Ponte flagrou policiais registrando imagens de moradores e enviando a grupo de WhatsApp “Olho de Águia — Operações”, que remete a programa de vigilância de manifestantes. Procurada, Secretaria da Segurança Pública não explicou razão

Moradores da favela do Moinho, submetidos a uma política de remoção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) no centro de São Paulo, foram fotografados sem consentimento por policiais militares na última terça-feira (22/3), quando davam entrevista à imprensa no local. A Ponte registrou o momento em que um dos agentes enviou imagens dessas pessoas, contrárias à saída da comunidade nos moldes atuais, para um grupo no WhatsApp intitulado “Olho de Águia — Operações”.
O nome do grupo remete a um sistema de vigilância da Polícia Militar paulista (PM-SP) que, conforme revelou a Ponte em 2017, incluía o armazenamento de fotos de manifestantes. A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) se ela mantém esse tipo de banco de dados, mas não obteve retorno. A falta de transparência do programa é criticada por especialistas.
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O programa “Olho de Águia”, de nome semelhante ao do grupo de WhatsApp flagrado agora pela Ponte, surgiu a partir da diretriz PM3-001/02/11, editada pela PM-SP em 2011. O documento era ocultado pelo governo até ser revelado de forma exclusiva pela Ponte. Nele, a iniciativa é descrita como um “conjunto de tecnologias dispostas em subsistemas que possibilitam a captação, transmissão, gravação e gerenciamento de imagens e áudios de interesse da segurança pública”.
Na prática, o programa dá sinal verde para que os policiais filmem e fotografem situações que não envolvam a ocorrência de crimes — como foi o caso no Moinho. Entre as condições para o acionamento estão descritas “incidentes que causem grandes transtornos à ordem pública”, “grandes concentrações e ou manifestações populares” e “em ocorrências que provoquem grande repercussão na mídia”.
A gravação de imagens e áudios se dá de três maneiras. Uma delas pelos “kits aéreos”, em que os equipamentos de filmagens são acoplados a helicópteros. Também são usadas viaturas que funcionam como base de apoio operacional que conseguem gravar e transmitir em tempo real imagens geradas pelo sistema. Já os “kits táticos” são compostos por câmeras e microfones a serem utilizados por policiais militares em serviço.
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As imagens capturadas pelos policiais são enviadas ao Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) — que também é responsável pelas comunicações de rádio entre os agentes.
Há previsão também de armazenamento dessas imagens, já que a diretriz define que cabe ao Copom o “gerenciamento, difusão e arquivo das imagens e áudios gerados pelo Sistema”. Diferente de outros sistemas que reúnem dados relacionados a práticas de crimes, o Olho de Água armazena informações de qualquer pessoa, mesmo que ela não tenha cometido prática ilegal.
A reportagem questionou a SSP-SP se o sistema segue em funcionamento, mas não obteve retorno. Publicações feitas pela própria Polícia Militar, no entanto, demonstram que o sistema segue operacional.

No perfil do Copom no Instagram, há uma postagem de abril do ano passado em que há a apresentação do Olho de Águia. A mensagem que acompanha um vídeo diz que o sistema proporciona “monitoramento constante de pontos críticos, como eventos públicos, áreas de grande circulação e locais com histórico de crimes”. No vídeo, policiais aparecem usando drones e até uma câmera profissional.
O uso de drones no Olho de Águia já havia sido anunciado durante o governo de João Dória (PSDB). Em abril de 2019, o então governador prometeu a compra de 208 equipamentos para a implementação do sistema, que já contava com 250 itens.
Um texto do Portal do Governo que anunciava a compra corroborava o uso do sistema de forma indiscriminada ao dizer que ele poderia ser usado “monitoramento de grandes eventos, reintegrações de posse, controle de distúrbios civis e manifestações”.
Diferença de tratamento
A diretriz não esclarece por quanto tempo os dados serão armazenados e nem a forma como isso acontece. Também não é dito quem tem acesso aos dados captados pelo Olho de Águia. O documento cita que pedidos para recuperação de imagens armazenadas pelo sistema devem ser analisados pelo Centro de Inteligência da Polícia Militar (CIPM). Já se as imagens forem requisitadas pela imprensa, a avaliação cabe ao Centro de Comunicação Social (CComSoc).
A Ponte solicitou as imagens feitas pelo policial militar flagrado pela reportagem e também outras que possam ter sido feitas durante a retirada de moradores do Moinho. Não houve retorno até a publicação desta reportagem.
A coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19 — organização não-governamental de direitos humanos que defende e promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação —, Raquel da Cruz Lima, observa no flagrante feito pela Ponte uma diferença no tratamento da polícia a tipos de manifestação. Mesmo autorizados a gravar quem participa de atos públicos, os agentes não tendem a ter esse tipo de comportamento quando os protestos são ligados à extrema-direita.
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“Quando nós vimos outro tipo de ocupação de espaços públicos por pautas de extrema-direita, a conduta [policial] foi muito mais alinhada ao que se espera, que é a regra do respeito de manifestação, liberdade de expressão, a excepcionalidade de qualquer tipo de intervenção e a não criminalização de manifestantes pelo simples fato de se manifestar”, afirma Raquel.
No caso do Moinho, a comunidade estava cercada por policiais há quatro dias quando foi iniciada a remoção de moradores na última terça-feira (22/4). A demolição da última favela do Centro de São Paulo está nos planos do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) no contexto da mudança da sede do governo para aquela região.
Na sexta-feira (18/4), durante o feriado de Páscoa, os moradores foram alvo de uma ação da Polícia Militar. Segundo relatos, os agentes entraram na favela disparando bombas de gás contra pessoas que estavam em um bar. Os policiais também teriam dito que haveria ali uma reintegração de posse, gerando pânico na comunidade.
Medo no Moinho
Localizada na região dos Campos Elísios, a favela do Moinho abriga cerca de 800 famílias, dispostas sobre um terreno da União — a comunidade hoje se espreme entre trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e na divisa com o bairro do Bom Retiro.
A remoção dos moradores se insere no contexto da alegada revitalização da região central pelo governador: a comunidade está a menos de um quilômetro da Praça Princesa Isabel, para onde Tarcísio pretende levar parte da sede administrativa do governo. A gestão Tarcísio diz que os moradores vivem sob risco e em condições insalubres. Além disso, ela pleiteia a cessão do terreno pela União, onde prevê construir um parque e uma estação de trem.
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A Secretaria Nacional do Patrimônio (SPU), submetida ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, emitiu uma nota técnica no último dia 14 de abril desautorizando demolições das casas e negando haver certeza de cessão do espaço ao Estado — um dos entraves ao processo é justamente a necessidade de ajuste no plano de reassentamento das famílias.
Apesar da indefinição, o governo Tarcísio deu início na terça-feira (22/4) às saídas de quem aceitou a proposta de remoção, sob presença da PM-SP no local. Por volta das 5h, moradores montaram uma estrutura na entrada da comunidade em protesto. Um helicóptero da Polícia Militar passou a sobrevoá-la no mesmo horário, despertando um clima de tensão.
Em negociação com a associação de moradores, o tenente-coronel Fábio Teodoro chegou a dizer que a presença da polícia e do CDHU se tratava de uma “ação humanitária”. Uma tropa também se manteve em solo próximo à entrada da favela, mas sem interagir com a população, enquanto técnicos da CDHU se colocaram à frente para negociar as primeiras saídas. Caminhões de mudança ali estacionados deram apoio aos trabalhos.
Crescimento do vigilantismo
Sistemas como o Olho de Águia se disseminaram nos últimos anos, provocando o crescimento do vigilantismo. Estes, inclusive, são importantes para a falta de transparência do programa. Raquel da Cruz Lima diz que, além da integração de câmeras particulares a sistemas públicos, os modelos adotados têm cada vez mais optado pelo uso de reconhecimento facial — tecnologia que apresenta problemas ligados a garantias de direitos.
A pesquisadora lembra que os dados biométricos captados por esses sistemas são imutáveis. Disso decorre a necessidade ainda mais urgente de regras claras sobre a captura, tratamento e armazenamento dessas informações. Em São Paulo, a Smart Sampa e o Muralha Paulista adotam esse tipo de tecnologia, sem que haja transparência sobre as informações levantadas.
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“E é por isso que aqui a preocupação com transparência, clareza das regras é tão grande. Não é pouca coisa não saber onde estão esses dados únicos. É muito importante saber onde eles estão e por quanto tempo vão ser armazenados, quem está cuidando disso, para quem isso pode ser passado, entre que autoridades circula”, afirma.
O que dizem as autoridades
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) sobre o flagrante feito pela reportagem e a transparência nos dados envolvendo o Olho de Águia. Não houve retorno até a publicação. Caso haja, o texto será atualizado.