Morte de Ítalo, 10, a mais jovem vítima da PM paulista, ainda aguarda julgamento

Dado se refere à série histórica disponibilizada pela Secretaria de Segurança Pública de SP desde 2013; criança negra foi morta em junho de 2016 e cinco policiais foram acusados pela morte e por forjar cena do crime

Protesto coordenado por movimentos negros em frente ao Palácio dos Bandeirantes em 11/6/2016 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira. O nome talvez não seja familiar porque já se passaram quase sete anos, mas a imagem dessa criança, na época com 10 anos de idade, circulou por todos os meios de comunicação. Um corpo negro pequeno caído no banco do motorista de um carro preto acidentado, com os pés descalços para fora da porta aberta e um tiro no olho esquerdo disparado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

A morte do menino aconteceu em 2 de junho de 2016 na região do Morumbi, bairro rico da zona sul da capital, após ele e o amigo, uma outra criança negra de 11 anos que sobreviveu, terem furtado um carro de um edifício residencial. Ítalo é a vítima mais jovem da letalidade policial paulista desde 2013, quando a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado passou a disponibilizar os dados detalhados das mortes praticadas pelas polícias.

2016 foi um ano de muitos casos emblemáticos de violência por agentes das forças de segurança pública. Naquela semana especificamente, o Senado Federal tinha apresentado o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre assassinatos de jovens destacando o “extermínio da juventude pobre e negra” e elencando a morte de Ítalo entre os casos. Menos de um mês depois dele, Waldik Gabriel Silva Chagas, então com 11 anos, foi morto por um guarda civil metropolitano (GCM) enquanto fugia em um carro furtado. Em abril daquele ano, Luana Barbosa dos Reis, negra e lésbica com então 34 anos, foi morta em uma abordagem policial por reivindicar ser revistada por uma policial feminina.

Se por um lado havia um reconhecimento de como a violência atinge principalmente essa população, por outro, setores da sociedade e do sistema de justiça perpetuavam a criminalização dessas vítimas. No caso de Ítalo, por exemplo, moradores e o presidente do Conselho Comunitário de Segurança (Conseg) do Morumbi, Celso Neves Cavallini, protestaram em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista então comandado pelo hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, em apoio aos policiais militares que participaram da ação que matou a criança.

“Com 10, 12 ou 18 anos, naquele momento ele era um marginal, um criminoso, que poderia ter atingido qualquer pessoa na rua quando atirou de dentro do carro”, afirmou Cavallini à Ponte na época. Um ano antes, ele já havia proposto uma vaquinha para ajudar na defesa de outros policiais militares que haviam sido acusados de matar e jogar do telhado um rapaz suspeito de roubo na região do Butantã, na zona oeste da cidade.

Em contrapartida, movimentos negros escracharam o ato questionando a violência policial e com faixas com frases como “racistas assassinos, Ítalo vive em nós”. Cavallini ainda é presidente do Conseg Portal do Morumbi.

Atualmente, o caso de Ítalo está em andamento no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) na chamada fase de instrução, quando os policiais são formalmente acusados, ou seja, passam a ser réus, há produção de provas, e testemunhas e acusados são ouvidos perante um promotor e um juiz em audiências. Ao final dessa etapa, o magistrado deve decidir se os PMs serão submetidos ou não a júri popular, ou seja, julgados por um corpo de jurados da sociedade civil. Essa fase de instrução só começou a acontecer em 2020, quando desembargadores reformaram uma sentença de absolvição dos policiais envolvidos proferida pela juíza Debora Faitarone.

Em 2018, ela havia rejeitado a acusação feita pelo Ministério Público contra os PMs Otávio de Marqui e Israel Renan Ribeiro da Silva, por homicídio qualificado e fraude processual, e Daniel Guedes Rodrigues, Lincoln Alves e Adriano Alves Brito, por fraude processual, já que, para o MP, os policiais plantaram um revólver no local do crime e retiraram uma testemunha que deveria ter sido apresentada ao Conselho Tutelar.

Faitarone considerou que os policiais agiram em legítima defesa, elogiou o trabalho da Polícia Civil, que investigou o caso, e criticou defensores dos direitos humanos que, segundo ela, “acompanham todos os processos de crimes dolosos [com intenção] contra a vida quando os réus são policiais militares, mas não o fazem quando eles são vítimas.”

