MP pede afastamento de policial que criticou atos pró-ditadura

    Para promotor do RN, policiais que defenderam isolamento social devem ser investigados por formar “milícia”

    “Essa carreata não é apenas um ato insensato, será também um crime”. No vídeo de quase dois minutos, no dia 17 de abril, o policial civil Pedro Paulo Mattos, 33 anos, um dos líderes do movimento Policiais Antifascismo no Rio Grande do Norte, alertava que a realização de atos contra as medidas de isolamento social nas cidades de Natal e Mossoró seriam alvo de fiscalização e que as autoridades seriam comunicadas. “Já sabemos quem está organizando isso. As pessoas que participarem serão identificadas e será tudo gravado”, declarou.

    Dois dias depois, a manifestação, de fato, aconteceu. Uma fileira de carros e pessoas que saíram da Praça da Árvore, em Natal, pediam a reabertura do comércio. Os manifestantes também reivindicavam o fechamento do Congresso Nacional, buzinaram contra o Supremo Tribunal Federal, pediam intervenção militar e o retorno do Ato Institucional número 5, o AI-5, que cerceou direitos e aumentou a repressão no período da ditadura militar brasileira.

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    Transmissão ao vivo feita por uma página no Facebook mostrava aglomeração de pessoas, inclusive de idosos, principal grupo de risco da Covid-19, nas ruas, com camisetas verde e amarela, algumas com o rosto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

    Carreata na Av. Hermes da Fonseca, em Natal (RN), em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército | Foto: Reprodução

    No mesmo dia dos atos que ocorreram no país com apoio do presidente, no domingo (19/4), o vídeo do policial civil Pedro Paulo Mattos, que teve mais de nove mil visualizações, passou a integrar um despacho da 19ª Promotoria de Justiça Criminal da Comarca de Natal, responsável pelo controle externo da atividade policial. Esse documento (leia aqui) faz parte de um procedimento do Ministério Público do Rio Grande do Norte, aberto em 28 de março, para acompanhar as ações dos órgãos estaduais de segurança pública e o cumprimento de normas de isolamento social (leia aqui), cuja portaria já indicava a convocação de possíveis manifestações pelas redes sociais.

    No despacho, o promotor Wendel Beetoven Ribeiro Arga solicita que a Delegacia Geral da Polícia Civil investigue se o movimento Policiais Antifascismo é uma organização de milícia e pede o afastamento “preventivo” do policial, já que ele aparece na gravação.

    “Os conteúdos do vídeo e a sua descrição evidenciam a motivação claramente político-partidária do grupo que se apresenta como uma ‘Brigada’, expressão que, no jargão militar, significa ‘força militar organizada’ ou ‘grande unidade militar, constituída de unidades de combate, de apoio ao combate e de apoio administrativo'”, escreveu o promotor com referência à definição do Dicionário Houaiss.

    Ele argumenta que “a intenção do grupo é de constranger, com amparo na autoridade dos cargos ocupados por seus integrantes (que seriam policiais, em sua maioria), pessoas que têm ideologias políticas diferentes, o que se configura em ato de inaceitável intolerância política, incompatível com o regime democrático brasileiro”.

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    A Brigada Antifascismo, segundo Pedro Paulo, é uma iniciativa do grupo Policiais Antifascismo do RN, que surgiu no começo de abril, segundo publicação na página do movimento, junto com membros da sociedade civil para fiscalizar o descumprimento de medidas de isolamento no estado e prestar informação sobre a pandemia do novo coronavírus. “É dever da população também fiscalizar, não são só autoridades, sejam elas policiais, do Executivo, do Legislativo. Toda a sociedade tem o poder de vigilância e de colaborar com as instituições que têm as prerrogativas para atuar”, explica o policial.

    De acordo com ele, a escolha do termo “brigada” se deu pela “urgência de um esforço coletivo” para preservar vidas. “O que aconteceu foi a completa desvirtuação de tudo”, critica.

    O decreto 28.600, de 8 de abril, prorrogou medidas restritivas no estado, permitindo o funcionamento apenas de atividades essenciais, com limitação de horários de abertura e fechamento dos locais, até o dia 23 de abril, a fim de evitar aglomeração de pessoas. O descumprimento das medidas pode acarretar multa de R$ 5 mil a R$ 50 mil e também prisão em caso de flagrante delito.

    No dia 17 de abril, o Ministério Público Federal no RN emitiu uma recomendação (leia aqui) à Polícia Militar, à Polícia Rodoviária Federal e à Secretaria de Trânsito de Natal fiscalizassem as carreatas para evitar aglomerações e possíveis cometimento de crimes como infração à medida sanitária preventiva e desobediência.

