Novo júri absolve ex-PMs que mataram jovem que havia se escondido em lixeira

Jurados entenderam que Tyson Bastiane e Silvano dos Reis atuaram em legítima defesa; câmera de segurança registrou Paulo Henrique sendo desalgemado e depois morto em 2015

Caramante
Paulo Henrique Porto de Oliveira, 18 anos, foi morto por PMs de SP após ser rendido | Foto: arquivo pessoal

“Obrigada, meu Deus!”, chorava desesperada a mãe do ex-PM Tyson Oliveira Bastiane enquanto a esposa dele se ajoelhava no chão às lágrimas na noite desta terça-feira (16/8). Ele e o também ex-soldado Silvano Clayton dos Reis foram absolvidos pela morte de Paulo Henrique Porto de Oliveira, 18 anos, que aconteceu em 2015.

Os ex-soldados foram submetidos a um novo julgamento após a 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo ter acolhido, em 2019, um recurso do Ministério Público Estadual (MPSP) que alegou que o júri de 2017 foi contrário às provas do processo por ter absolvido Silvano da acusação de homicídio e o condenado apenas por porte ilegal de arma, fraude processual e falsidade ideológica, que totalizavam uma pena de quatro anos e 11 meses de prisão em regime semiaberto e pagamento de multa (que ainda não estava cumprindo pois pôde recorrer em liberdade).

Em 2017, Tyson havia sido condenado a 12 anos e cinco meses de prisão em regime fechado e pagamento de multa pelos quatro crimes (sem possibilidade de recorrer em liberdade) e o MPSP também recorreu porque os jurados descartaram as qualificadoras de meio cruel, do recurso que dificultou a defesa vítima e de motivo torpe (desprezível), que aumentariam a pena do homicídio.

Os desembargadores entenderam que Silvano, de fato, participou da execução da vítima devido a um registro de câmera de segurança, e que assim também deveria ser julgado novamente pelo crime. “Com efeito, Silvano determinou a retirada das algemas de Paulo Henrique e permaneceu ao lado do atirador durante a execução. Além disso, após os disparos, pegou uma arma que estava guardada na viatura com a intenção de criar uma falsa troca de tiros, a fim de legitimar a covarde morte do ofendido”, escreveu o relator Xavier de Souza.

Os desembargadores também deram ao razão ao argumento da promotoria de que as qualificadoras eram aplicáveis a Tyson ao afirmarem que Paulo Henrique foi assassinado por ter fugido dos policiais num primeiro momento e por conta de os acusados terem sido “capazes de executar fria, sádica e covardemente uma pessoa rendida, desarmada e cercada, após deixá-la por algum tempo em elevado nível de desespero, posto que sabia que ali seria morta”.

As condenações de fraude, falsidade e porte ilegal de arma para ambos já transitaram em julgado no ano passado, ou seja, não podem ser recorridas. O júri desta semana avaliou apenas o crime de homicídio com as qualificadoras.

Em 2015, a Ponte Jornalismo revelou a ação dos policiais militares. Imagens de câmera de segurança obtidas pela reportagem na época mostraram Paulo entrando numa lixeira e depois saindo com as mãos para o alto, tirando a blusa e a camiseta e a vestindo novamente. Depois ele aparece sentando no chão, levanta as mãos para o alto novamente. Vira de bruços, levanta mais uma vez as mãos para o alto. O rapaz deita com o rosto no chão, em sinal de rendição.

Ele chega a ser algemado pelo então soldado Sílvio André Conceição, que estava acompanhado de outra policial. Depois, outros policiais aparecem, entre eles Tyson e Silvano. Por ordem de Silvano, Silvio retira as algemas de Paulo. Tyson é o que afasta os colegas e leva Paulo para um muro, onde atira contra ele duas vezes. Silvano é o que aparece de seu lado e é registrado correndo até carro da polícia, abrindo a porta traseira esquerda, pegando uma pistola, colocando o carregador, depois abrindo a porta dianteira esquerda, fala algo no rádio e volta correndo até o corpo de Paulo, onde a arma é colocada. Toda a ação dura aproximadamente oito minutos.

