EXCLUSIVO: Procuradores pedem prisão, perda dos cargos e cancelamento de aposentadoria dos acusados do homicídio de Luiz Eduardo Merlino. Tese da denúncia é que os delitos são crimes contra a humanidade
O Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo denunciou, nesta segunda-feira (22), à Justiça Federal 4 agentes da ditadura civil militar (1964-1985) pelo assassinato do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, ocorrido em 19 de julho de 1971, no DOI-Codi de São Paulo, localizado à rua Tutóia, bairro do Paraíso, capital paulista.
O ex-comandante do DOI, coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Dirceu Gravina, são acusados de homicídio doloso qualificado (com intenção de matar). O documento destaca que os 3, “também com outras pessoas até agora não totalmente identificadas, mataram a vítima Luiz Eduardo da Rocha Merlino, por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido”.
O médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época médico legista, é acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo necroscópico do jornalista. Orsini e o também legista Isaac Abramovitch, falecido em 2012, “visando assegurar a ocultação e a impunidade do crime de homicídio acima mencionado, omitiram, em documento público, declaração que dele devia constar, bem como inseriram declaração falsa e diversa da que devia ser escrita em um laudo necroscópico e atestado de óbito, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”, aponta a denúncia. Ambos assinam o atestado de óbito e o laudo necroscópico de Merlino, onde consta que ele morreu de “anemia aguda traumática por ruptura de artéria ilíaca direita” e “segundo consta, foi vítima de atropelamento”.
Na denúncia, além da prisão dos agentes, o MPF pede o cancelamento de aposentadoria dos acusados do homicídio e o afastamento imediato de Dirceu Gravina de suas funções na Polícia Civil de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Conhecido à época da ditadura como “J.C ou Jesus Cristo”, Gravina atua como delegado de polícia do Departamento do Interior de Presidente Prudente (Deinter/8). A promotoria pede, ainda, a suspensão do exercício médico de Abeylard de Queiroz Orsini.
Sem prescrição e anistia
A tese da denúncia é que os delitos, embora cometidos há 43 anos, são crimes contra a humanidade e por isso não prescrevem e não podem ser anistiados. “À luz da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se pode conceder anistia para crimes qualificados como crimes contra a humanidade. No caso da decisão da Corte, no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), a Corte foi bastante explícita ao dizer que barreiras como a anistia – no caso brasileiro, uma auto-anistia – e a prescrição não são barreiras legítimas contra a investigação e punição daqueles que praticaram crimes contra a humanidade”, explica Andrey Borges de Mendonça, um dos 5 procuradores que assinam o documento. A denúncia foi feita por procuradores do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, criado em outubro de 2011 para investigar crimes cometidos durante a ditadura. A pena máxima para homicídio qualificado é de 30 anos. Para o crime de falsidade ideológica, a pena pode chegar a 5 anos e 10 meses.
“São mais de 40 anos de luta por Justiça. Esperamos que agora finalmente haja punição.”
Por Justiça
Para Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino, “o significado dessa ação para a família é importantíssimo. Na verdade, era esse tipo de ação, uma denúncia criminal, que queríamos desde o início, quando movemos o primeiro processo na área cível, em 2008. Um crime, um homicídio, ainda mais decorrente de tortura até a morte, tem que ser punido criminalmente”. Ainda em 1979, a mãe do jornalista, Iracema da Rocha Merlino, já falecida, moveu uma ação declaratória na área cível, mas foi rejeitada, sob a alegação de prescrição.
Em 2008, Angela e Regina Merlino, irmã do jornalista, moveram uma ação declaratória na área cível contra o coronel Ustra, subscrita pelo advogado Fábio Konder Comparato, porém foi extinta. Em 2010, a família tentou novamente uma ação (também na área cível) por danos morais, contra o coronel Ustra. Em junho de 2012, numa sentença de primeira instância, o coronel Brilhante Ustra foi condenado a pagar uma indenização à família de Merlino. A defesa de Ustra recorreu da sentença e o processo segue em andamento. “São mais de 40 anos de luta por Justiça. Esperamos que agora finalmente haja punição”, afirma Regina Merlino.
Merlino tinha 23 anos quando foi assassinado. Nascido em Santos (SP), em 18 de outubro de 1948, fez parte da primeira equipe do Jornal da Tarde, fundado em 1966, do grupo O Estado de São Paulo. Também foi repórter da Folha da Tarde. Estudante de história da USP, era militante do Partido Operário Comunista (POC), organização que se opunha à ditadura militar. Tinha recém retornado da França quando foi preso na casa de sua mãe, em Santos (SP).
A última vez
Faz frio na noite de 15 de julho de 1971. “Logo estarei de volta”, diz à mãe, irmã e tia. Regina, a irmã, corre para a janela e o vê partir. É a última vez que o vê. Minutos antes, Regina, na época com 27 anos, atendia à campainha da casa de sua mãe, na rua Itapura de Miranda. Eram 3 homens à procura por Luiz Eduardo. “Vieram buscá-lo”, disse Regina ao irmão. Gripado, ele guarda alguns papéis e vai ao encontro dos homens. Um deles cutuca Regina com o cabo da metralhadora e diz: “Eu posso ser semi-analfabeto, mas não tenho irmão terrorista”.
