Idoso morto na última quinta-feira em Carnaubeira da Penha é a quarta vítima assassinada em ações policiais nos últimos cinco anos na Terra Indígena Atikum; lideranças apontam torturas e incursões recorrentes e parentes temem por represálias
A morte do indígena Edinaldo Manoel de Souza foi apenas o estopim para que cerca de 300 indígenas se manifestassem na última quinta-feira (16) pelas ruas de Carnaubeira da Penha, no sertão de Pernambuco, a 501 km do Recife.
Edinaldo, que tinha de 61 anos, faleceu após uma abordagem policial na quarta-feira (15). Ele vivia na Aldeia Olho D’Água do Padre, na Terra Indígena (TI) Atikum, zona rural da cidade. Todos exigiram justiça pela morte do ancião que afirmam ter sido causada pela violência de por policiais militares do Grupo de Apoio Tático Itinerante (Gati). Os indígenas pediram um basta a violência policial, uma vez que a realidade é de violações praticadas pela polícia há anos.
O idoso é o quarto indígena morto em cinco anos na região, afirma um representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua em Pernambuco e não pode divulgar o nome por medo de represálias. “Além dos assassinatos, torturas, agressões e abordagens violentas e arbitrárias são corriqueiras contra o povo indígena Atikum, que relatam casos desde 1990”, explica.
Ele aponta ainda que não há efetivo da Polícia Federal para atuar no local, órgão competente para lidar com questões indígenas. “As questões indígenas são da alçada federal, mas a questão em Atikum não é necessariamente essa proibição ou não [da entrada da PM no local], mas a forma como a polícia militar atua, com a prática de tortura, agressões, assassinatos”. Atualmente vivem cerca de 11 mil indígenas no território.
Secretario executivo do Comitê de Prevenção e Combate a Tortura de Pernambuco, Tiago Nago, 39 anos afirma que policiais responsáveis pela execução de um outro indígena do mesmo povo foram denunciados pela Corregedoria e afastados da atuação nas ruas, ele não pode especificar os nomes dos envolvidos nesse caso. “São inúmeros os casos de tortura. Eles adentram a aldeia sempre alegando que estão à procura de armamento e agridem os indígenas. Já houve denúncia à Corregedoria com a responsabilização e afastamento de policiais no passado e casos em que houve denúncias e não foram obtidas respostas.”
“Não importa se é homem, mulher ou criança, é com brutalidade”
Abusos que os indígenas não denunciaram por medo de sofrerem retaliações também são múltiplos, de acordo com Nago. “Hoje eles continuam com esse mesmo medo de sofrer retaliação inclusive eles já vêm sendo ameaçados, é uma situação de medo permanente e eles não aguentam mais.”
Segundo Leonel Atikum, 32 anos, liderança jovem do povo Atikum e representante da Articulação dos povos Indígenas do Nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais (Apoinme), Edinaldo foi acusado pelos militares de possuir uma espingarda de cartucho de forma ilegal e já era perseguido pelos mesmos PMs. Logo quando foi abordado por cerca de dois policiais, o idoso negou que tinha a arma e nesse momento começaram as agressões no quintal de sua casa.
“Edinaldo era um pai de família, agricultor, trabalhador honesto, sempre buscava ajudar o próximo e nunca deixava faltar o pão dos seus filhos e esposa. Ou seja: um guerreiro de garra e sempre valorizou a cultura do povo Atikum”, lembra Leonel.
De acordo com ele, familiares afirmam que os policiais já chegaram xingando Edinaldo e buscando a espingarda, que o mesmo não possuía. “Os policiais levaram o senhor para o quintal de sua própria casa e lá continuaram com as agressões verbais e físicas, aí ele desmaiou. Os próprios policiais o levaram para o hospital de Carnaubeira da Penha e o senhor já chegou lá sem vida”, contou à Ponte.
Assim como ele, o cacique do povo Pankararu, Marcelo Gomes Monteiro Luz, 37 anos, que esteve presente na TI Atikum nos últimos dias afirmou que foram observados ferimentos no idoso pela família quando Edinaldo já estava morto no hospital. “Os filhos dizem que quando chegaram no hospital observaram que ele estava com a sua nuca sangrando e que as parte íntima dele estava lesionada, eu creio que com a agressão dos policiais.”