Conhecida por inocentar previamente policiais envolvidos em mortes, Faitarone foi condenada no ano passado à punição máxima do âmbito administrativo para um magistrado: aposentadoria compulsória. O Órgão Especial do TJSP entendeu que ela agiu com negligência, delegou seu trabalho para assistentes e agiu com parcialidade ao escolher processos e no tratamento com servidores. Um desses casos, como a Ponte revelou, foi ter revisado e orientado modificações em uma petição de um defensor público responsável por representar os PMs acusados pelo caso Ítalo na época.

Dos cinco policiais acusados, quatro continuam na corporação e respondem ao processo em liberdade. O capitão Daniel Guedes Rodrigues faleceu em janeiro deste ano, supostamente vítima de suicídio. A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre a situação profissional dos policiais, mas não houve resposta.

Quem era Ítalo

De acordo com uma certidão de 16 de junho de 2016 da Vara da Infância de Santo Amaro, “a criança passou por diversas entidades de acolhimento e frequentemente fugia e era novamente acolhida”. Desde 2014 o tribunal acompanhava Ítalo, quando foi para um abrigo na cidade de Peruíbe, no litoral paulista, até ser acolhido na capital, na região de Santo Amaro, bairro da zona sul da cidade. A última vez que ele tinha sido levado para um abrigo foi em 28 de maio de 2016, mas acabou fugindo do local dois dias depois. Na mesma semana, foi morto pela PM.

Uma diretora da Escola Estadual Mario de Andrade, na região do Brooklin, na zona sul, contou à Polícia Civil que Ítalo foi matriculado na escola em 2012, onde estudou até o segundo ano do ensino fundamental em outubro de 2013, quando a mãe, que havia deixado o sistema prisional na época, o levou até Peruíbe. A mãe acabou matriculando o filho numa escola municipal sem pedir a transferência oficialmente.

Enquanto teve contato com ele, a docente disse que “era um aluno frequente que raramente faltava às aulas, porém, era tido como um aluno problemático” porque “seu humor oscilava bastante”. Ela descreve que havia dias que ele chegava tranquilo e fazia as atividades escolares e em outros aparecia “agressivo”, se recusava a estudar e “muitas vezes tinha crises nervosas durante as quais se debatia, chutava e dava cabeçadas em paredes e no chão, correndo o risco de se ferir”.

Por conta disso e do “comportamento agitado”, a diretora sugeriu à avó paterna que ele fosse matriculado em uma ONG que oferecia aulas de reforço, atividades recreativas e assistência psicológica, o que acabou acontecendo. Ela apontou que a entidade tinha parceria com o Hospital Albert Einstein, onde Ítalo passou a ser assistido e a tomar medicamentos, o que teria melhorado seu comportamento na escola, mas ela não soube precisar o diagnóstico. A Ponte procurou a assessoria do hospital, que não confirmou o atendimento até a publicação. O inquérito sobre a morte de Ítalo não contém prontuário médico.

Depois que a mãe levou Ítalo, pelo menos duas vezes a diretora recebeu contato de abrigos que perguntavam sobre o histórico escolar dele e, após esse período, teve apenas “notícias esporádicas” quando alguma criança da escola comentava que viu o menino na Favela do Piolho, na zona sul de São Paulo. A diretora destacou que Ítalo muitas vezes chegou a dar socos e pontapés em outras crianças, porém “nunca fez uso de qualquer instrumento ou objeto que pudesse ferir alguém”. Também disse que ele já deu “respostas mal educadas” a ela e a outros professores, mas depois lhe dava um abraço. “Quando estava bem, Ítalo era um garoto muito carinhoso”, disse em depoimento.

Ela contou que o menino que sobreviveu à abordagem policial, que vamos chamar de João, entrou na Escola Estadual Mario de Andrade em 2011, mas ele e Ítalo já se conheciam pois costumavam informar nos dados escolares o mesmo endereço, já que moravam em casas de um mesmo beco da comunidade.

A mãe de Ítalo, Cintia Ferreira Francelino, deu entrevistas relatando a dificuldade para cuidar dos três filhos (Ítalo era o do meio e os irmãos tinham, na época, 13 e nove anos), já que foi presa ao menos cinco vezes para cumprir penas de furto e roubo, e nunca teve um lar fixo, revezando entre casas de parentes, pontes, viadutos e até van abandonada. Quando Ítalo nasceu, o pai estava preso por roubo. Em 2013, ele foi preso e condenado por tráfico de drogas.

À Folha, Cintia falou que Ítalo às vezes trabalhava de engraxate no Aeroporto de Congonhas, tinha o sonho de ser funkeiro e gostava de carros. “Meu filho nunca iria atirar em ninguém. Ele queria só atenção. Será que esse policial não tem filho, não?”, disse.

À Polícia Civil, Cintia contou que, apesar de contar com o apoio do ex-companheiro, com quem esteve junto por oito anos, o dinheiro que conseguia trabalhando como faxineira não era suficiente para quitar as despesas de casa e, por isso, “passou a se envolver em furtos com o objetivo de manter seu sustento”. Nas vezes em que foi detida, entre 2014 e 2015, os filhos eram cuidados pela avó paterna que residia na Favela do Piolho, onde João morou por um tempo.

Cintia contou que o filho tinha ansiedade e hiperatividade e que não seria possível ele ter feito algum disparo contra os policiais por ser destro e estar no banco do motorista do carro que estava dirigindo. No dia do crime, ela afirma que Ítalo saiu de casa dizendo que iria brincar com João.

Os dois andavam juntos com frequência. Em 2016, Ítalo e João foram levados três vezes a delegacias: em janeiro, ao tentarem furtar bicicletas no Parque do Ibirapuera e encaminhados a um abrigo (do qual Ítalo fugiu no mês seguinte); em abril, ao serem flagrados com objetos de hóspedes após terem revirado um quarto de um hotel; e em maio, quando reviraram um apartamento para furtá-lo, sendo detidos com um celular, e danificaram um carro de um morador de um prédio residencial. A mãe de João ainda apontou, em depoimento, que as duas crianças já furtaram brinquedos de um supermercado próximo ao Aeroporto de Congonhas e que Ítalo já pegou uma bicicleta de aluguel e não a devolveu, ocasiões em que foi buscar o filho em delegacia.

Nos outros casos, os meninos também foram encaminhados a abrigos por meio de Conselho Tutelar porque na ocasião os pais ou responsáveis legais não foram encontrados. As medidas socioeducativas, como internação na Fundação Casa, são previstas para adolescentes e não para crianças pois são consideradas inimputáveis, ou seja, não podem ser punidas penalmente.

Uma pessoa é considerada adolescente quando tem de 12 a 18 anos de idade completos, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigor desde 1990. Para casos de atos infracionais cometidos por crianças, o artigo 101 da lei prevê desde que ela seja encaminhada aos pais mediante termo de responsabilidade a inclusão em programas sociais, abrigos e tratamento médico, a depender do grau de vulnerabilidade.

Três depoimentos e um vídeo à margem da lei

No dia 2 de junho de 2016, Ítalo e João pularam um dos muros de um prédio residencial e entraram sem serem notados. Enquanto transitavam pelos andares, por volta das 18h30 uma moradora que entrou no elevador em que eles estavam perguntou se as crianças moravam ali, que disseram “no dois”. A moradora viu que os meninos seguravam bengalas que ela deixava no hall de entrada do seu apartamento. Ao serem questionadas, as crianças disseram que pegaram o “CO”, como é identificada a cobertura no painel do elevador.

Em seguida, a moradora pediu os itens de volta, o que, segundo seu depoimento, “foi atendido numa boa” pelos garotos e, ao chegar à cobertura, disse aos meninos não poderiam pegar os pertences.

Ela afirma que pensou que eram visitantes ou filhos de algum funcionário “fazendo travessuras” e que não se sentiu intimidada nem viu arma com eles. A moradora, a fim de alertar os proprietários do segundo andar sobre a conduta das crianças, foi à portaria pedir para que o porteiro interfonasse, já que havia tentado pessoalmente tocar a campainha, mas não teve resposta. Antes, tinha contatado o zelador, que não deu importância pois estava arrumando uma caixa d’água, e o síndico, que disse que poderiam ser visitantes.

