Motoboy da Baixada Santista tem que parar de trabalhar por medo de sair na rua e ser morto pela PM

Entregador deixou o sistema carcerário e tenta reconstruir a vida no litoral paulista, mas tem medo de morrer na Operação Escudo

PMs cercando ato contra Operação Escudo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A alta da violência representada nas estatísticas de julho do governo paulista comandado por Tracísio Freitas (Republicanos) reverbera nas ruas da Baixada Santista, que vivem entre a resistência e luta pela sobrevivência à vulnerabilidade de precisar se esconder para não ser mais um número, como é o caso de Ricardo (nome fictício), de 38 anos. Para preservar sua segurança, ele não terá os sobrenomes e a cidade onde mora revelados.

Ricardo vive na Baixada Santista desde o final do ano passado, poucos dias depois de voltar à liberdade. Ele decidiu tocar a vida no litoral sul paulista após passar uma década no sistema carcerário. Depois que recebeu a progressão de pena e passou a cumprir regime aberto (em que o condenado precisa comparecer periodicamente a um tribunal para assinar um documento dizend que permanece na mesma cidade, entre outras restrições), entendeu que o crime não era mais o seu caminho.

Com uma vida limpa, tentou retomar a rotina pós-cárcere na zona sul da cidade de São Paulo, onde nasceu e morou antes de ser preso pela última vez, em 2012. A princípio ele queria conseguir um emprego na capital, onde vivem os filhos (duas nascida antes da prisão, e outro gerado enquanto ainda estava no cárcere), a mãe e os irmãos.

A primeira oportunidade de emprego que surgiu foi graças a um familiar, dono de quiosque na praia, que o chamou para trabalhar vendendo bebidas no verão do litoral. Ricardo não pensou duas vezes e topou descer a serra para trabalhar pouco menos de um mês após voltar às ruas.

Fez todos os trâmites burocráticos para seguir assinando o regime aberto, encontrou um albergue para morar nos primeiros dias e começou as atividades na praia ainda em dezembro de 2022. Na cidade, alugou uma casa, conheceu uma pessoa e começou a reconstruir a vida longe do crime.

“Na praia dava para ganhar um dinheiro, era sempre muito movimentada. Porém, virou o ano, foi diminuindo o movimento, até que chegou em maio, que começa o frio e chuva, e já não dá mais para trabalhar diariamente, apenas alguns finais de semana de sol”, conta.

Com o fim da alta temporada no litoral, Ricardo precisou encontrar alternativas para suprir a queda de movimento na praia no período mais frio e seguir ganhando dinheiro. Nesse período, sua companheira engravidou e eles passaram a morar juntos.

Durante o verão, Ricardo e a esposa moraram de aluguel em um apartamento próximo à praia onde trabalhava. Depois, precisaram se mudar para uma casa mais distante para readequar as contas com o fim do trabalho regular na praia.

“Quando vi que não dava mais para trabalhar na praia, comecei me organizar para arrumar outro serviço. A principal alternativa é como motoboy. Como tenho o nome sujo, não conseguia comprar uma moto, mas vi que dava para alugar no aplicativo da Mottu, que permite o locação de motocicletas por diferentes períodos. Isso ajudou muito a me reerguer, pois não tem burocracia nenhuma, só precisa ter a CNH [Carteira Naciona de Habilitação], e o aluguel é acessível”, diz.

Mesmo conseguindo alugar a moto para trabalhar, as dificuldades seguiam. Ricardo afirma que não teve o cadastro aprovado em nenhum dos principais aplicativos de entregas de comida devido à sua passagem e o fato de ainda estar cumprindo regime aberto. A oportunidade de trabalhar de motoboy surgiu em uma empresa de entregas na região. Ainda em maio, iniciou sua nova ocupação.

O trabalho de motoboy estava sendo o suficiente para conseguir sobreviver juntamente com a família. “Estava tudo bem, eu já tinha conseguido me ajustar financeiramente, e tava pintando muito serviço de entrega. Ia conseguir seguir a vida até chegar o calor de novo e a gente voltar a trabalhar na praia”, diz Ricardo.

A morte do soldado Reis, no entanto, mudou essa história. Já no dia 28 de julho, um dia depois da morte do PM, Ricardo conta que já notou o aumento de viaturas da polícia na comunidade onde mora. “Era para eu ficar tranquilo, porque trabalho, tenho residência fixa, levo e busco meu enteado pequeno na escola”, conta. Além disso, até hoje paga corretamente pelos crimes que cometeu há mais de 10 anos, e tem seguido dentro da lei.

Mas estar dentro da lei não é o suficiente. Essa foi a avaliação depois que começou a ver e ouvir diversos relatos de violências contra inocentes. E, para piorar, quase todos que eram vitimados tinham perfil semelhante ao seu: negro, que passou pelo sistema carcerário e que está tentando seguir uma vida fora do crime. “Só morre quem tá trabalhando e acha que estar tudo certinho basta para a polícia não matar”, conta.

Nos grupos de motoboys, por onde recebe os serviços, a demanda dos restaurantes por entregadores começou a intensificar cada vez mais nos dias seguintes à morte do PM, no início da Operação Escudo. Ricardo explica o motivo: “Todo mundo fica doido para pegar [os pedidos] para ganhar dinheiro, mas a maioria dos motoboys é ex-presidiário, então ninguém quer se arriscar”.

Ricardo também não se arrisca, e se viu na necessidade de parar de sair à noite para fazer as entregas. Com filho o recém-nascido e um enteado autista em casa, a única fonte de renda da família secou. A onda de terror na Baixada Santista fez o motoboy parar de trabalhar há um mês, e acumular contas como aluguel, água, energia e mensalidade da moto usada como ferramenta de trabalho.

O apoio financeiro de amigos e familiares é a única saída encontrada por Ricardo para sobreviver fora do crime e longe das mãos da polícia. “Vou pegando emprestado com um e com outro, sei que vou conseguir pagar, mas é preciso acabar essa matança para eu voltar a trabalhar”.

O perfil de quem morre

Felipe Vieira Nunes, uma das primeiras vítimas da Operação Escudo | Foto: Arquivo pessoal
Felipe Vieira Nunes, uma das primeiras vítimas da Operação Escudo | Foto: Arquivo pessoal

Ricardo tem a trajetória bem semelhante a de Felipe Vieira Nunes, 30 anos, que se mudou para o litoral paulista em março deste ano, para trabalhar vendendo açaí na praia como tentativa de retomar a vida após passar pelo sistema carcerário.

Criado na Vila Carmosina, zona leste de São Paulo, Felipe estava trabalhando no Guarujá, morava em um barraco e já estava tudo planejado para alugar uma casa melhor e seguir sua trajetória na cidade litorânea. Ele teve a vida interrompida pela PM no primeiro dia da Operação Escudo, 28 de julho, na Vila Baiana, uma das comunidades com mais relatos de ações policiais violentas.

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Segundo vizinhos e familiares, Felipe estava desarmado e não resistiu à abordagem das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Moradores contaram que ouviram os pedidos de ajuda do ambulante, mas o clima hostil impedia a aproximação de quem tentasse ajudar.

Os relatos indicam que Felipe foi torturado antes dos nove disparos efetuados pelos policiais sargento André Felipe Quintino Danielli e soldado Rodrigo França Lourenço. Felipe, que deixou uma filha de 6 anos, foi uma das primeiras vítimas da operação que completou um mês nesta segunda-feira (28/7).

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