“Ao responder que não possuía espingarda nenhuma, um policial deu um tapa violento no tórax da vítima, e quanto mais os policiais perguntavam e Edinaldo negava a propriedade de uma espingarda, mais ele apanhava”, afirma uma nota da Apoinme, com base no relato da esposa publicada em uma rede social.
“Toda vez que o Gati entra na reserva ele faz esse trabalho fora da lei. Batendo nos indígenas quando eles querem informações. E não importa se é mulher, criança ou homem, é com brutalidade. É ação sem mandato, invasão! Não foi a primeira vez que batem em Edinaldo, e ele já tinha denunciado as agressões passadas na delegacia. E então retornaram dias depois e espancaram ele novamente”, afirmou cacique Clóvis à Marco Zero Conteúdo.
Uma liderança Atikum que não pode se identificar por medo de represálias, alegou que os policiais pressionaram os profissionais do hospital a darem um laudo incorreto. “Segundo informações os policiais tentaram sim convencer a médica a colocar no laudo que o indígena tinha chegado com vida na unidade e ela não aceitou.” O laudo do IML ainda não foi liberado.
O mesmo indígena afirma que, quando os policiais chegaram no quintal da casa, os cachorros latiram e Edinaldo que estava almoçando, deixou o prato de comida e saiu para ver o que ocorria, quando foi abordado. “Ao sair já deu de frente com os militares, a nora dele presenciou a hora que um policial deu uma pancada no peito de Edinaldo, os policiais viram que ele não estava só e o levaram para o lugar onde o mesmo veio a falecer.”
De acordo com essa liderança, Edivaldo morreu a cerca de 100 metros de sua casa e, após as manifestações, as ameaças contra os indígenas Atikum seguem acontecendo por meio de mensagens no WhatsApp. “Dizem que conhecem todos e que vai ter volta, isso é ameaça de morte”, disse sem entrar em maiores detalhes. Ainda segundo a liderança, os familiares de Edinaldo abandonaram a casa em que vivem devido ao medo de sofrerem violência.
De acordo com Marcelo, que integra também a Apoinme, uma notícia de fato foi encaminhada pela entidade para o Ministério Público Federal (MPF) solicitando a apuração do caso. Em resposta, o Procurador da República Rodolfo Soares Ribeiro Lopes afirmou na sexta-feira (17) que “não há elementos mínimos que possam conduzir à conclusão, mesmo preliminar, de que o suposto crime teria relação, ainda que indireta, com disputa de terras ou qualquer outra questão relacionada à condição étnica da comunidade ou aos seus direitos coletivamente considerados”. Por isso, o procurador alega que a atribuição para investigar e adotar as medidas eventualmente cabíveis é do Ministério Público do Estado de Pernambuco.
Boletim de Ocorrência não traz informações
Assinado pelo delegado Flavio Ferreira Gomes da 191ª Delegacia de Polícia de Carnaubeira da Penha, o Boletim de Ocorrência não informa o nome do possível agressor e indica o caso como “morte a esclarecer”. O autor está como registrado como “Desconhecido (autor/agente)”. Segundo o documento, efetivos do Gati da Primeira Companhia Independente de Polícia Militar (1ª CIPM) foram executar uma operação contra disparos de arma de fogo e caça predatória de animais na zona rural da cidade.
Durante a ação, os policiais abordaram um senhor chamado João Manoel da Silva, que disse não conhecer pessoas realizando disparos ou caça na região, em seguida Edinaldo foi abordado e também teria alegado não ter conhecimento de disparos, mas os policiais dizem no BO, que Edinaldo alegou saber da existência de “pessoas ruins” no local. Posteriormente, Edinaldo teria afirmado aos PMs que não havia se alimentado e nem tomado seus medicamentos para tratar problemas de pressão arterial.
Na sequência, conforme relato dos militares, o idoso teria se sentido mal e desmaiado, sendo socorrido de imediato para o hospital municipal, em que a equipe médica havia informado que o indígena estava sem vida. O BO indica os policiais militares Emerson Gomes do Nascimento e João Jaelson Conceição Barbosa como testemunhas do caso, estes no entanto, segundo relatos dos indígenas Atikum esses policiais teriam chegado após a ação, com isso, os nomes dos policiais no BO não correspondem aos dos que estavam na aldeia no dia.
