Movimentos sociais questionam aumento de 53% no povo de rua

    Entidades apontam falhas em levantamento da Prefeitura de São Paulo com população fixada em 24 mil pessoas

    Anderson Puccetti, do Movimento Estadual da População de Rua de SP (à esq.) e Anderson Lopes Miranda, coordenador municipal do Movimento Nacional da População de Rua | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Representantes de movimentos sociais ligados à população de rua consideram “um fiasco” os números do censo feito pela Prefeitura de São Paulo. Estatísticas divulgadas pelo prefeito, Bruno Covas (PSDB), mostram aumento de 53% da população, que seria de 24.344 pessoas, total questionado por quem atua com este público.

    Segundo a pesquisa realizada pela empresa Qualitest, o aumento de 53% tem como base as 15.905 pessoas contabilizadas em 2015. Em 2000, a cidade de São Paulo tinha 8.706 pessoas vivendo nas ruas. Para as entidades, que se baseiam em cadastros de pessoas em situação de vulnerabilidade junto a órgãos públicos para atendimentos sociais, a atual quantidade passa de 30 mil.

    Realizada durante 10 dias no mês de outubro de 2019, a pesquisa entrevistou 12.651 nas ruas da cidade e outras 11.693 pessoas enquanto pernoitavam em albergues, segundo a Prefeitura. A discordância está presente na metologia utilizada, que excluiu, por exemplo, pessoas que vivem em habitações precárias ou pequenas favelas. Na visão dos movimentos ouvidos pela reportagem, estas pessoas deveriam ser contadas como moradoras em situação de rua que necessitam de habitação.

    “É um fiasco. Nós chegamos em malocas (como os moradores apelidaram onde vivem), em lugares em que estavam o cobertor e o papelão todo arrumadinho e o morador de rua não estava. O morador de rua tinha sido retirado. Barraco ou palafita é morador de rua”, argumenta o coordenador municipal do Movimento Nacional de População de Rua, Anderson Lopes Miranda, 44 anos.

    Um exemplo citado por ele é o do viaduto Alcântara Machado, ocupação de barracos na zona leste de São Paul, não incluída na pesquisa e criada depois do censo de 2015. “Hoje ela existe por pessoas que foram tiradas de outros lugares. Elas são moradoras em situação de rua. Então, para nós é triste que a prefeitura mentiu no censo de rua”, critica Miranda.

    O coordenador atuou na pesquisa realizada no ano passado, quando diz ter visto diversos problemas durante os trabalhos e reclamou de “não ter sido ouvido”, além de ter contar problemas no contato com o povo de rua. “Por exemplo, morador de rua quando íamos abordar saía correndo e a polícia, com arma na mão, mandava parar com mão na cabeça”.

    Robson Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População de Rua (à esq.), e Anderson Puccetti protestam no anúncio do censo| Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Quem também aponta falhas na realização do processo é o coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua, Darcy Costa, 53 anos. “O censo não consegue trazer um número exato. Tem muitos problemas, falhas. O que notamos é que houve um grande aumento na quantidade de população de rua. Se não fizermos um trabalho para mudar, nós vamos ter um problema muito mais grave do vivido hoje”, sustenta.

    Segundo Costa, é preciso ser feito um trabalho para resgatar a dignidade de quem vive nas ruas e isso passa por incluir quem vive em locais improvisados como parte desse grupo social. “Estamos em uma situação de emergência com a população em situação de rua. Um estado crescente de miséria. A primeira coisa que precisamos é de moradia. Isso é prioridade. Não dá para depender só de doação”, afirma.

    Prefeitura garante ter mantido metodologia

    Questionado sobre a metodologia não ter contemplado quem vive em espaços improvisados, o coordenador geral da pesquisa, Cristiano Luiz Ribeiro de Araújo, afirmou que o censo seguiu um conceito para definir o público alvo. “Essas pessoas não se encaixam no conceito de população em situação de rua. A gente para fazer uma pesquisa precisa fazer uma escolha, que é a definição do público alvo”, explica.

    Segundo ele, o perfil definido era de quem estava, de fato, nas ruas. “Então, as pessoas que estão em pequenas favelas ou pequenas comunidades, ainda que muito precárias, elas não se encaixam nesse conceito de população de rua”, sustenta, sendo seguido da secretária Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Berenice Giannella, que negou mudança na metodologia.

    “É uma definição legal, não podemos escolher quem é população de rua. Existe uma definição que está lá no decreto de 2009 dizendo o que é população em situação de rua. E é com base nessa definição que todas as pesquisas e censos são feitos”, diz Giannella. “Este mesmo decreto foi usado no censo de 2015, no censo de 2009. Não houve uma mudança de metodologia. Não é que chegamos agora e eu vou contar esse e não vou contar aquele. Precisa ficar bem claro que não fomos nós que dissemos o que é a população em situação de rua, é uma definição prevista na lei”.

