peito, e não soube dizer se era bomba ou bala de borracha. “Foi de madrugada. Ficaram cercando a gente e atirando”, disse. Outro também tinha uma mancha escura roxa no peito e outra nas costas. O idoso aparecia em duas filmagens: uma com a perna sangrando e outra já com o membro enfaixado, mostrando um estilhaço de borracha que guardou num copo plástico. “Tiraram um pedaço [de estilhaço] perto do olho também”, disse.
As ações de zeladoria da Prefeitura no local, conhecido pejorativamente como Cracolândia, costumam acontecer três vezes ao dia. José Carlos, que visita o local diariamente para entregar pães, suco e café às pessoas em situação de rua e dependentes químicos que ficam na região, contesta a violência denunciada. “É muito estranho ter ação de madrugada. Nesse horário, tem muita gente dormindo na rua, gente vulnerável e debilitada, está escuro e os locais ficam fechados”, critica. “A Cracolândia tem que acabar, mas não desse jeito, jogando bomba, bala de borracha, batendo nos usuários”. Ele afirma que conseguiu chamar agentes de saúde para encaminhar as vítimas aos postos para fazer curativos.
Um dia antes, na segunda-feira (13/9), a desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva, da 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, reconheceu que há emprego de violência pela guarda na região e reiterou que os abusos sejam apurados pela Prefeitura em uma decisão liminar (que avalia pedidos de urgência). “Sem prejuízo, os eventuais excessos que sejam cometidos pelos guardas municipais devem ser devidamente apurados, com a instauração de procedimentos administrativos e criminais e aplicação das penalidades pertinentes, até mesmo porque os excessos (seja por violência ou abuso de autoridade) praticados por qualquer agente público merecem a devida atenção e penalização, após comprovados”, escreveu.
Na prática, essa determinação apenas reforça que haja fiscalização e não muda a situação atual, já que os pedidos da Promotoria de Direitos Humanos e da Defensoria Pública, como evitar operações no local de forma militarizada, que a GCM deixe de atuar como Polícia Militar e que estudos de impacto dessas incursões sejam realizados, foram negados pela magistrada. Essas solicitações integram uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Estadual, em junho deste ano, denunciando diversas violações cometidas pela guarda desde 2017 no território.
Além disso, outro ponto em discussão é a compra de R$ 400 mil em fuzis e carabinas para a GCM, que foi autorizada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) em um decreto publicado em 30 de julho. A destinação do recurso foi solicitada pelo vereador Delegado Palumbo, do mesmo partido de Nunes, afirmando se tratar de uma emenda parlamentar. Na ocasião, a secretária municipal de Segurança Urbana Elza Paulina declarou que apenas a IOPE receberia treinamento para usar as armas. “Essas armas não serão utilizadas pelo efetivo normal. Somente pelo IOPE, que tem uma caraterística diferente das demais unidades da CGM. Eles terão treinamento e as armas só serão usadas em situações específicas”.
A Defensoria Pública, em conjunto com as organizações Conectas Direitos Humanos e Instituto Igarapé, no entanto, contestam falta de publicidade sobre a tratativa, já que não foi encontrado documento público explicitando essa destinação do vereador com o prefeito. As três entidades entraram com uma representação ao Tribunal de Contas do Município na quarta-feira (15/9) para que seja anulada a aquisição e suspenso o decreto por considerarem irregular que guardas municipais usem armas pesadas, uma vez que não têm atribuição de polícia judiciária ou ostensiva, além das denúncias de abusos cometidos pelos GCMs na região da Luz. A medida ainda será analisada pelo órgão.
O que diz a prefeitura
A Ponte questionou a respeito das denúncias registradas pelo gari, além da decisão da desembargadora sobre os abusos da GCM.
A Secretaria de Comunicação encaminhou a seguinte nota*:
A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Segurança Urbana, esclarece que, na madrugada do dia 14/09, equipes da GCM foram agredidas durante a atuação para desmontar barracas localizadas no fluxo, que são usualmente usadas para o tráfico de drogas. Para conter os ataques, o efetivo utilizou os protocolos de uso progressivo da força.
A proibição da montagem de tendas na região acontece desde 19/07, quando o efetivo e ações na região foram ampliados. Elas comprovadamente são usadas por criminosos para o comércio ilegal de entorpecentes, com atuação que instrumentaliza a população vulnerável do local para reagir às intervenções policiais, escalonado os eventos.
Em relação à ação judicial citada, a Prefeitura irá, oportunamente, apresentar esclarecimentos sobre as atividades desenvolvidas pela GCM no local.
*Reportagem atualizada às 10h02, de 20/09/2021, para incluir resposta da Prefeitura.