Motoboy negro é acusado de roubo, mas estava em festa na hora do crime

    Ezequiel Brito da Silva, 19, foi reconhecido de forma irregular e acusado de ter roubado moto em Suzano (Grande SP); família e amigos afirmam que ele estava em chácara na zona leste da capital

    Ezequiel trabalhava de motoboy e fazia curso de barbeiro na zona leste de SP | Foto: Arquivo pessoal

    O porteiro Paulo Roberto da Silva, 50, sintetiza os 37 dias longe do filho com dois sentimentos: abatido e desnorteado. Dos seis filhos, Ezequiel Brito da Silva, 19, é o único que mora com ele no bairro de Lajeado, na região de Guaianases, na zona leste da capital paulista. No dia 26 de julho, ele foi preso e reconhecido de forma irregular sob a alegação de ter roubado uma moto em Suzano, na Grande São Paulo, no dia anterior.

    A família e os amigos do rapaz, no entanto, não acreditam que ele seja o autor do roubo, já que estaria em uma festa no horário do crime. “Eu tentei correr atrás de câmera, mas não consegui, fui atrás de testemunha, e a versão da polícia não bate”, sustenta Paulo.

    Por volta de umas 15h do dia 25 de julho, o pai conta que o filho levou toalha e roupas para ir a uma chácara localizada na Rua Maciço Urucum, no mesmo bairro. Os amigos de Ezequiel, Wellington Junior, 19, e Tiago Nepomuceno da Silva, 18, relatam que chamaram um motorista por aplicativo às 17h para irem juntos ao local. “A gente estava indo para festa da minha prima e lá ficamos até umas 2h da manhã”, lembra Wellington, que também é motoboy.

    Esse também é o horário aproximado que o filho chegou em casa, segundo Paulo. “Mais tarde, ele foi se arrumar, tomar banho porque ia trabalhar”, explica. “Ele faz um bico como entregador de uma pizzaria daqui da região com outros meninos. Quando um não vai, chamam ele, ele vai”, conta.

    Diego Felipe de Souza, 25, é um dos jovens que reveza as entregas com Ezequiel. No dia 26, um domingo, por volta das 13h, ele conta que deixou sua moto com o rapaz. “Como eu ia para um churrasco da minha família em Osasco, ele pediu para deixar a moto com ele”, lembra.

    Fotos tiradas de Ezequiel com data e hora marcados no celular de um dos amigos | Fotos: Arquivo pessoal

    No boletim de ocorrência, os soldados Anderson Clayton de Lira Chagas e Max dos Santos Almeida, do 48º Batalhão Metropolitano da PM, disseram que por volta das 15h20 foram acionados para atender uma ocorrência de dois indivíduos que estariam desmontando uma moto na Rua Francisco Cordeiro, na altura do número 143, no bairro de Lajeado.

    No local, afirmam que avistaram as duas pessoas mexendo numa moto Honda/XRE de cor preta e que, ao serem vistos, teriam montado numa motocicleta Honda/CG em fuga. Durante a perseguição, segundo os PMs, o passageiro da moto fugiu a pé “correndo em direção a uma comunidade local”.

    Na Rua Luiz da Costa, afirmam que abordaram Ezequiel, que dirigia a Honda/CG, e que nada encontraram com ele. O outro passageiro não foi detido.

    Ao pesquisarem a placa da Honda/XRE, viram que havia uma queixa de roubo registrada no dia anterior por meio de boletim de ocorrência eletrônico e resolveram levar o motoboy ao 50º DP (Itaim Paulista).

    Leia também: Reconhecidos por foto, irmãos negros têm álibis ignorados pela Polícia Civil e pela Justiça

    Vizinhos conseguiram registrar apenas o momento em que Ezequiel foi detido por um dos policiais. Segundo Paulo, o filho foi detido porque passava pela rua. “A gente achou que ele tinha sido detido porque não tem habilitação, isso ele não tem mesmo, mas ele estava em moto regularizada do amigo dele”, aponta o porteiro.

    No caso, a queixa de roubo foi registrada por um outro motoboy. Segundo o boletim de ocorrência eletrônico, por volta das 21h30, ele foi fazer uma entrega de lanche na Rua Rubi, em Suzano, que era uma rua sem saída. No local, escreve, apareceu um carro modelo Hyundai HB20 e dele teria descido um homem armado. “Tentei fugir, jogaram a HB20 e o cara armado me derrubou, me agrediu e me ameaçou de morte, pegou a moto e fugiu”, relatou.

    De acordo com ele, a cliente que recebeu o lanche ficou com o aplicativo ligado e pela movimentação viram que a moto roubada tinha passado por Guaianases, no Lajeado, voltado para a Vila Figueira, em Suzano, e depois a localização foi desligada.

    No 50º DP, o dono da moto roubada foi chamado para comparecer ao local. Conforme o BO, a vítima reconheceu Ezequiel “sem sombra de dúvidas” como o assaltante.

    No entanto, o reconhecimento não foi feito conforme prevê o artigo 226 do Código de Processo Penal, no qual é indicado que a vítima primeiramente descreva as características do suspeito para depois serem selecionadas pessoas semelhantes que possam ser reconhecidas. Ezequiel foi reconhecido sozinho na delegacia.

    A Ponte entrou em contato com a vítima para saber como foi o reconhecimento. O motoboy relatou, no entanto, que cinco assaltantes estariam no veículo, sendo que um deles o roubou e os outros quatro o agrediram. Perguntamos sobre as características do homem armado, primeiro disse que era careca. Depois, que estava de boné e tinha o cabelo “baixo” e era “magrinho”.

    Ao ser questionado do porquê de essas informações não estarem no boletim de ocorrência, ficou irritado. “Olha, eu falei tudo para o delegado, se ele não anotou, o problema não é meu”, disse. “Se você for parente dele e tentar provar a inocência dele, eu espero que você não tente, porque foi ele sim, eu reconheci pelo olhar, e os policiais encontraram ele desmontando a minha moto”, complementou desligando em seguida.

    Na delegacia, Ezequiel disse que não roubou a moto, que estava em uma festa no dia e que o veículo que dirigia era de seu amigo. Diego foi ao local para comprovar que a motocicleta de fato estava regularizada e acabou sendo liberada.

    “O que eu não consigo entender é que se eram cinco, por que só meu filho foi reconhecido sozinho?”, questiona Paulo Roberto.

    Leia também: PM à paisana agride entregador negro e forja roubo, diz família

    O delegado Mateus Cintra Andrade, com base nos depoimentos e no reconhecimento feito pela vítima, indiciou Ezequiel por roubo em flagrante. O Ministério Público se manifestou pela conversão da prisão em preventiva e o Tribunal de Justiça acatou. Além do reconhecimento e de o fato de a moto roubada ter sido encontrada, tanto a promotoria quanto a juíza usaram como agravante a situação de pandemia para manter a prisão.

    “[…] observo que o flagranciado conta com apenas 19 anos de idade e, mesmo diante de todas as determinações de isolamento social amplamente divulgadas pela mídia devido à pandemia, encontrava-se em local público quando foi preso em flagrante, o que denota que não é portador de qualquer fragilidade que o qualifique como grupo das pessoas consideradas de risco para o Covid-19, nem que estava tomando as cautelas devidas para evitar a propagação do vírus e o contágio da doença a si próprio e aos demais”, argumentou a magistrada Tania da Silva Amorim Fiuza.

    Dias depois, a promotora Maria Gabriela Ahualli Steinberg denunciou Ezequiel por roubo com aumento de pena no caso de participação de duas ou mais pessoas e de uso de arma de fogo, embora não tenha sido localizada arma com o rapaz e nem outras pessoas tenham sido detidas.