Apesar de todo esse cenário de violência, Tiago Nago destaca que a Fundação Nacional do Índio (Funai) é ausente no local e “ainda não colocou os pés na aldeia desde que o fato aconteceu”. Procurada, a instituição não respondeu à reportagem até a publicação.
O fato de a área integrar parte da região do polígono da maconha é um dos motivos que fazem do local um alvo dos policiais, diz Nago. “É uma área muito difícil, que é o polígono da maconha, é uma área em que a polícia mais violenta atua. Então tanto o povo Atikum, como o povo Pankará, como outros povos da região tem sim esse histórico de violência policial. Os indígenas, afirmam, que houve tortura o resultado morte nesse caso.”
O medo e as intimidações também permeiam a vida de uma indígena da TI Pankará, onde vivem quase 3 mil indígenas. O território está há apenas 30 km da TI Atikum, ela lembra que em 2014 foi amedrontada por militares no caminho para a cidade de Carnaubeira, em uma estrada (PE-425), que liga Carnaubeira da Penha a Floresta. “Eles me abordaram na estrada, não me agrediram, mas foi muita humilhação, tiraram minhas coisas do carro, jogaram pelo chão, fizeram ‘baculejo’ no carro. Eu dava o documento do carro, eles diziam que não queriam documentos. Fiquei 4 horas na estrada, eles mandavam eu ligar o carro e sair, em poucos metros mandavam parar novamente e faziam a mesma coisa.” Instantes depois os policiais tentaram levá-la para a delegacia mas desistiram no caminho.
De acordo com essa indígena, um homem de sua comunidade foi agredido fisicamente há cerca de dois anos por policiais militares. “Ele vinha de floresta e encontrou a polícia, pararam ele o colocaram deitado no chão, pisaram na barriga dele e colocaram a arma na cabeça para ele dizer onde tinha a ‘roça de maconha’. Levaram ele para o mato e fizeram ele ficar em pé em formigas pretas”.
Leonel Atikum, lembra que seu pai e primo já sofreram violência policial. “É sempre da polícia militar, com meu pai foi apenas violência verbal, já meu primo física e verbal. Inclusive há cerca de 10 anos teve um crime cometido pela própria polícia militar entrando na aldeia sem autorização do cacique, o líder Nego foi assassinado.”
Hoje, o jovem indígena clama por justiça e segurança no território. “Meu povo Atikum está firme e forte, queremos justiça para nosso parente Edinaldo morto inocentemente e que os policiais responsáveis sejam punidos o mais rápido possível e sua família fique mais tranquila e com segurança”, conclui.
Outro lado
Procuradas, as policiais civil e militar do estado de Pernambuco não responderam por que os policiais militares entram com frequência na Terra Indígena, quais os policiais envolvidos na ocorrência e nem quais medidas estão sendo tomadas para elucidar os fatos. A Funai não respondeu o que está fazendo para proteger os indígenas da região. À reportagem do site Marco Zero Conteúdo, a Polícia Civil de Pernambuco disse que apurar o fato por meio de um Inquérito Policial instaurado, além disso, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) está acompanhando as investigações.
A reportagem também questionou o Ministério Público Federal sobre o caso e segue aberta para as respostas. Em nota o MPPE afirmou que o promotor natural vem acompanhando o caso diariamente junto com os delegados designados pelo governador do Estado de Pernambuco.
A nota informa ainda que nesta segunda (20/06), a Promotoria deu parecer nos autos da representação das Autoridades Policiais, que tramita na Justiça (Vara de Mirandiba), manifestando-se favoravelmente pela aplicação cumulativamente de medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
Segundo o órgão, a despeito da presumível legalidade dos atos praticados pelos agentes públicos, verifica-se que os elementos de investigação até então angariados pela Autoridade Policial dão conta de uma “atuação policial grave, em desconformidade com as regras legais e constitucionais. No caso em tela, há uma ausência de descrição sobre o que teria motivado a abordagem, visto que não havia medida judicial expedida, tampouco elemento indicativo de investigação preliminar.”
Tiago Nago afirmou que o Comitê de Prevenção e Combate a Tortura de Pernambuco deverá investigar o caso junto a outros órgãos para pedir ou não a responsabilização dos responsáveis pela morte e tortura de Edinaldo.
Reportagem atualizada às 16h08 de 20/06/2022 para a inclusão da resposta do MPPE.