No momento em que o porteiro estava tentando contatar os moradores do segundo andar do prédio, um carro tipo jipe tentava sair com dificuldade da garagem, “acelerando de forma excessiva”, “subindo e descendo a rampa, chegando o motor a morrer algumas vezes”

O porteiro acabou liberando a saída do veículo, que “arrancou abruptamente”. Alguns pedestres que passavam pela rua avisaram que o carro estava sendo conduzido por duas crianças. O porteiro, então, avisou à moradora do segundo andar que seu veículo tinha sido furtado e ela acionou a PM. A mulher contou que estacionou o carro na garagem do edifício e tinha deixado a chave no contato pois subiu até o seu apartamento apenas para buscar um documento.

A partir desse ponto, existem as versões divergentes. A forma como o veículo estava sendo conduzido pelas ruas chamou a atenção da polícia, que até então não sabia que era um carro furtado guiado por Ítalo com João no banco de trás. Durante o percurso, o carro conduzido pela criança bateu na traseira de um ônibus e atingiu um caminhão até parar de fato.

João chegou a dar três versões diferentes. A primeira delas começou a partir da divulgação de um vídeo, onde o menino é questionado por um homem sobre como tudo teria acontecido e afirma que Ítalo estava armado e o chamou para roubar um prédio. Não se sabe até hoje quem gravou ese vídeo. A Polícia Civil e a Corregedoria da PM apenas questionaram os PMs se haviam participado dessa “entrevista”, o que foi negado por todos. Pelo áudio, em que é possível ouvir comunicação de rádio, parecem ser dois policiais militares.

Ao entrarem no veículo, que estaria com a janela aberta, e saírem do edifício, segundo João nesse registro, Ítalo teria disparado três vezes contra os policiais. Os homens que o entrevistam perguntam se depois que a polícia chegou João se sentiu protegido, o que ele concorda. Na ocasião, reportagem da Ponte problematizou essa filmagem e especialistas indicaram que as questões foram induzidas e a criança pode ter sido constrangida, já que foi informalmente interrogada sem a presença de um responsável ou do Conselho Tutelar.

Essa versão de João também foi dada no Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, para onde a ocorrência foi apresentada à 0h23, ou seja, cinco horas depois que Ítalo foi morto, por volta das 19h. João disse que Ítalo disparou duas vezes quando os policiais os perseguiam e depois uma terceira vez depois que o carro bateu pela segunda vez. Num outro depoimento à delegacia, não mencionou o terceiro disparo.

Os PMs alegaram que a demora se deu porque estavam verificando para qual delegacia o caso seria encaminhado — DHPP ou 89º DP (Portal do Morumbi) — e por terem ido atrás da mãe de João para levá-los até o local pois não teriam conseguido acionar o Conselho Tutelar.

Porém, à Corregedoria da PM, quatro dias após o crime, o garoto, acompanhado pela mãe e por uma psicóloga, contou que Ítalo estava desarmado e foi executado pelos policiais. Ele apontou que foi ameaçado pelos policiais, mesmo com a presença da mãe na delegacia, e que teria sido agredido com um tapa ao ser retirado do veículo.

O depoimento mais recente dado por João foi por meio de videochamada em 2021, já na fase de instrução no TJSP. Ele manteve a narrativa de que Ítalo estava desarmado. Na época, ele cumpria medida socioeducativa na unidade Nova Aroeira da Fundação Casa, que integrava o Complexo Raposo Tavares, fechado em abril deste ano. A Ponte procurou a assessoria da Fundação Casa sobre a situação de João, se ele ainda cumpria medida socioeducativa, mas a assessoria disse que não poderia dar informações pois o artigo 143 do ECA “veda a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.”

Já a mãe de João não prestou depoimento em juízo, ou seja, na frente de um promotor e um juíz até hoje, já que os oficiais de justiça não conseguiram localizá-la. O tribunal conseguiu intimá-la quando estava morando em uma ocupação, em 2022, mas ela não compareceu à audiência marcada para 2 de maio deste ano.

A versão da polícia

Os soldados Misael de Oliveira Barbosa e José Joaquim Sampaio, do 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), disseram que estava em patrulhamento na equina da Rua Nelson Gama de Oliveira com a Avenida Giovanni Gronchi quando um motociclista e um motorista os alertaram que “dois indivíduos em atitude suspeita, aparentando serem menores de idade” estavam em um veículo de cor escura subindo a avenida.

A dupla foi averiguar, avistou o veículo e solicitou a consulta de placa ao Centro de Operações da Polícia Militar (Copom), que naquele momento disse que não havia informações de furto nem roubo. Eles afirmaram que a viatura estava com o giroflex ligado e davam ordens de parada por meio da sirene, instante que o carro começou a fugir. A perseguição se deu pelas ruas do bairro da Vila Andrade e, segundo os PMs, quando chegaram na Rua Clarindo, o ocupante do carro deu dois tiros em direção aos policiais. Quando se aproximaram da Rua José Ramon Urtiza, não conseguiram continuar seguindo carro devido ao trânsito.

O soldado Otavio de Marqui, que estava em motocicleta, acompanhou toda a comunicação de colegas com o Copom pelo rádio. Em determinado momento da perseguição das outras viaturas ao carro, ouviu que os policiais disseram “jogou para cima”, expressão usada para dizer que houve disparo contra a equipe.

Quando o veículo chegou à Rua Clarindo, Marqui diz que o visualizou e seguiu no encalço sozinho pois as viaturas dos colegas acabaram presas no meio do trânsito. Ele afirmou à Polícia Civil que não conseguiu ver se as janelas do carro que Ítalo conduzia estavam abertas pois se posicionou “atrás do veículo” por questão de segurança. Ele viu o momento em que o carro bateu na traseira do ônibus e depois contra um caminhão estacionado na Rua José Ramon Urtiza.

Quando o veículo colidiu no caminhão, o soldado disse que teve que “jogar a motocicleta para o lado esquerdo” para não bater e freou e que, “prevendo que iria ficar emparelhado com a lateral do veículo [onde Ítalo estava], a fim de se defender de uma possível agressão”, sacou a pistola. Marqui afirma que viu “um clarão seguido de um estampido, momento em que efetuou um disparo com sua pistola na direção de onde vinha esse clarão”. Esse foi o tiro que perfurou o olho de Ítalo. O soldado afirma que disparou para se proteger e que não mirou em um alvo. Em seguida, derrapou e caiu no chão com a motocicleta. Em depoimento à Corregedoria, porém, ele diz que “viu um clarão” e acreditou que se tratava de um disparo e não que ouviu um tiro precisamente.

O soldado Israel Renan estava uma das duas viaturas que estavam atrás do carro que Ítalo e João estavam. Em determinado trecho, por causa do trânsito, ele decidiu sair do veículo e correr a pé durante o cerco e conseguiu chegar até um caminhão estacionado que acabou sendo atingido pelo carro onde as crianças estavam. O PM disse que acabou tendo o braço esquerdo ferido durante a colisão e caiu. Ele afirma que continuou o trajeto pela calçada com arma em punho. Em um momento, disse que “viu um clarão” vindo do interior do veículo e fez um disparo “com o intuito de repelir agressão sofrida”. Ele disse que não ouviu tiros feitos pela criança e pelo soldado Marqui.

Misael afirma que conseguiu ver as colisões e escutou “três estampidos simultâneos”. Já Joaquim, relatou que ouviu dois estampidos.

O Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências (Grau), vinculado à Secretaria Estadual de Saúde, apontou que chegou ao local cerca de 10 minutos depois e identificou que Ítalo já estava morto. A médica que atendeu o chamado disse que viu uma arma no assoalho do carro.

Marqui disse que o então tenente Daniel Guedes Rodrigues, que é superior na hierarquia, o mandou recolher o revólver calibre 38 que estaria no assoalho do carro e fizesse a contagem de cápsulas deflagradas (disparadas) porque “seria uma medida de segurança”.

Em depoimento, Daniel confirmou a ordem e a justificou por, segundo ele, haver “uma grande aglomeração de curiosos ao redor do carro” e que, “devido ao horário do rush, o trânsito estava intenso”, por isso seria uma medida de “cautela”. O revólver teria três cápsulas deflagradas e três intactas.

Segundo Marqui, João tinha sido retirado do veículo e ficou aos cuidados do soldado Adriano Alves Brito, que teria comprado água e barra de cereais para a criança numa farmácia próxima.

Israel afirma que viu um revólver dentro do carro, mas não viu o momento em que João foi retirado do veículo. Ele e o sargento Lincoln Alves que levaram João até sua casa a fim de encontrar os responsáveis para “comunicar o ocorrido”. Ele aponta que como João só sabia ir para sua residência pelo trajeto do ônibus, a equipe demorou para chegar até o endereço. No local, a mãe chegou cerca de 20 minutos depois e o PM disse que solicitou que ela entrasse na viatura junto com o filho para serem levados à delegacia.

O relatório de investigação do DHPP, assinado pela delegada Ana Paula Aparecida Garcia Rodrigues, foi entregue ao Ministério Público em fevereiro de 2017 sem indiciar ninguém, apenas relatando todas as versões e medidas tomadas. O promotor Fernando César Bolque, que atuava no caso na época, solicitou uma série de diligências complementares pois considerou a investigação da Polícia Civil “muito aquém do esperado”. Os pedidos iam desde novas perícias a novos interrogatórios de policiais e testemunhas.

Em 2018, ao denunciar os PMs, Bolque considerou que Otavio Marqui foi contraditório ao se referir a disparo e clarão em momentos distintos como justificativa para atirar em Ítalo e que Israel Renan também disparou “sem que houvesse qualquer estado de reação à agressão atual ou iminente”. Ele argumenta que os policiais fizeram disparos pelo revólver calibre 38 para incriminar a criança pois dois moradores da região que testemunharam parte da perseguição e as colisões relataram que ouviram dois tiros, sem saber identificar de onde partiram.

O promotor entendeu que os dois também descumpriram a Resolução 392/1999 da Secretaria de Segurança Pública que trata do procedimento de preservação de cena de crimes pela PM a qual determina que o policial mexa em “absolutamente nada”. Ali se configuraria a fraude processual pela qual também o MP acusou o tenente Daniel Guedes por infringir a norma, já que a ação de retirar uma arma que estaria em uma cena do crime prejudicou a análise da dinâmica dos fatos pela perícia.

Bolque também apontou que Lincoln Alves e Israel Renan feriram o Estatuto da Criança e do Adolescente ao não apresentaram João imediatamente ao Conselho Tutelar, pois também estariam adulterando a dinâmica do que aconteceu ao retirar uma testemunha do local. A Ponte apurou que, em 2020, Bolque decidiu atuar em uma Promotoria de Meio Ambiente e, desde 2021, o promotor Paulo Henrique de Oliveira Arantes, que já atuou na área da infância e juventude, passou a assumir a acusação.

Já a Corregedoria da PM considerou que apenas o então tenente Daniel Guedes cometeu infração ao mandar que a arma fosse recolhida e deveria ser submetido a procedimento disciplinar. Para o capitão Eduardo Cardoso da Cruz, que assinou o relatório da Corregedoria, os policiais que dispararam agiram em legítima defesa pois os depoimentos e provas indicariam a veracidade das versões. O órgão considerou que João mudou de versão várias vezes e que havia partículas de chumbo nas mãos de Ítalo, o que seria uma comprovação de que ele estava armado.

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Contudo, o laudo da perícia pontua que esse exame, chamado de residuográfico, indica possibilidades e não comprovação. Esse exame feito nos PMs, por exemplo, deu negativo, mesmo Otavio e Israel terem admitido que dispararam. Essa deliberação foi homologada pelo coronel Audi Anastácio Felix.

A Promotoria também não fez acusação no âmbito da Justiça Militar pois o caso deveria ser remetido à Justiça Comum, já que se tratava de um crime doloso contra a vida cuja legislação brasileira, desde 1996, prevê que esse tipo de caso deve ser investigado e julgado pelo Tribunal do Júri. O promotor Robinete Le Fosse pediu ao juízo militar para que a investigação feita pela PM fosse remetida à Justiça Comum, o que, foi negado pelo juiz Ronaldo João Roth, em 2017. Só após um recurso do MP Militar, que foi acatado na segunda instância, que a apuração foi incluída ao outro processo.

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