Naninho tinha 12 anos e o sonho de ser MC. Foi visitar um primo e acabou morto com um tiro no pescoço

    Morte ocorreu após tiroteio entre policiais e traficantes na quinta-feira (12) em Florianópolis (SC) e gerou três dias de protestos. Delegado disse que nem precisava de laudos para concluir que PMs são inocentes

    Foto: Isadora Camargo

    Adriano Lima Gregório dos Santos, ou Naninho, completaria 13 anos de idade daqui a dois meses se não tivesse sido assassinado pela Polícia Militar de Santa Catarina na madrugada da última quinta-feira (12/11). Dois meses antes de ser morto, havia sido ameaçado pela polícia, segundo a família. Moradores de Costeira, localizado no começo do Sul da ilha de Florianópolis, onde o crime ocorreu, afirma que o menino foi executado pela PM e organizou uma série de protestos.

    A PM afirma que Naninho estava armado e atirou contra os policiais, enquanto a Polícia Civil, que deveria apurar o crime, afirma que nem precisa de investigação para concluir que os policiais militares falaram a verdade.

    Naquela quinta, duas viaturas do 4º Batalhão, uma do Tático e outra da 3ª Companhia, foram acionadas por moradores para lidar com a denúncia de que havia dois homens amarrados em postes distintos na escadaria da Servidão Carioca, que abarca uma das principais bocas de fumo da região. Os militares estavam em seis.

    Chegaram ao local do crime por volta das onze e cinquenta e se depararam com um rapaz de regata branca amarrado ao poste no ponto mais alto da rua, já próximo ao matagal. A outra vítima já havia sido solta de seu castigo. Os dois homens, até agora não identificados, formavam um casal e haviam sido presos como punição por deverem 25 reais numa compra de maconha. Quando a polícia se preparou para libertar o rapaz, tiros teriam vindo da parte inferior da escadaria. Os traficantes estavam em seis também. E assim começou um tiroteio.

    Essa é a versão oficial da Polícia Militar, contada pelo comandante do 4º BPM, o tenente-coronel Dhiogo Cidral de Lima, e que encontra respaldo no relato dos PMs à Polícia Civil, segundo o titular da Delegacia de Homicídios, Ênio de Oliveira Matos.

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    Naninho foi encontrado morto logo após o cessar fogo. Estirado sobre a lama, próximo à árvore do quintal duma casa de madeira. A polícia afirma ter encontrado frente ao corpo dele uma pistola calibre 45. A família contesta e os acusa de terem plantado a arma para incriminá-lo. “Meu filho não era envolvido! Se fosse meus outros dois, eu até diria que tava fazendo coisa errada, mas o Adriano não”, esbraveja em entrevista à Ponte a mãe de Naninho, Cícera Ivanilda Gonçalves Gregório, que em 2018 e 2019 perdeu outros dois filhos para a PM, estes com envolvimento no tráfico.

    Criança aponta para local da morte de Naninho | Foto: Isadora Camargo

    A criançada do bairro lembra de Naninho caminhando pelas redondezas naquela noite. “Não tinha nenhuma arma”, contou uma delas. Duas vizinhas, que após ouvirem a troca de tiros foram juntas à varanda verificar o que aconteceu, afirmam terem visto a Glock junto do corpo, mas ressaltam que já havia um policial ao lado do menino, e por isso desconfiam de que a arma possa ter sido plantada na cena do crime.

    A Ponte colheu relato de moradores da região e, segundo explicaram, após perceberem que mataram um garoto de 12 anos, os policiais entraram nas casas ao redor e instauraram a lei do silêncio. Uma das vítimas desse abuso de autoridade, que preferiu não se identificar, teve sua casa perfurada por um projétil durante o tiroteio, mas, no lugar de acolhimento policial, recebeu ameaças. Outra vizinha disse que trancou todas as portas e janelas, mas que ainda assim ouviu policiais arrombarem seu portão e andarem pelo terreno.

    Inael Mirele Gregório dos Santos (22), uma das irmãs mais velhas de Naninho, conta que o irmão havia saído de casa para visitar o primo que mora na parte baixa da escadaria, contudo, ela não tem certeza do que o caçula estaria fazendo no topo do morro, mas acredita que isso pouco importa. “Meu irmão não era envolvido, o nosso primo só mora ali. O Naninho vivia na casa dele”, insiste.

    Leia também: O Retrato: como a polícia e a mídia destruíram a vida de um inocente

    Ela foi a primeira familiar a ser avisada da possível morte do irmão. Era depois da meia noite, estava de pijama quando uma amiga bateu na janela do quarto e relatou o que poderia ter acontecido. Angustiada, saiu correndo e procurou pela faxineira Silviane Lopes da Silva, 37, uma das melhores amigas de sua mãe. As duas desceram juntas para a região da Servidão Carioca. Quando chegaram perto da escadaria, por volta das duas da manhã, o IML já estava descendo com o corpo em um saco. Eram quatro legistas, um em cada ponta, e dois policiais armados escoltando, na frente e atrás. Silviane solicitou que pudessem ver se se tratava de Naninho, mas foi aconselhada a procurar o IML no amanhecer.