Tyson, Silvano e Silvio já haviam sido expulsos da corporação, em 2018, pelo “cometimento de atos atentatórios à Instituição, ao Estado, aos direitos humanos fundamentais e desonrosos, consubstanciando transgressão disciplinar de natureza grave”, conforme publicação do Diário Oficial do Estado. Silvio foi absolvido no júri de 2017 e a promotoria não recorreu sobre o resultado referente a ele.

Durante o novo julgamento, apenas duas testemunhas relacionadas ao caso prestaram depoimento: uma que colidiu o carro na viatura de Tyson e Silvano e que pediu para ser ouvida sem a presença do público; e o capitão Marco Aurélio Berrini, que conduziu o inquérito policial militar (IPM) na corregedoria da corporação e disse que a irregularidade começou a partir do momento em que Paulo foi desalgemado pela equipe de Tyson e Silvano, que chegaram depois. “Não há hipótese de desalgemamento até que se conduza ao distrito policial, ainda mais um indivíduo que estava fugindo na rodovia”, declarou.

Outras duas pessoas ouvidas, a pedido da defesa dos acusados, foram vítimas de crimes que nada tinham a ver com o julgamento, como sequestro relâmpago, mas que foram atendidas pela dupla quando estavam na corporação, antes de o crime acontecer, a fim de demonstrar ocorrências bem sucedidas dos ex-policiais.

Os acusados sustentaram que não executaram Paulo e que mudaram de versão sobre troca de tiros, após as imagens virem à tona, porque não queriam ser responsabilizados por uma falha de procedimento, que foi desalgemar uma pessoa já contida. “O Reis [Silvano] pediu para desalgemá-lo porque ele [Paulo] tinha dito que estava ferido”, declarou Tyson.

“Ele disse que ia colaborar para dizer onde estava o comparsa, mas depois se agachou no chão e disse que não ia mais. A gente estava em superioridade numérica, a gente não imaginou que ele ia tomar a arma. Ele tentou tomar minha arma e eu precisei atirar para me defender.”

Silvano admitiu, de forma parcial, que forjou a cena do crime dizendo que houve uma troca de tiros durante a perseguição e não no momento em que Paulo foi abordado. “Eu vi meu parceiro em choque, atordoado, ele só dizia ‘ele pegou minha, ele pegou minha arma’, e cometi o erro de ir até a viatura e mostrar que a gente pegou a arma que ele [Paulo] dispensou na Raposo Tavares”, disse.

“A gente achou que ninguém acreditar que ele tentou pegar a arma. Eu cometi o erro de tentar forçar uma situação que não aconteceu. O disparo que eu dei com a arma [pistola calibre 380 apresentada] foi acidental.”

O promotor Rogério Leão Zagallo questionou as contradições dos interrogatórios dos dois, apontando que não teria como, durante a perseguição e a colisão com outro carro, eles enxergarem Paulo ter jogado uma arma na rodovia momentos depois de ter supostamente atirado contra a viatura, cujo veículo não tinha sinal de disparo. Zagallo declarou a pistola foi plantada e que os acusados informaram distâncias diferentes do momento em que teriam sido alvo do tiro e revidado.

Enquanto Tyson disse que foi muito perto e que “quase morreu”, Silvano demonstrou um comprimento muito mais distante. “Essa arma ilícita foi guardada estrategicamente e naquele dia foi usada”, disse o promotor.

Além disso, Zagallo pontuou que a pistola 380 tinha vestígios de dois disparos que teriam sido feitos por Silvano para simular o confronto. “Se não tivesse essas imagens, e esse caso me acendeu um alerta amarelo, esse caso teria sido arquivado indevidamente. Os bons policiais são taxados de executores, de abusadores, por causa de uma minoria como essa”, criticou.

