Quando um jornalista tem acesso a íntegra de um boletim de ocorrência, pode ouvir testemunhas, confrontar versões… Pode, enfim, contar histórias que não interessam ao governo, apenas à sociedade. E governos não costumam gostar disso
Dennis Williams passou 17 anos no corredor da morte em Illinois, nos Estados Unidos, esperando a picada de uma injeção letal por causa de uma acusação de estupro e homicídio. Foi solto em 1996, graças ao corre de um grupo de estudantes de jornalismo que, em vez de estudar a influência da rebimboca da parafuseta à luz de Edgar Morin, resolveu investigar a história de Williams, foi atrás de pistas que a polícia havia ignorado e provou que ele era inocente.
Não faltam Dennis Williams por aí. Tem ONGs nos EUA que cuidam só de tirar inocentes da cadeia. Caso do Projeto Inocência, que, desde 1992, já livrou da cadeia 337 pessoas que haviam sido condenados injustamente pelo sistema de justiça norte-americano (desse povo, 70% pertenciam a alguma minoria racial). Também tem documentários que fazem esse papel: a trilogia Paradise Lost, exibida pelo HBO, ajudou a tirar do xilindró três jovens condenados por homicídio, ao mostrar que nunca houve prova mais substancial contra eles do que o gosto que tinham por heavy metal. Making a Murderer, lançado há pouco pelo Netflix, tenta fazer o mesmo a respeito de uma outra prisão para lá de suspeita.
Aqui no Brasil, o jornalista Caco Barcellos passou anos investigando os registros policiais esquecidos de uma sala empoeirada do Instituto Médico Legal, entre vidros de formol contendo olhos e fetos deformados. A pesquisa se somou a várias outras fontes de informação e a muita sola de sapato gasta nas ruas para chegar a um levantamento detalhado das circunstâncias de 3.846 mortes executadas pela Rota, tropa dita “de elite” da PM paulista, entre 1970 e 1992, que concluiu: 65% dos assassinados eram inocentes. O livro Rota 66, resultado dessa pesquisa, não serviu para colocar ninguém na cadeia (alguns matadores, ao contrário, se deram bem na carreira política), mas pesou na aprovação da Lei Hélio Bicudo que, em 1996, tirou da Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por PMs, que passou a ser competência da Justiça comum.
Essas histórias todas me vêm à cabeça quando vejo o governo Geraldo Alckmin anunciar publicamente a censura aos boletins de ocorrência registrados nas delegacias, agindo como se a Lei de Acesso à Informação não existisse. São historias que servem para lembrar que a proibição de acesso aos registros policiais não prejudica só os jornalistas. O atitude do governo paulista censurou a mim. Censurou você. Censurou todos nós.
A proibição de acesso a boletins de ocorrência impede a fiscalização do trabalho dos homens da lei pelas pessoas comuns, que tanto podem ser jornalistas como estudantes, advogados, pesquisadores universitários, membros de ONGs e coletivos… enfim, aquelas pessoas sem farda que os defensores da violência policial ilegal gostam de chamar de “sociedade hipócrita”. Policiar a polícia – e o Ministério Público, e o Judiciário, e o sistema prisional – é um trabalho que ajuda a corrigir injustiças, libertar inocentes e punir os verdadeiros culpados.
“Informações pessoais” é desculpa
E o governo não desistiu dela. Num primeiro momento, Alckmin anunciou que o acesso aos boletins ficaria inacessível por 50 anos, mas, como essa postura de censura assumida foi detonada até pelo Tribunal de Contas do Estado, o governador fez que recuou. Publicou um decreto que proíbe “a fixação prévia de sigilo”, mas que abre espaço, em seus artigos 12 e 14, para a mesma censura de sempre. Lá, está dito que o acesso a “informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem detidas pelos órgãos e entidades” será proibido, a não ser que façam parte de “conjuntos de documentos necessários à recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Razoável? Parece. Mas só se você não souber do histórico do governo de São Paulo nessa questão. A Segurança Pública e a Polícia Militar vêm usando a alegação de “informações pessoais” para proibir o acesso a dados da “maior relevância”, como a lotação e o histórico profissional de policias acusados de execuções de jovens em tiroteios forjados e chacinas. Nós da Ponte apontamos várias censuras do tipo levadas a cabo pela gestão Alckmin no estudo Informação Encarcerada, que fizemos para a Artigo 19. O estudo deixa claro que a tentativa de alegar “informações pessoais” para negar o acesso a dados sobre crimes é uma prática que infringe tanto a Lei de Acesso à Informação como o decreto estadual 58.052/2012, que regulamentou a LAI em São Paulo. Nas duas normas, a regra é clara: a restrição a informações pessoais não vale para dados que forem necessários “à defesa de direitos humanos; ou à proteção do interesse público e geral preponderante”.
Tudo indica que o governo vai continuar a impedir o acesso de jornalistas e outros pesquisadores aos boletins de ocorrência. Não é novidade. O governo já adota essa política pelo menos desde 2002, nos tempos do primeiro governo Alckmin, quando ainda nem havia Lei de Acesso à Informação e censurar registros policiais ainda não era ilegal . Dá uma olhada nos trechos de uma reportagem que escrevi anos atrás para a Revista Adusp, em que comentava o jeitinho de Alckmin e do secretário da Segurança Pública da época, Saulo de Abreu Castro Filho, de lidar com jornalistas:
Para tentar conquistar a opinião pública, a gestão Alckmin-Saulo adotou o controle da informação como uma peça importante da política de segurança. Com a colaboração de Nizan Guanaes e de outros marqueteiros tucanos, o governo criou um plano de comunicação para reforçar a idéia de guerra contra o crime, no “velho estilo do bem contra o mal”. Para encarnar a contento o papel do bem, a Secretaria da Segurança Pública começou a barrar o acesso dos jornalistas a todas as fontes que não fossem a sua assessoria de imprensa. (…) O acesso da imprensa a boletins de ocorrência e outros documentos públicos nas delegacias foi proibido. Todas as informações sobre ocorrências policiais passaram a ser fornecidas exclusivamente pelo atendimento telefônico da assessoria de imprensa. Autoridades policiais foram proibidas de dar entrevistas sem o consentimento e a orientação da Secretaria da Segurança Pública.(…)
Não quer dizer que houvesse uma política clara de acesso a boletins de ocorrência antes de Alckmin. Sempre foi a zona da informalidade. Se o delegado fosse com a cara do jornalista, liberava acesso aos documentos. Se não, expulsava-o da delegacia e podia até prendê-lo se começasse a fazer perguntas demais.
A novidade do primeiro governo Alckmin, que continua valendo até hoje, foi uniformizar os procedimentos. Via de regra, o jornalista que vai a uma delegacia para ler um B.O. bate com a cara na porta e é informado pelas autoridades de que as informações devem ser obtidas, por telefone, via assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública. O jornalista telefona e, do outro lado da linha, um assessor passa uma versão bem resumida do documento, condensando quatro páginas de informações num blablablá de cinco minutos, que volta e meia omite eventuais merdas feitas pelas tais autoridades. Se o delegado fez a sacanagem de chamar um menino baleado nas costas de “roubador” num B.O. que não fala de roubo, por exemplo, isso não vai aparecer na versão resumida que o assessor passa por telefone.
Na prática, é uma censura gourmetizada.
Histórias que interessam
Numas de confundir a opinião pública, Alckmin saiu em defesa dos fracos e oprimidos e deu a entender que a censura ajuda a impedir que jornalistas malvados exponham na mídia o nome de vítimas indefesas. “Já é vítima e vai ter o nome publicizado?”, perguntou o governador. Pura tática de desinformação. Jornalistas trabalham com dados pessoais o tempo todo. Conseguimos nomes, endereços e telefones de um monte de gente nas mais diversas fontes, que incluem cartórios, folhas de processos judiciais, Junta Comercial e por aí afora. Não significa que vamos publicar esses dados. Para o bom jornalista, a informação pessoal é uma parte da manufatura da reportagem, que não vai fazer parte do produto final a não ser que seja necessária.
Ah, mas não tem jornalistas que não está nem aí e expõem informações que não deveriam? Vixe, é o que mais tem. Mas eles podem e devem ser responsabilizados quando cometerem abusos. O governo não pode proibir o acesso a informações públicas partindo do princípio de que os jornalistas são todos filhos da puta que irão usá-las para ferrar com a vida das pessoas.
Mas não se engane. Quando o governo Alckmin impede o acesso à íntegra de boletins de ocorrência, não faz isso pensando nos direitos das vítimas, como alega. Na real, quem gosta de transparência é vidraceiro. O poder prefere a opacidade. Vale para todos os que estão por cima da carne seca e do queijo brie, sejam empreiteiros, executivos da Samarco ou um governador conivente com a violência ilegal da polícia.
Quando um jornalista tem acesso a íntegra de um boletim de ocorrência, pode visitar local do crime, ouvir testemunhas, confrontar versões… Enfim, fazer o trabalho que a polícia ou os promotores deveriam ter feito. Nessa brincadeira, a gente pode acabar descobrindo que o fulano registrado como vítima pela polícia é na verdade o assassino. Pode descobrir que um tiroteio foi forjado para disfarçar uma execução. Pode, enfim, contar histórias que não interessam ao governo, apenas à sociedade. E governos não costumam gostar disso.