Moradores denunciam morte, desaparecimento e cárcere privado em ação da PM na Maré, no Rio

    Operação policial que durou três dias tem como resultado, segundo moradores, violações cometidas por policiais: desde tortura, revista vexatória, extorsão, xingamento até agressão contra uma mulher grávida; ‘É um horror, a gente é nada’, diz vítima

    Comércio funcionava normalmente na Nova Holanda na quarta-feira (12/6), mas, do outro lado da Avenida Brasil, operação acontecia na Vila do João | Foto: Yasmim Restum/Ponte Jornalismo

    Morte, desaparecimento, pessoas feridas e uma série de abusos praticados por policiais. Essas são as consequências que moradores revelam sobre uma operação da PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) que durou três dias no Complexo da Maré, zona norte da capital fluminense. As denúncias foram feitas aos grupos Redes da Maré, Observatório das Favelas e ao MP-RJ (Ministério Público Estadual do RJ).

    A comerciante Sheila Machado de Oliveira, 34 anos, morreu atingida por um disparo de arma de fogo. Moradora da Baixa do Sapateiro e mãe de três filhos, ela ia trabalhar na manhã da quarta-feira (12/6). Outras três pessoas ficaram feridas. O estado de saúde é estável. Um policial foi baleado e encaminhado ao Hospital Central da PM.

    O assassinato e as outras pessoas baleadas destacam o grau mais extremo de violações denunciadas pelo moradores, mas não os únicos. Quem presenciou os três dias de horror na comunidade relatou uma série de ameaças e violações de direitos cometidos pelos policiais.

    Segundo uma testemunha, uma família foi mantida em cativeiro por policiais da noite segunda-feira (10/6) passando por toda a madrugada de terça-feira (11/6). “Uns [policiais] desceram, mas não voltaram todos. Uns quatro ficaram dentro da casa. Eles fazem isso. A gente acha que acabou, mas eles estão escondidos e depois começam a atirar. Só que a informação vazou e eles tiveram que sair e ficaram pulando de laje em laje”, disse.

    Uma grávida também acusou os policiais de agressão. Eles teriam entrado na casa sem mandado, conforme obrigação legal, de forma hostil e apagaram dados de celular. “Eu estava em casa com a minha mãe quando eles entraram gritando, disseram que tinha um radiotransmissor na laje que não é nosso. Ela ficou muito nervosa e acabou discutindo. [Os policiais] mandaram minha mãe tomar no cu, ela começou a gravar. Aí eles pegaram o celular e apagaram tudo que tinha, todas as fotos. Tudo”, relembra.

    Mãe de três filhos, Sheila Machado de Oliveira foi assassinada ao ir trabalhar | Foto: reprodução

    A jovem, que deu seu testemunho ao Redes da Maré, estava trêmula, sentindo pontadas na barriga e foi encaminhada ao hospital mais próximo, porque os postos de saúde da comunidade estavam fechados.

    Durante uma revista policial, um jovem de outra comunidade foi vítima de tortura, de acordo com um morador que presenciou o fato. “O menino não era daqui, eles olharam o celular dele. Fizeram o garoto beber tinta, gasolina, deram tapa na cara, xingaram. Até que eu e os vizinhos que vimos tudo não aguentamos, pedimos pra soltar o menino, o garoto ia morrer. Aí [os policiais] levaram ele. Só Deus sabe”, lamentou.

    Em denúncia, uma jovem confessou ter sido vítima de extorsão policial enquanto estava em casa com o namorado. Móveis e eletrodomésticos foram quebrados pelos agentes, segundo ela. “Eles invadiram e reviraram tudo, quebraram a televisão e ficavam perguntando vários vezes se a gente era envolvido [com o tráfico]. Pediram para eu tirar a roupa pra ver meu celular e acharam uma foto nossa num baile funk. Aí disseram que se a gente não desse mais de R$ 30 mil reais, iam matar meu namorado na minha frente”, contou aflita. “[Os policiais] Xingam, chamam de vagabunda, puta. O cara tá com uma arma na sua frente, ninguém reage nessas horas. É uma injustiça isso que tá acontecendo”, diz.

    Desde a madrugada de terça-feira (11/6), um mototaxista está desaparecido depois da denúncia de amigos e testemunhas. A vítima teria sido abordada por policiais, baleada e agonizou no chão implorando por ajuda, sem poder receber auxílio.

    Questionada pela Ponte sobre a abordagem policial, uma vítima disse que desde o início de 2019 os agentes têm agido com maior truculência e que arrancam das portas panfletos de entidades atuantes em defesa dos direitos dos moradores.

    “Não posso mostrar foto [dos policiais arrancando os panfletos] porque dá para reconhecer. [Os policiais] Chegam gritando ‘a gente sabe que tem’, ‘onde tá o fuzil’. Vasculham tudo, abrem geladeira, pegam comida, roubam o que tiver à vista. Isso quando não ameaçam: ‘não vim pra levar pro presídio não’. É um horror, a gente é nada”, desabafa.

    Escolas fechadas

    A operação policial impediu o funcionamento regular das 49 escolas que ficam dentro do conjunto de favelas da Maré. Unidades de educação ficaram pelo menos um dia sem aulas, prejudicando 16 mil crianças, de acordo com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

    Uma estudante, mãe de três filhos, contou que no início da operação, por volta das 5h30 da manhã de segunda-feira, entreteve as crianças para que não ficassem ouvindo o barulho dos tiros. “Temos um protocolo lá em casa. Começou tiro é colchão no chão, deita todo mundo. Aí a gente joga alguma coisa, lê um livro ou vê vídeo no celular até passar. É muito doloroso ver a criança ficar apavorada. É um dia perdido, eles não conseguem brincar, não pode ir à aula. Eu tento distrair”, desabafou.

    Dados do ISP compara estatísticas de 2018 com as de 2019 | Foto: Reprodução

    Testemunhas contaram também que viram policiais atirando uma bomba dentro do pátio de uma escola ainda vazia na madrugada da segunda-feira (10/6).

    O Ministério Público do RJ recebeu todas essas denúncias de moradores encaminhadas não só pelo Redes da Maré, mas também outras organizações como o Observatório de Favelas e associações de moradores.

    O defensor Daniel Lozoya, membro do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública, lamentou o aumento já notável de violência em ações policiais neste ano. “Isso é uma questão de direito coletivo e um problema estrutural que estamos combatendo. Se há tiroteios longos, é previsível que haja feridos. Estamos notando um recrudescimento muito forte da ação policial este ano e já uma piora nos índices de segurança pública”, argumenta.

    Desde a Ação Civil Pública da Maré – liminar concedida pela Justiça em junho de 2017 para redução de danos e riscos em operações policiais – houve uma diminuição de 44% nas taxas de homicídio decorrentes de ações policiais na comunidade. Além disso, constatou-se redução de 71% dos dias sem aulas, de acordo com levantamento do Redes da Maré, que comparou os registros de 2018 com os do ano anterior, antes da validação da liminar.

    Ainda segundo o estudo do Redes, uma pessoa morre a cada operação policial na Maré. Os dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), vinculado ao governo do estado, também corroboram essa conjuntura e revelam um aumento de mais de 27% nas mortes por intervenção de agentes do Estado em 2019 em comparação com o mesmo período do ano anterior.

    A Defensoria afirmou que a Corregedoria da Polícia Militar já foi intimada a prestar esclarecimentos com relação ao que ocorreu nesta semana. “Não só os policiais identificados com possíveis desvios de conduta, mas também os seus respectivos comandantes vão ter que prestar contas”, completou Lozoya.

    O problema é conduta dos agentes ser desrespeitosa, de acordo com Patrícia Ramalho, coordenadora do projeto Maré de Direitos, que enfatizou que a comunidade não é contra a ação policial em si. “Gostaríamos que eles agissem na legalidade. Nós defendemos ações policiais e entendemos o trabalho da polícia, mas precisam respeitar os moradores. O que aconteceu aqui é inconcebível na zona sul da cidade. A gente é marcado por quem é baleado, mas é tamanha violência psicológica também para essas pessoas que não podemos mensurar”, analisou.

    Ao som de tiros na Vila do João, comércio na Nova Holanda celebra dia dos namorados na Maré | Foto: Yasmim Restum/Ponte Jornalismo

    Em nota, a Polícia Militar informou que “pune com o máximo rigor qualquer desvio de conduta em seus quadros, conduzindo os processos apuratórios com base na legislação vigente”, assegura.

    A Corregedoria da Polícia Militar se disse à disposição para receber relatos envolvendo policiais militares, garantindo o anonimato do denunciante. “As denúncias podem ser encaminhadas pelos telefones (21) 97598-4593; 2725-9098 ou pelo e-mail [email protected]”, diz nota. A Defensoria recebe denúncias de abusos cometidos por policiais pelo telefone 0800 282 2279, assim como o Ministério Público pelo número 126.

    Segundo a polícia, a tropa apreendeu 7 armas, 1 granada, mais de 220 munições, 4 carros, 19 carregadores, quase 1 tonelada de drogas, entre outros equipamentos, como bloqueadores de sinal GPS.

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