    ‘É muito difícil fazer um reconhecimento sem sombra de dúvidas’

    Para o advogado da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) Damazio Gomes da Silva, a prisão de Ezequiel não poderia ter sido autuada em flagrante. “O flagrante dura enquanto durar a perseguição pelo bem. Nesse caso, o flagrante não estava em curso e o Ezequiel não foi preso com a moto do roubo”, aponta.

    Ele também destaca que a irregularidade de como foi feito em reconhecimento poderia ter sido revista pelo Ministério Público e o Tribunal de Justiça. “Era noite, como você consegue reconhecer uma pessoa numa situação em que você está com muito medo? É muito difícil fazer um reconhecimento sem sombra de dúvidas. A gente não sabe as condições de iluminação, tem todo um rol de questões”, explica.

    Ele acredita que os policiais podem ter induzido a vítima, uma vez que Ezequiel foi reconhecido sozinho. “Quando a PM encontra o objeto que foi subtraído mediante o roubo, ela vai descrever quem estava ali e muitas vezes a vítima não tem certeza, mas parte do princípio de que se estava lá [perto de onde a moto foi encontrada] é porque foi ele”, pondera.

    “Ou é uma justiça parcial para pobre, negro, periférico ou é uma justiça que não lê as provas que a defesa do Ezequiel juntou ali”, argumenta ao mencionar que a defesa do rapaz anexou as fotos com data e horário de que ele estaria na festa no momento do crime.

    ‘Ele sempre trabalhou, faça chuva, faça sol’

    Mesmo apontando residência fixa e não ter antecedentes, Ezequiel continua preso no Centro de Detenção Provisória de Suzano, onde foi registrado, em agosto, 56 casos de Covid-19, entre detentos e funcionários.

    “Meu filho trabalhava faça chuva, faça sol com o bico de entregador, ele estava fazendo curso de barbeiro porque ele quer montar um salãozinho com o irmão”, conta Paulo, pai do rapaz.

    Leia também: Defensoria Pública: como e quando utilizar

    Para ele, o pior é o filho ficar “marcado” por algo que não cometeu. “Aqui eu sempre criei meus filhos na igreja, destacando a importância do trabalho, sempre se orgulhando de não ter nada se abordarem a gente”, afirma. “Agora, quando ele sair e ficar marcado? Vai ser muito mais difícil”.

    Amigos que conhecem Ezequiel do bairro também ficaram indignados com a prisão. “A gente levou um baque quando soube que ele foi preso porque ele estava com a gente o tempo todo”, complementa Tiago da Silva,18, que conhece o rapaz há pelo menos dois anos.

    Outro lado

    A Ponte solicitou à Secretaria da Segurança Pública entrevista com os policiais e com o delegado do caso. Também questionamos a respeito do reconhecimento.

    A InPress, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e enviou nota declarando que “a Polícia Militar informa que foi acionada para atender a uma ocorrência de desmanche e no local, encontrou duas pessoas que desmontavam uma motocicleta”.

    “Com a chegada dos PMs os suspeitos fugiram, tendo um deles
    sido abordado. Levado à delegacia foi reconhecido pelo proprietário da
    motocicleta que era desmancha. A autoridade policial ratificou a voz de prisão dada e lavrou o boletim de ocorrência”, diz o texto.

    Em nota, a SAP informa que “o preso Ezequiel Brito da Silva está custodiado no CDP de Suzano desde 15/08/2020. Sobre os casos de Covid-19 na unidade, observamos que, entre servidores, foram registrados 6 confirmados por exame PCR, sendo que 1 faleceu e os demais já retornaram às suas atividades e 17 que testaram positivo em Teste Rápido e já retornaram. Entre presos, foram 31 confirmados por exame PCR, sendo que todos já retornaram ao convívio; 4 que testaram positivo em Teste Rápido, 3 já saíram do isolamento e 1 segue isolado”.

    O Ministério Público, por sua vez, afirmou em nota que se manifestou nos autos do processo.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    1 Comentário
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários
    trackback

    […] Fonte: Motoboy negro é acusado de roubo, mas estava em festa na hora do crime – Ponte Jornalismo […]

    mais lidas