    Já o MP Estadual emitiu recomendação (leia aqui) ao Comando Geral da Polícia Militar, também assinada pelo promotor Wendell Beetoven Ribeiro Agra, para assegurar o direito de manifestação desde que não houvesse aglomeração acima de 20 pessoas e que os motoristas fossem orientados a permanecer dentro dos veículos, já que não existe norma específica que proíba carreatas.

    Carreata na Av. Hermes da Fonseca, em Natal (RN), em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército | Foto: Reprodução

    De acordo com o líder do Policiais Antifascismo, o objetivo do vídeo era instruir a população a também atuar como agente fiscalizador e que o movimento tem como princípio ser contrário ao autoritarismo. “É um absurdo enquadrar a gente como milícia se a gente é anti-milícia”, critica Pedro Paulo. “A gente é pró-legalidade, pela polícia cidadã, pelos direitos dos outros, pelo fim de grupos de extermínio”, completou. “Temos respeito pelas instituições, sabemos que não fizemos nada de errado e se essa investigação acontecer, vamos colaborar”, declarou.

    A página no movimento também divulgou em nota nesta terça-feira (21/4) repudiando uma lista que está circulando em grupos de Whatsapp com nomes e endereços de membros. De acordo com Pedro, vão ser tomadas as medidas judiciais cabíveis.

    Na tarde desta segunda-feira (22/4), a Associação Juízes para a Democracia emitiu moção pública “em favor do direito constitucional de liberdade de expressão dos Policiais Antifascistas”.

    Especialistas contestam promotor

    Para Ingrid Leão, doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e membro da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, apesar de o MP ter a prerrogativa de investigar grupos paramilitares, o caso do vídeo do policial não configuraria como o caso de milícia. “O Ministério Público fez questão de usar a definição do dicionário da palavra ‘brigada’, mas não gastou tanta energia com a palavra antifascista. Essas duas palavras precisam ser lidas conjuntamente”, aponta.

    De acordo com ela, o Direito não pode ser analisado exclusivamente pela terminologia do dicionário e há tentativa de criminalização do movimento. “Antifascismo é ser contra a violência e o autoritarismo, o que algumas pessoas desejam ler como de esquerda, mas é a essência da democracia”, explica. “Hoje em dia, a gente tem várias organizações sociais que utilizam a palavra ‘patrulha’ e isso não significa necessariamente que sejam movimentos militarizados”.

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    Ingrid Leão também destaca que, no vídeo, Pedro se coloca como observador da manifestação e fala em acionar as autoridades competentes caso aconteça um flagrante. “Em situação de flagrante, qualquer pessoa pode atuar”, pontua.

    Já o advogado criminalista Roberto Tardelli analisa que o policial não usou do seu cargo para ameaçar a carreata e que a solicitação do promotor “vai na contramão” da decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes que autorizou, na terça-feira (21/4), a abertura de inquérito pela Polícia Federal para investigar os atos a favor do AI-5 e pelo fechamento de instituições públicas, feito a pedido do Procurador Geral da República, Augusto Aras. “[A decisão do STF] Deslumbra para a parte de quem estava na passeata o cometimento de crime e não o contrário [de quem fiscaliza]”, afirma, já que o entendimento do Supremo é de que “o direito de manifestação não inclui o direito de negar a própria democracia”. “Quem se vale de instrumentos que visam destruir a democracia, implantar a ditadura, implantar o estado de exceção, recuperar o terror, não está exercitando um direito democrático de opinião, porque o que ele quer na verdade é destruir a democracia”, explica.

    Para Tardelli, o promotor também silencia diante das recomendações de quarentena presentes no vídeo do policial. “A recomendação do promotor vem no espectro dessa onda fascista que tomou conta de parte do MP”, critica.

    Outro lado

    A Ponte procurou o promotor Wendell Beetoven Ribeiro Arga que, por meio da assessoria de imprensa do MPRN, respondeu que atua exclusivamente sobre o controle externo da atividade policial e que o propósito da investigação é “esclarecer se existe, ou não, uma organização paramilitar e, em caso positivo, quem são os seus integrantes”. Também declarou que não recebeu denúncias relacionadas à atuação de policiais na carreata ocorrida no último final de semana.

    A reportagem questionou o MPRN sobre a decisão do STF em relação às carreatas, mas não obteve resposta até a publicação.

    Também procuramos a assessoria da Polícia Civil do RN sobre a solicitação do MP, mas a pasta não respondeu. Questionamos também a PM se houve atuação da corporação em face do vídeo da carreata em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizado, do Exército, e aguarda um posicionamento.

    À Ponte, o chefe do Núcleo de Comunicação Social da Polícia Rodoviária Federal do RN, Roberto Cabral, disse que os agentes acompanharam a carreata de 300 veículos, no quilômetro 96 da BR 101, num percurso de dois quilômetros e que atuaram apenas no trecho da rodovia.

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