    Voltaram para casa em prantos. Mesmo sem ver o rosto, reconheciam o porte físico dentro daquele saco. Silviane passou a madrugada junto de Cícera Ivanilda. “Eu não sabia como contar pra ela [a mãe]. Eu pensava: ‘Ela já perdeu dois filhos, vai entrar em choque se eu contar isso agora’. Então esperei até às seis da manhã pra falar. Pelo menos assim a gente já poderia ir direto pro IML, que teria gente para atender”, conta Silviane.

    Segundo Cícera Ivanilda, policiais militares vivem ameaçando sua família. Dois meses atrás, cinco policiais fizeram uma batida em sua casa, mandando todo mundo para fora do recinto. Dois ficaram vigiando a família enquanto os outros três adentraram com o pai, que insistiu em acompanhar todo o procedimento. Uma vez terminada a ação, os cinco militares se reuniram na frente da casa e um deles se agachou para Naninho, levantou a balaclava e disse algo nos moldes de: “Olha bem pro meu rosto. Nós vamos fazer contigo o que fizemos com teu irmão.”

    O Comandante do 4º BPM, o tenente-coronel Dhiogo Cidral de Lima, conta uma versão diferente para a morte de Naninho, na qual os policiais militares apenas checaram sinais vitais de Naninho, fecharam a cena do crime e ficaram à espera da Polícia Civil. Teriam seguido os protocolos, nada além. O coronel questiona também o que o garoto estaria fazendo lá.

    “O que ele estava fazendo àquela hora na comunidade? Longe, inclusive, de onde ele morava. Isso denota naturalmente que tem um envolvimento dele. Como ele chegou ali?… O que que o tráfico seduziu ele para ele chegar a esse lugar?”, indagou Cidral.

    Escadaria em que tudo ocorreu | Foto: Isadora Camargo

    O delegado Ênio diz que ainda não teve acesso aos laudos do crimes, mas já considera Naninho culpado de sua própria morte. “Ele estava com a arma na frente dele, qual a dúvida de que cometeu o crime?”, indaga. Para ele, os fatos são muito simples e não precisam de mais apuração, afinal, a arma estava ali. “Esse vai ser meu relatório. Quando tiver pronto vou apontar nesse sentido”, disse ele, sem ter recebido os laudos, exames e perícias.

    O assassinato e o descaso geraram revolta na comunidade da Costeira. Já foram realizados três atos, um na noite da quinta-feira (12/11), outro na sexta-feira (13/11) e um último no domingo (15/11). Os dois primeiros, organizados por lideranças da comunidade, ocorreram frente ao supermercado Bistek do bairro Costeira e transitaram para frente da rodovia Governador Aderbal Ramos da Silva, uma das principais da Ilha.

    O protesto de sexta-feira chegou a parar vias de trânsito, o que aumentou a tensão e, segundo presentes na manifestação, levou garotos a provocarem a polícia, culminando em truculência por parte dos fardados. Crianças e idosos passaram mal com o gás lacrimogêneo, e a polícia também disparou balas de borracha. O protesto de domingo foi realizado pela própria família como resposta ao anterior, numa tentativa de se mostrar pacífico.

    Inael Mirelle em manifestação na sexta-feira (13/11) por justiça para seu irmão, Naninho | Foto: Isadora Camargo

    Sonhava em cantar funk e andar de skate

    Naninho é lembrado pelos amigos como um garoto altamente sociável, com gosto pela pista de skate e pela rima. “Ele me viu rimando, visitava a produtora de um amigo aqui da Costeira e acabou se empolgando e começou a escrever no caderno dele. O Naninho rimava sobre tudo que ele vivia, os bailes que ia, os amigos, tudo”, conta João Gonçalvez, 16, cantor de trap no início da carreira.

    Durante o dia, além de estudar, gostava de andar de moto de trilha nas partes bucólicas do morro e de andar de skate no Skate Park Costeira.  “Oh, ele falava muito de trilha, da moto dele e de skate. Andava muito bem de skate. Era muito encarnado. Nós conversa sobre tudo”, diz o amigo Rafael Roux, vendedor, 21.

    Foto: Arquivo pessoal

    Naninho vinha de um lar amoroso, com pais presentes e trabalhadores — a mãe era vendedora e o pai era pizzaiolo e taxista. Tinha oito irmãos: cinco mulheres e três homens. Contudo, dois dos irmãos foram mortos pelo mesmo batalhão da PM. O primeiro se foi em 2018, o segundo em 2019; ambos com envolvimento com o Primeiro Grupo da Capital, facção criminosa catarinense aliada ao Comando Vermelho carioca. Com essas perdas tão intensas, os sonhos e gostos de Naninho se esmoreceram. Sua mãe também saiu muito afetada dos lutos e hoje toma doses cavalares de antidepressivos e outros remédios.

    Hoje, ainda sob ameaças, segundo relata, Cícera Ivanilda está determinada a se mudar com a família para Palhoça ou São José (região metropolitana de Florianópolis). Não quer mais que o ciclo de violência continue a recair sobre sua família.

    *Todos os membros da vizinhança preferiram manter-se anônimos

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