    O prefeito Bruno Covas permaneceu pouco tempo na coletiva, ao afirmar que tinha reunião com o governador João Doria (PSDB) sobre o Coronavírus. Covas, no entanto, disse ter determinado a seus secretários uma série de ações para auxiliar os moradores em situação de rua, como a criação de mil vagas de trabalho, distribuídas entre zeladores de praças e parques, além da aplicação de R$ 60 milhões no programa de locação social, que prevê subsídios em prédios destinados para moradia para baixa renda.

    Uma outra crítica levantada pelos movimentos é de que o censo também foi marcado por violência policial, já que ações de zeladoria (conhecidas como rapa) realizadas por agentes de limpeza da prefeitura com apoio da GCM (Guarda Civil Metropolitana) aconteceram antes da passagem dos entrevistadores. A explicação é que o rapa dispersou quem deveria ser ouvido, como alega o presidente do Movimento Estadual da População de Rua, Robson Mendonça, 67 anos.

    Mendonça era dos mais indignados com os resultados apresentados, sendo até mesmo repreendido por assessores do prefeito. Sentado ao lado da equipe da Ponte, ele balbuciava “é mentira” a cada número ou explicações do prefeito ou secretários. O homem também levava consigo um cartaz em que estava escrito “Censo mentiroso”, além do número “32.800”, que, segundo ele, é o estimado de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo.

    “Achei uma mentira muito grande, isso mostra que o prefeito está mais preocupado com a campanha eleitoral, querendo esconder mais de 10 mil pessoas embaixo do tapete. O censo não foi a realidade. Quando os recenseadores chegavam a ação de zeladoria já estava retirando os moradores do local para não serem contabilizados”, critica. “Na Cracolândia, jogaram bombas para dispersar todo mundo. Os recenseadores com medo não entraram no local”, segue.

    Referência na atuação com a população de rua, o padre Julio Lancellotti também questionou os números. “É evidente que a metodologia e a execução do censo não foi adequada com a realidade da população de rua na cidade. Critérios como de considerar que cada barraca só correspondia a um morador de rua”, cita. “O contato visual sem abordagem em grupos maiores, a intervenção em algumas áreas para remover a população antes da contagem. A prefeitura sabe por cadastro interno que são pelo menos 30 mil que estão em situação de rua”.

    Homem, negro e com idade entre 31 e 49 anos

    As estatísticas do censo formam um perfil para a população de rua. Segundo os dados captados e divulgados pela prefeitura, há a maior quantidade de homens, negros e de meia idade nesta situação. Dos ouvidos, 85% são homens e 15% mulheres, enquanto as pessoas trans englobam 386 do total registrado.

    Dentre os entrevistados, 47,6% se declararam pardos; 28% brancos; 21,7% pretos; 1,7% indígenas; e 0,9% amarelo. No quesito faixa etária, a maior parte dos moradores em situação de rua tem entre 31 e 49 anos (46,6%); já os idosos, com 60 anos ou mais, representam 13%; foram abordadas 664 crianças ou adolescentes.

    A região da Subprefeitura da Sé é a que concentra o maior número de pessoas, segundo o número de abordados pelos funcionários da prefeitura que realizaram o censo: total de 11.048, vindo em seguida a população de rua na área da Subprefeitura Mooca, com 4.779 abordagens.

    O levantamento também aponta as principais causas para a pessoa entrar na situação de rua – as estatísticas contam mais de uma causa, o que faz o percentual somado ultrapassa 100%: 50% dos entrevistados alegam conflitos familiares (separação ou falecimento de familiares); 33% dependência de drogas ilícitas ou/e álcool; 23% em decorrência da perda de trabalho; 13% por perderem suas moradias; 5% por problemas de saúde (depressão, vinda para São Paulo para tratamento de saúde, etc.); 4% citam imigração ou migração; 3% após saírem do sistema prisional; e 0,3% após saírem do sistema socioeducativo entre os motivos para irem à rua.

    A Ponte questionou a Prefeitura sobre os apontamentos dos movimentos sociais e a SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) apontou que a metodologia do censo é a mesma das edições feitas em 2015 e 2009, “realizando busca ativa em logradouros públicos e serviços de acolhimento no mês de outubro, por informações autodeclaradas e de observação. Os que estavam dormindo ou não estavam em condições de responder também foram contabilizados”, garante a pasta, dizendo ter vistoriado mais pontos do que em 2015.

    A secretaria afirma que usou como base para classificação para pessoa em situação de rua o Decreto nº 7.053 de 23 de Dezembro de 2009. “Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”, justifica, na nota.

    Atualização às 21h05 do dia 31 de janeiro para incluir posicionamento da SMADS.

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