Novo filme do Homem Aranha contém debates que raras vezes tem espaço em histórias de super-heróis
Aviso: este artigo contem spoilers.
Confesso que as expectativas eram baixíssimas desde o anúncio de lançamento do filme. Tudo isso pelos meus sérios problemas com a construção o Homem Aranha de Tom Holland.
(Aliás, nada contra o ator, porque amei inclusive seu trabalho em “O Diabo de Cada Dia”. Mas sempre concordei com parte da crítica que diz que esse Peter não tinha o ar do jovem do bairro Queens que ralou muito para ser independente e construir a identidade do amigo da vizinhança.)
Pois bem, aconteceu a maior quebra de expectativas ou o maior tapa na cara que eu poderia ter levado. Fomos apresentados a quase que um filme de origem do Peter Parker na pele de Tom, mas o texto não é sobre isso.
E, apesar da fixação pessoal em filmes de heróis, nunca me faltou o ar de crítica em entender a sanha por punição, prisão e vingança sendo combustível das grandes franquias de heróis – inclusive a perfeita contradição de quem combate o crime fazendo parte do sistema que alimenta as desigualdades, como Tony Stark ou Bruce Wayne.
Mas algo me chama atenção na construção didática de “Homem Aranha: Sem Volta para Casa” para o debate sobre o populismo midiático no que diz respeito à segurança pública. E longe de mim equiparar situações da vida real com as do do universo fantástico, mas, como diz a frase: “a vida imita a arte”.
Homem Aranha versus datenismo
A disposição da retomada do Clarim Diário na materialização da volta de J. Jonah Jameson, que dessa vez tem a internet como seu grande aliado e tem muito o que nos ensinar sobre os fenômenos datênicos e linchamento através de programas sensacionalistas. Jameson agora usa da internet em seu favor para novamente atacar a figura do Aranha, de quem sempre não gostou
Nostálgica, com certeza, me peguei pensando no didatismo da situação de JJ, que começa gravando de sua casa com uma câmera e rapidamente ganha holofotes e mais espaço na mídia tradicional para destilar seu sensacionalismo.
Aliás, em tempos de fake news e algoritmos do ódio, é uma sacada incrível falar sobre as oportunidades no engajamento do ódio e as aberturas para lunáticos debaterem segurança pública. A situação toda aqui perfeitamente cabe na frase de Malcolm X.
“Se você não for atento e cuidadoso, os jornais o farão odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que são opressoras.”
Vale a pena uma segunda chance ou estamos preparados para debate de ressocialização?
É interessante o debate moral que Peter leva para Strange – que, quase no automático, assume para si próprio que a vida é assim, a curva natural das coisas também. Não se tem espaço para segundas chances, e isso não está distante de uma posição que vivemos no cotidiano.
É claro que o roteiro aplica a frase para uma explicação sobre alteração da ordem natural das coisas do multiverso etc., mas nada disso se difere de um debate feito enquanto sociedade sobre segundas oportunidades, bandido bom é bandido morto e a quebra de expectativa quando temos que avaliar indivíduos na posição de vilão.
O roteiro coloca Andrew Garfield e Tobey Maguire para falarem sobre suas perdas pessoais, frutos da responsabilidade de ser o Aranha, mas também do produto da sociedade que é o criminoso, que ali não se tem paz quando se quer vingança – e é interessante a abordagem, porque o tempo todo a construção do herói não permite o erro e a fraqueza. Inclusive vale lembrar da remessa que acompanha Watchmen e The Boys no que diz respeito “quem vigia os vigilantes” e a autorização para ser o tempo todo perfeito, porque heróis são assim “deuses imaculáveis”.
Sabemos que não é a primeira vez que um filme de franquia de quadrinhos se propõe a discutir debates morais sobre o criminoso. Em “Cavaleiro das Trevas”, um debate no mesmo tom sobre quem deve viver, “cidadãos de bem” ou “presos”, leva para a mesma trilha, de quem é responsável e moralmente acima para escolher quem merece viver mais.
O que nos traz novamente para embate de Peter e Strange e a tal ordem natural das coisas, quem está acima da justiça para definir que vilão vive ou morre e ter como meta pessoal se vingar.
Esse texto não tem finalidade de entregar uma grande solução. Mas, em tempos de justiçamento como método eficaz, é interessante ver uma grande franquia dando brecha para esse tipo de discussão e claro, achar ganchos para realidade.
Talvez, enquanto sociedade, falta sermos mais Peter Parker e pensar que a outros jeitos de minimizar a produção caótica do crime e criminoso e os tantos vilões que nos atravessam. Diminuir o tom e espaço daqueles que usam dos holofotes para vingança é um bom começo.
Andreza Delgado é produtora de conteúdo, cocriadora de PerifaCon, PerifaGamer e Copa das Favelas