Merlino é levado ao DOI-Codi de São Paulo, onde as torturas se iniciam. Lá, “foi barbaramente torturado por 24 horas ininterruptas e abandonado numa solitária, a chamada cela forte, ou x-zero. Ademais, consta que a vítima, em razão da permanência no pau de arara, desenvolveu uma grave complicação circulatória que, somada à omissão posterior em impedir a consumação do homicídio, veio a produzir o resultado da morte”, de acordo com o livro Direito à Memória e à Verdade, editado pela Secretaria de Direitos Humanos.
Vários presos políticos que estavam no centro de repressão testemunharam os maus tratos a que Merlino foi submetido e apontam os acusados como responsáveis pelas torturas.
Pau de arara e cadeira do dragão
Entre as testemunhas está Eleonora Menicucci de Oliveira, atual ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, à época também militante do POC. Ela e Merlino foram torturados juntos. Ela, na cadeira do dragão (cadeira revestida de metal ligada à corrente elétrica). Ele, no pau de arara. Na sala, relata, estavam Ustra, Gravina e Calandra.
“Teve uma noite que eles me tiraram da cela e me mostraram o Luiz Eduardo preso. E quem fez isso foi o JC [codinome de Gravina]. Ele era uma figura inesquecível pela brutalidade, pela animalidade e por ter cabelo comprido, andar com uma camisa aberta e usar um crucifixo. Outra pessoa que acompanhava as sessões de tortura, torturando, era o Ubirajara [codinome de Aparecido Laertes Calandra]. Todas as torturas eram coordenadas, dirigidas e orientadas pelo Ustra. Neste dia, mais de madrugada, eu fui tirada e levada para a cadeira do dragão. E o Nicolau [codinome de Merlino] estava no pau de arara. Ele tinha uma ferida enorme, quadrangular, na perna. Sangrava muito. E mesmo assim ele continuava tomando muito choque, muito chute. Na cadeira do dragão você leva choque no corpo todo e perde um pouco a dimensão da consciência. Numa hora que eu “voltei”, vi o Ustra na porta de entrada da sala, e estavam o JC e o Calandra torturando. Depois dessa vez, o Nicolau não apareceu mais. Esses três personagens eu tenho certeza absoluta que são os responsáveis pelo assassinato do Luiz Eduardo Merlino. Primeiro, pela tortura. E, segundo, por não terem dado nenhum apoio do ponto de vista médico”. O relato de Eleonora foi realizado em audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, ocorrida em 8 de agosto de 2014.
Hospital do Exército
Os ex-presos políticos Paulo de Tarso Vannuchi (ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos) e Otacílio Guimarães Cecchini relatam ter presenciado o momento em que Merlino foi retirado da cela por um carcereiro e colocado em cima de uma escrivaninha no corredor para que sua perna fosse massageada. “Ele não tinha como se locomover. A tentativa era fazer uma massagem para ele andar e ter um mínimo de autonomia. É claro que isso não resolveu o problema”, afirmou Cecchini. Nesse momento, diz Vannuchi, “eu pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que que ele tinha numa das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena”. Depois de um tempo, ele foi colocado no porta-malas de um carro e levado ao hospital do Exército. “Ele foi colocado no porta-malas de um carro por quatro outros policiais (…) desacordado. Parecia até já morto.”, disse Leane Ferreira de Almeida, em audiência da Comissão da Verdade de SP, em 13 de dezembro de 2013.
Cecchini aponta que quando estava sendo interrogado, ouviu o coronel Ustra ser chamado para uma ligação do hospital. “Eram os médicos que estavam pedindo contato da família porque havia necessidade de uma amputação [da perna]. Ou seja, havia uma solicitação de um hospital, sobre um paciente ainda vivo, um preso político torturado com princípio de gangrena, com necessidade de amputação de uma perna. O Ustra recebeu esta informação”, ressaltou. Porém, a família não foi contatada. E outra testemunha, Joel Rufino dos Santos, disse ter ouvido de um torturador do DOI-Codi: “Seu amigo esteve aqui. Ele quis dar uma de durão, acabou com as pernas gangrenadas e foi levado para o Hospital Militar. De lá telefonaram para cá dizendo que precisavam amputar. O Major Ustra reuniu e fez aqui uma votação. Eu votei para amputar as pernas, mas fui voto vencido”.
Caixão lacrado
A notícia da morte de Merlino chegou à família por meio de um telefonema ao seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, que era delegado da Polícia Civil. Adalberto e tios de Merlino foram ao IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo onde foram informados de que lá não havia nenhum morto com esse nome. Usando da sua condição de delegado, Adalberto foi em busca do corpo do cunhado. Abrindo uma por uma as portas das geladeiras, localizou o corpo de Luiz Eduardo com marcas evidentes de tortura e sem identificação. O corpo foi entregue à família num caixão lacrado.
A versão que foi dada à família foi a de que Merlino teria se suicidado ao jogar-se embaixo de um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga, quando estava sendo transportado para Porto Alegre para a identificação de militantes. Tal versão consta do laudo necroscópico assinado por Abeylard Orsini e Isaac Abramovitch. O veículo que o teria atropelado nunca foi identificado e tampouco foi realizada uma ocorrência no local do fato.
Na missa de 30 dias do assassinado de Merlino, realizada na Catedral da Sé, os mesmos 3 homens que buscaram Merlino em casa compareceram para dar os “pêsames” à sua mãe e sua irmã.
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