“A vítima estava em claro sinal de rendição, ele levantou a camisa branca, não tinha nenhum sinal de sangue, isso de que ele disse que estava baleado é mentira. O soldado André [Silvio André] e a policial Mariane revistaram ele. Eles [acusados] deliberaram e ali decidiram a sentença de morte do Paulo e a executaram.”

A defesa dos ex-PMs, feita pelos advogados Nilton de Souza Vivan Nunes e Paulo César Pinto, argumentou que eles atuaram de forma legítima em relação ao homicídio. “Ou ele [Tyson] atirava no indivíduo ou ele seria morto”, alegou Nunes. “Eles fizeram merda, mentiram quando poderiam ter dito a verdade desde o início e nem estariam aqui para serem julgados, mas eles já foram condenados por isso”, ao mencionar os crimes de fraude processual, falsidade ideológica e porte ilegal de arma.

“Não foi uma execução”, sustentou César Pinto sobre a câmera de segurança não evidenciar com clareza o momento em que Paulo é baleado. “Um tiro de execução seria na cabeça ou no coração e o laudo necroscópico mostra que um foi no ombro e atravessou e outro foi aqui [ao apontar com o dedo para o lado esquerdo da barriga]. É óbvio que foi de cima para baixo porque ele tentou se levantar para pegar a arma”.

Sentença com a absolvição de Tyson e Silvano | Foto: Reprodução

Amigo de Paulo foi morto na mesma abordagem

Paulo e Fernando Henrique da Silva, 23, estavam em uma moto roubada e fugiram ao serem surpreendidos por policiais na Rodovia Raposo Tavares. Enquanto Paulo foi se esconder em uma lixeira na rua Conceição Russomano Pugliese, Fernando teria fugido pelos telhados de imóveis na região do Butantã e os PMs Flávio Lapiana de Lima, Fábio Gambale da Silva e Samuel Paes foram atrás dele.

Os três policiais foram absolvidos, em um júri popular à parte de Tyson, Silvano e Silvio, das acusações de homicídio qualificado por motivo torpe, meio cruel e por recurso que dificultou a defesa da vítima, em março de 2017. Flávio e Fábio também foram inocentados pelos crimes de falsidade ideológica e fraude processual.

Caramante
Fernando Henrique da Silva tinha 23 anos | Foto: arquivo pessoal

O Ministério Público havia denunciado o trio pela morte de Fernando após a divulgação de um vídeo de parte da abordagem em que Samuel e a vítima aparecem em cima do telhado de uma casa. A promotoria entendeu que Samuel jogou a vítima de uma altura de três metros e, ao cair no chão “desarmada e rendida”, foi baleada quatro vezes por Fábio e Flávio, que ainda teriam modificado a cena do crime.

Os policiais sustentaram a tese de legítima defesa ao argumentarem Fernando atirou na direção da dupla ao cair do telhado e que foi apreendida uma pistola calibre 9mm, atribuída a ele, e um estojo vazio de munição compatível.

A absolvição se sustentou também porque o então advogado da família da vítima, que atuava como assistente de acusação, pediu aos jurados para que Samuel fosse absolvido por entender que ele não teve relação direta com a morte de Fernando, o que o promotor Roberto Zagallo considerou, na ocasião, um erro por ter sustentado a tese de defesa dos demais.

Durante o julgamento de Tyson e Silvano, Zagallo lembrou do caso. “Em 30 anos, foi a maior decepção que eu tive porque ali houve uma execução e os policiais que foram absolvidos estão aqui hoje torcendo pela absolvição deles dois”, declarou. O promotor disse que não recorreu do resultado do julgamento porque não tinha uma prova nova que não tenha sido apreciada pelos jurados na ocasião.

Ajude a Ponte!

A sentença de absolvição dos quatro envolvidos transitou em julgado em novembro do ano passado e não há mais possibilidade de recurso. A defesa da família havia tentado recorrer, mas o pedido foi negado. Samuel, Fábio e Flávio seguem na corporação.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas