Dona Evanira, como era conhecida, era mãe de Eduardo da Silva, de 21 anos, um dos nove jovens mortos na madrugada de 1º de dezembro de 2019 — durante uma ação da Polícia Militar que dispersou um baile funk em Paraisópolis

Evanira Aparecida da Silva dizia que uma parte de si já havia morrido no dia 1º de dezembro de 2019. Naquela data, o filho Eduardo da Silva, de 21 anos, foi um dos nove jovens mortos no episódio que ficou conhecido como Massacre de Paraisópolis — em que a Polícia Militar dispersou uma baile funk na comunidade na zona sul de São Paulo. Passados mais de cinco anos, com o caso ainda tramitando em audiências de instrução, uma etapa inicial do processo judicial, ela morreu por completo nesta terça-feira (29/4), aos 57 anos de idade. A causa não foi divulgada.
“Esse buraco no peito nunca mais vai ser preenchido”, disse Evanira à Ponte em maio do ano passado, ocasião em que era realizada a terceira audiência de instrução do caso — nessa parte do processo, são ouvidas testemunhas e réus, para que a Justiça decida se irá levá-lo ou não a um Tribunal do Júri. Cada uma dessas audiências, era uma sessão de dor: “Ter que escutar as pessoas tentando sujar a imagem do meu filho não é fácil”, disse ainda à época a mãe de Eduardo, após ter passado mal em uma audiência.
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O movimento “Os 9 Que Perdemos”, que reúne familiares das vítimas do massacre, prestou hoje uma homenagem a ela: “Expressamos aqui nosso respeito e admiração por Dona Evanira e deixamos todo nosso carinho e solidariedade aos familiares e amizades que seguem na sua luta”.
O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), fez postagem semelhante. “[Ela] Sempre teve uma palavra de esperança em cada momento dessa difícil luta e levava consigo o sonho de ver o crescimento do seu neto, Mateus”, escreveu, lembrando do filho de Eduardo, que ficou aos cuidados da avó desde que o jovem morreu.
O Caaf havia sido responsável por uma análise sobre o inquérito policial do massacre a pedido da Defensoria Pública. O estudo incluiu o projeto Paraisópolis: 3 atos, 9 vidas, que reúne nove vídeos que desconstroem a versão da PM de que houve resistência, pisoteamento e socorro, além de contar as histórias das vítimas. São análises de provas que vão de áudios da comunicação da PM e laudos à reprodução simulada feita de forma digital da dinâmica dos fatos pelas versões dos envolvidos.
Policiais réus não foram a julgamento
O massacre ocorreu em uma madrugada em que era realizada mais uma edição do Baile da DZ7, tradicional evento de funk nas ruas de Paraisópolis. Na ocasião, havia entre 5 mil e 8 mil jovens no evento. Ao tentar dispersá-lo, descreve a denúncia do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), policiais militares encurralaram o público presente, bloqueando diversas ruas do entorno, e causaram correria, em razão de agressões desferidas contra as pessoas e bombas de gás lacrimogêneo lançadas no perímetro.
Laudos necroscópicos indicaram que oito das vítimas morreram por “sufocação indireta”, em razão da compressão entre as pessoas, impedindo que pudessem respirar — esse foi o caso de Eduardo. Um outro jovem morreu por traumatismo raquimedular, que pode estar associado à compressão ou uma pancada. Nenhum deles foi morto por pisoteamento, como alegam os policiais desde o início.
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Além do filho de Evanira, foram mortos Bruno Gabriel dos Santos, Dennys Guilherme dos Santos França, Denys Henrique Quirino Silva, Gabriel Rogério de Moraes, Gustavo Cruz Xavier, Luara Victória Oliveira, Marcos Paulo Oliveira dos Santos e Mateus dos Santos Costa — todos com idades entre 14 e 23 anos.

Ao menos 31 agentes participaram da ação, todos eles do 16º Batalhão Metropolitano — o mais letal da cidade de São Paulo, conforme mostrou a Ponte. O MP-SP denunciou, em julho de 2021, 12 deles por homicídio qualificado pelo massacre, com agravantes de motivo fútil, que dificultou a defesa das vítimas, com emprego de meio cruel e concurso de agentes (quando mais de uma pessoa participou do crime).
Os denunciados são: Aline Ferreira Inácio, João Carlos Messias Miron, Luís Henrique dos Santos Quero, Rodrigo Almeida Silva Lima, Marcelo Viana de Andrade, Marcos Vinícius Silva Costa, Leandro Nonato, Paulo Roberto do Nascimento Severo, Gabriel Luís de Oliveira, Anderson da Silva Guilherme, Matheus Augusto Teixeira, José Joaquim Sampaio.
Um outro policial, José Roberto Pereira Pardim, é acusado pelo crime de explosão, em razão do uso de bombas na ocasião, em trecho em que não havia tumulto ou perigo à PM. Com relação aos outros 18 envolvidos, no entanto, o MP pediu o arquivamento do inquérito.
Nova audiência foi adiada dias antes
A oitava audiência de instrução do processo estava prevista para a terça seguinte (6/5), mas acabou adiada para 26 de agosto, já que um policial arrolado pela defesa como testemunha está de licença médica. Só ao final dessas audiências o juiz Antonio Carlos Pontes de Souza irá decidir se pode ter ocorrido crime doloso contra a vida por parte dos policiais no Massacre de Paraisópolis, como entendeu o MP. Se isso se cumprir, eles serão pronunciados — ou seja, levados a julgamento perante júri popular.
Em conversa anterior com a Ponte, o advogado Dimitri Sales, que auxilia as famílias das vítimas atuando como assistente de acusação, disse que era de interesse dos réus a lentidão do processo. ”A defesa tem utilizado uma estratégia de adiar esses depoimentos, para tentar jogar para mais distante o julgamento, afastando a sociedade da memória do que foi o massacre, já que é a própria sociedade que vai compor o corpo do júri”, disse em janeiro, quando houve a sexta audiência de instrução.
“A cada audiência aumenta mais a ansiedade das famílias. Elas vivem em um luto permanente. Esse tipo de episódio, de chacina, gera um luto que não se fecha, que só será fechado quando houver justiça”, completou.