‘O Estado deveria proteger, mas acabou com os sonhos do meu filho’, diz mãe de João Pedro

Morte de adolescente, assassinado aos 14 anos, completa um ano com investigações paradas e família exige respostas; menino foi morto em operação das polícias Civil e Federal

Rafaela Matos e o filho João Pedro em comemoração ao Dia das Mães | Foto: arquivo pessoal

“Passar o dia das mães sem meu filho foi o segundo pior dia da minha vida”, desabafa a professora Rafaela Matos, 37. Em maio do ano passado, ela lembra que reuniu a família na casa da irmã para um almoço conjunto para comemorar o Dia das Mães, que foi o último com o filho João Pedro Matos Pinto, 14. Uma semana depois, no dia 18 daquele mês, o menino foi morto com um tiro na barriga dentro da casa de parentes após uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

O adolescente chegou a ficar horas desaparecido após ser resgatado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros. A família só o encontrou no dia seguinte, no Instituto Médico Legal de Tribobó, na mesma cidade. “É muito triste você investir no seu filho e o Estado, que deveria zelar e proteger pela vida dele, acabar com os sonhos dele”, lamenta.

Há um ano a família do adolescente exige resposta do Estado em relação às investigações do caso, que estão paradas. “Quanto mais a gente espera, mais a angústia aumenta”, afirma Rafaela. Ela, que atua na educação infantil, voltou a dar aulas em fevereiro. “A gente tenta retomar a rotina, mas é muito difícil, porque onde eu trabalho eu via o João Pedro todos os dias”, lembra.

Leia também: Pai de João Pedro, morto pela polícia: “Os ‘sentimentos’ do governador não vão trazer meu filho”

De acordo com Rafaela, a única instituição que tem prestado apoio à família é a Defensoria Pública, que atua no caso. “Ninguém veio dar uma resposta para a gente”, lamenta. “O que a gente sabe é que teve uma reconstituição no dia 29 de outubro [de 2020] e faltava a polícia entregar um laudo da reprodução simulada ao Ministério Público, mas até agora nada”, prossegue.

Para ela, um sinal importante foi o Ministério Público Federal ter retornado ao investigar o caso nesta segunda-feira (17/5) por conta da morosidade das apurações. O órgão havia iniciado as investigações por envolver operação conjunta com a Polícia Federal, mas depois, por entender que a morte do adolescente foi cometida por policiais civis, havia deixado o caso. Os tiros que atingiram a casa onde João Pedro estava, que fica a um quilômetro e meio de onde morava com o pai, a mãe e a irmã de cinco anos, foram disparados pelos inspetores Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), equipe de elite da Polícia Civil do Rio. De acordo com o jornal Extra, os policiais seguem trabalhando normalmente.

O caso de João Pedro, morto dentro de casa no auge da pandemia, tomou tamanha repercussão que foi citada na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, como ficou conhecida a ADPF Favelas, em que o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), proibiu em junho do ano passado a realização de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais. A determinação proferida de forma monocrática foi ratificada pelo plenário no mês seguinte.

Leia também: Restrição para ações policiais em favelas poupou 300 vidas no RJ, aponta estudo

“Meu filho estava cumprindo a quarentena, dentro de casa”, lamenta Rafaela. “Na época, eu cheguei a comprar uma máscara do Fluminense, que era o time que ele gostava, mas ele nem chegou a usar”, lembra.

Mesmo com a determinação do STF, as operações policiais continuaram a ocorrer. Desde junho de 2020 até março deste ano, 823 pessoas foram mortas em operações policiais. A mais letal da história do Rio de Janeiro foi a operação da Polícia Civil na comunidade do Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense, em maio deste ano, quando 28 pessoas, incluindo um policial civil, foram mortos. “Eu tento não acompanhar muito quando ligo a televisão porque é muito dolorido ver que outras mães também estão perdendo seus filhos como eu perdi. É muito triste ver que a polícia entra na comunidade, atira, limpa cena do crime e não acontece nada. A impunidade no Brasil é muito descarada”, critica a professora.

Leia também:Um adolescente morto por mês. É o resultado das operações policiais no RJ

Em meio a essas ações, o procurador-geral de Justiça do estado Luciano Mattos extinguiu neste ano o Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública) do Ministério Público Estadual, que atuava especificamente com a investigação e responsabilização de abusos policiais.

Agora, Rafaela e a família lutam para que o caso de João Pedro não seja esquecido e não fique impune. “O que me move é buscar justiça pela memória do meu filho, para que as autoridades deem uma resposta, e parem de matar crianças”, enfatiza.

O que diz o governo

A Ponte procurou a secretaria da Polícia Civil do Rio de Janeiro a respeito das investigações do caso. A assessoria da pasta informou que a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí “aguarda o resultado do exame realizado pelo MP para anexar ao inquérito” e que o MP e a Defensoria Pública solicitaram Polícia Civil de São Paulo “uma contraperícia de balística nas armas apreendidas durante a ação”. A secretaria alegou que aguarda esse último laudo para concluir as apurações.

Já o Ministério Público Estadual informou que “o caso está em andamento junto à 1ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada dos Núcleos Niterói e São Gonçalo e está sendo analisado”. A assessoria também disse que a promotoria “aguarda o Relatório Final do Inquérito da Delegacia de Homicídios e trabalha para a conclusão do laudo independente da reconstituição no âmbito do Procedimento Investigatório Criminal (PIC) que foi instaurado”.

Já a Defensoria Pública* informou que pediu a reabertura do inquérito na esfera federal ao MPF. “O caso está paralisado praticamente desde a reconstituição e, desde então, a gente sequer tem o laudo. A gente tem uma série de irregularidades gravíssimas, como a não preservação da cena do crime, destruição de provas, manipulação da cena. Nenhuma testemunha foi ouvida, tampouco foi pedida qualquer medida cautelar, como quebra de sigilo. A gente tem tido dificuldade de promover o andamento da investigação”, disse o subcoordenador do núcleo de defesa dos direitos humanos Daniel Lozoya em nota.

A reportagem também procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo a respeito do laudo, mas não teve resposta até a publicação. O Ministério Público Federal também foi procurado, mas não retornou.

*Reportagem atualizada às 12h27, de 18/5/2021, após recebimento de nota da Defensoria.

Correções

*Reportagem atualizada às 12h27, de 18/5/2021, após recebimento de nota da Defensoria.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas