Com painéis e laboratório de projetos, segunda edição do evento do instituto Nicho 54 acontece entre 9 e 15 de novembro, online e gratuito. ‘Naturalizamos no Brasil que quem trabalha com cinema são as classes média e alta’, aponta curador
Entre os dias 9 e 15 de novembro, o Instituto Nicho 54, que atua na formação de jovens profissionais negros do audiovisual, realizará a segunda edição do Nicho Novembro, de forma online e totalmente gratuita. Além da mostra de filmes, o evento contará com laboratório de desenvolvimento de projetos de criadores negros e painéis que ecoem o tema da edição deste ano “Audiovisual como direito ao trabalho”.
O Nicho 54, formado pela produtora executiva Fernanda Lomba, o curador e pesquisador Heitor Augusto, e o executivo de comunicação e roteirista Raul Perez, surgiu com a ideia de fomentar a representatividade racial, incorporando perspectivas de gênero, classe e orientação sexual, atuando na estruturação de carreiras de homens e mulheres negras em posições de liderança criativa, intelectual e econômica.
Em entrevista à Ponte, Heitor Augusto conta que o tema surgiu de conversas do trio co-fundador. “Com uma ressaca muito grande de tristeza e lamentação, decidimos ir no caminho de celebração de histórias negras. Já que o mundo está em crise e o cinema em crise, com o desabamento das estruturas de financiamento, nada melhor do que falar de trabalho, de cultura de trabalho”.
A ideia, a partir daí, explica o curador, é debater como o cinema brasileiro funciona, se as necessidades da comunidade negra estão ou não contempladas nele. “O cinema e o audiovisual são vendidos para a população brasileira como um sonho, desejo, um ambiente lúdico”.
“De fato, tem dinâmica lúdica, mas é também um trabalho, uma possibilidade de carreira. Quando não discutimos essas coisas, deixamos de discutir classe. Naturalizamos no Brasil que quem trabalha com cinema ou audiovisual são as classes média e alta. Decidimos o tema conjuntamente, eu, Fernanda e Raul”, explica Heitor.
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A programação do Nicho Novembro inclui atividades divididas em três eixos: “formação”, “mercado” e “curadoria”. No eixo “formação”, a Lab Nicho 54, laboratório de desenvolvimento de projetos audiovisuais de criadores negros, doze projetos selecionados, entre filmes e séries nos formatos ficção e documentário, passarão por uma imersão durante o período do Nicho Novembro, com acompanhamento de mentores que abordarão aspectos criativos e executivos do projeto.
Já o eixo “mercado” trará painéis com profissionais, intelectuais e especialistas brasileiros e internacionais. A abertura será com uma conversa entre os co-fundadores sobre o instituto e o evento. Em 10 de novembro será a vez do painel “Mulheres e Mercado de Trabalho Audiovisual”, que trará atravessamentos de raça e gênero.
No dia 12 de novembro, será a vez do painel “Direitos Autorais”, que abordará a autonomia dos criadores negros e negras no que tange a negociações e autoria de seus projetos.
Os painéis se encerram no dia 13 de novembro com a conversa “Pessoa Preta, Sujeito do Mundo”, que contará com as contribuições da produtora Effie Brown (Cara Gente Branca, da Netflix, e Gamechanger Films), do produtor Jorge Cohen (Geração 80) e do curador Themba Bhebhe (European Film Market da Berlinale – Diversity & Inclusion).
Por fim, é a vez do eixo “curadoria”, que trará uma mostra de filmes com quatro longas-metragens e doze curtas. Desses, oito são inéditos em território nacional e são histórias do Brasil, Quênia, Estados Unidos, Angola, Ruanda e França. Os filmes estreiam sempre às 19h, dos dias do evento, e ficam disponíveis por 42 horas na plataforma do evento.
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O Nicho, para Heitor, é mais uma iniciativa em meio as demais que tem o mesmo intuito. “Entendemos que racismo muitas vezes nos singulariza, o primeiro, o único, e começamos de cara dizendo que não somos os primeiros e não somos os únicos, somos mais uma peça num mosaico de ações”.
O racismo no cinema e no audiovisual
Ainda muito branco, cisgênero, hétero e masculino, o mundo do cinema e do audiovisual, para o curador Heitor Augusto, reflete a estrutura brasileira. “Temos uma sociedade completamente hierarquizada, desigual, ainda reproduzindo vários marcadores da escravidão”.
Heitor aponta que os corpos negros sempre estiveram no audiovisual, mas como objetos. “Nossas histórias são interessantes, vivências, perspectivas, mas desde que sejam contadas pelo outro. E isso se reproduz do começo do cinema e até hoje está presente”.
“Uma vez estabelecido o debate racial, percebemos uma ignorância seletiva, o bom e velho ‘não sei, nunca ouvi falar, não tem’. Quase sempre pessoas brancas que tem poder e privilégio e, ao serem confrontadas com práticas [racistas], têm uma postura reativa e assustada”.
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Se olharmos a história do cinema brasileiro, aponta Heitor, a criação da imagem negra não começou ontem. “É a eterna invisibilização executada por diferentes agentes. E serve para um projeto de poder que mantém as estruturas intactas. Temos menos do que deveríamos, mas temos mais do que sabemos”.
O curador cita a saída em massa de uma equipe composta por pessoas negras da série sobre a vida da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada na noite de 14 de março no Rio de Janeiro. “Essa saída em massa dos roteiristas da série da Marielle conta uma coisa muito importante. É inédita”.
“Primeiro é que, historicamente, o racismo, assim como machismo e patriarcado, reserva espaço para as pessoas chamadas brilhantes, uma mulher brilhante no meio de dez. Muitas vezes somos forçados a olhar para os pares como assustadores, quem vem competir”.
A saída coletiva, aponta o curador, mostra um ar de “não mais seremos usados”. “Mostra que os brancos já desfrutam da liberdade criativa. Não estamos discutimos representação na tela, é bastidor, contrato de trabalho, idoneidade, ética, respeito, autonomia”.
Ele cita o exemplo do ator Babu Santana, ex-participante do Big Brother Brasil, que teve o seu reconhecimento artístico negado por muito tempo, historicamente recebendo papeis que reforçam o estereótipo do negro como bandido. “Qualquer pessoa que pesquise a representação, a qualidade e o tipo de representação negra, cinema ou televisão, não se surpreende com a história e com os personagens oferecidos ao Babu”.
“Não é surpresa, apenas uma tristeza que a história do Babu é a de muitos atores e atrizes. Importante pontuar que Babu, que fez todos os personagens, também tem movimento recente de ter sido observado por diretores negros que o colocaram em outro lugar, como o Café com Canela, feita pela Glenda Nicádio e Ari Rosa, onde Babu interpreta um médico que é gay e tem relação estável com o companheiro”.