‘Não me sinto heroína, foi um ato de mãe’, diz merendeira que salvou alunos no massacre de Suzano

    Um ano depois do ataque, Silmara Silva de Moraes ainda toma remédios para dormir e chora ao lembrar do ataque que matou cinco estudantes e duas funcionárias da escola

    Um ano após abrir a porta que separava o refeitório do pátio da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (Grande SP), para abrigar ao menos 50 meninos e meninas atônitos ao verem dois jovens praticarem ataque a tiros e golpes de machadinha contra eles, a cozinheira escolar Silmara Cristina Silva de Moraes, 50 anos, ainda não se recuperou do que presenciou. Ela se emociona ao relembrar o que viu e até hoje toma medicamento para dormir, já que quando deita a cabeça no travesseiro as cenas de desespero daquele 13 de março de 2019 teimam em aparecer.

    Logo após o massacre, praticado por dois jovens que também morreram na ação (um atirou no outro e depois se matou, conforme a polícia), Silmara foi homenageada pelo governador João Doria (PSDB) por sua ação e considerada uma heroína por dar abrigo aos alunos sob mesas e atrás de geladeiras.

    A merendeira, porém, não se vê assim. “Todo mundo que fala: eu sou um herói é porque fez algo extraordinário para acrescentar na sua vida, na sua carreira ou para mídia. Agora eu, fiz o que meu coração mandou. Fiz aquilo que meu coração sentiu na hora. Eu não me sinto uma heroína porque aquilo foi um ato de mãe” afirmou Silmara, em entrevista à Ponte na véspera de o crime que marcou sua vida completar um ano.

    “A gente não consegue dormir, eu ainda tomo calmante. É um coisa que fica muito constante [a lembrança do massacre]. Não tomo todos os dias, fui medicada para tomar um calmante leve, mas ainda tomo”, relata.

    Para Silmara, que é mãe de três filhos de 26, 23 e 19 anos, o verdadeiro heroísmo está no dia a dia: “Herói nós somos todos os dias, porque nós salvamos a vida da nossa família, das pessoas que estão do nosso lado. Às vezes não é um grande ato, às vezes uma palavra salva a vida de pessoas. Por isso eu não me vejo assim”.

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    Atualmente, a Escola Estadual Raul Brasil passa por um reforma que teve início em outubro e deve ser finalizada em abril, segundo cronograma da Secretaria da Educação. Por esse motivo, Silmara e os alunos da unidade estão alocados na Faculdade Piaget, a cerca de um quilômetro do local da tragédia.

    Silmara conta que sua vida não mudou depois do fato, mas passou a dar mais valor a uma série de situações do cotidiano que antes passavam despercebidas. “Não mudou nada na minha vida. Continuo a mesma pessoa, mas com um sentimento maior de amar o meu próximo como a mim mesma, porque a vida passa num segundo”. Ela continua: “Eu tenho que viver a minha vida intensamente como se hoje fosse o último dia da minha vida. Eu aprendi a dar valor nas mínimas coisas”.

    Durante a entrevista, Silmara pensa bem antes de falar e responde de maneira sucinta. Só evita contar o que viu naquele dia. “Eu não queria tocar nesse assunto. Hoje, não. Hoje eu não consigo falar. Está sendo muito duro esse dia. Tem sido dias de choro. Não tem sido uma semana legal. Tem sido uma semana de dor”, relata.

    Merendeira há 11 anos, ainda completa: “Eu não tenho uma palavra definida [sobre um ano atrás] porque a gente sente muito. A gente ainda está lutando contra os nossos pensamentos, a nossa lembrança. Quando a gente lembra, parece que nós ainda estamos lá naquele lugar”.

    De acordo com Silmara, que continua a fazer a merenda dos alunos do Raul Brasil na unidade provisória, o atentado a fez se aproximar ainda mais deles, tratando-os como se fossem seus filhos. Para os familiares de pessoas que morreram na tragédia, ela fez questão de deixar um recado. “Que as mães sempre relembrem que filho é herança, mesmo ele não estando aqui, ele sempre vai ser uma herança em nosso vida, uma herança muito boa”.

    O massacre

    Na manhã do dia 13 de março de 2019 os jovens Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25, ambos ex-alunos da Raul Brasil, entraram na escola e atacaram estudantes e funcionários com tiros de revólver calibre 38, golpes de machadinha e besta (arma de arco e flecha com disparo por gatilho).

    As vítimas do massacre foram a coordenadora pedagógica Marilena Ferreira Veira Umezo e a inspetora Eliana Regina de Oliveira Xavier, e os estudantes Pablo Henrique Rodrigues, Cleiton Antonio Ribeiro, Caio Oliveira, Samuel Melquiades Silva de Oliveira e Douglas Murilo Celestino, que tinham entre 15 e 16 anos. O tio de Guilherme, Jorge Antonio Moraes, foi morto antes da ação na escola.

    O enterro coletivo, que levou uma multidão a lotar o ginásio esportivo de Suzano motivou pedidos por paz e contra a liberação de armas, ação promovida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que chegou a enviar o então ministro da Educação, Ricardo Vélez, para prestar condolências aos familiares.

    Membros de um fórum misógino e racista comemoraram o crime, apontando que o modelo do ataque era similar ao de outros cometidos por incels – celibatários involuntários, homens que não conseguem fazer sexo e culpam as mulheres e o mundo por isso.

    Após o crime, investigação da Polícia Civil chegou aos homens que teriam vendido armamento e munição aos responsáveis pelo ataque. Na sequência da denúncia do Ministério Público eles foram sentenciados pela Justiça. Atualmente, todos estão em liberdade. Cristiano Cardias de Souza, que teria intermediado a venda da arma foi condenado a quatro anos de prisão, mesma pena imposta a Geraldo de Oliveira Santos, que teria vendido a arma a um dos autores. Já Adeílton Pereira dos Santos, que também é acusado de ter comercializado uma arma será julgado em outra oportunidade. Um quarto homem supostamente envolvido na trama foi absolvido.

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