O que acontece com os PMs do Massacre do Carandiru após decisão do STF

Ministro Barroso reconheceu trânsito em julgado dos recursos sobre decisão do STJ do ano passado; TJ-SP agora deve analisar duração das penas. “Não acredito que serão presos”, diz sobrevivente

Passadas três décadas desde o dia em que a Polícia Militar paulista invadiu o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, os sobreviventes e familiares das 111 vítimas do Massacre do Carandiru poderão, enfim, começar a ver o desfecho do caso. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), publicada nesta quinta-feira (16/11), reconheceu o trânsito em julgado (ou seja, o fim do processo) de dois recursos sobre a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2021 que restabeleceu as condenações de 74 PMs envolvidos na chacina.

O ministro Luís Roberto Barroso negou um pedido feito pela defesa dos policiais para anular as sentenças e também negou o pedido do Ministério Público para o restabelecimento das penas por entender que já havia sido atendido pelo STJ. Com esta decisão, fica confirmada a condenação dos PMs que foi proferida em cinco júris populares em 2013 e 2014. Na época, as sentenças dos 74 policiais somavam mais de 600 anos de prisão por homicídios qualificados tentados e consumados.

Agora, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julga na próxima terça-feira (22/11) os desdobramentos da condenação, ou seja, decide o tempo de prisão e as apelações apresentadas pela defesa dos PMs para que haja redução das penas. Na prática, a decisão do STF permite que já sejam expedidos mandados de prisão. A advogada criminalista Débora Nachmanowicz explica, no entanto, que ainda há possibilidade dos réus recorrerem apresentando pedidos de habeas corpus e requerimentos de revisão criminal. 

“Apesar de haver alguma discussão quanto ao trânsito em julgado da pena, isso não afeta, a essa altura, o fato de que eles continuarão condenados à pena de prisão em regime fechado. Porém acredito que não devem ser expedidos mandados de prisão agora”, avalia. A advogada explica que o mandado de prisão só podere ser expedido por um juiz de primeiro grau e que o regime de prisão (ou seja, se é fechado, semi-aberto ou aberto) não foi objeto de recurso.

A 4ª Câmara Criminal deve avaliar, portanto, o pedido da defesa para que se reconheça a continuidade delitiva (quando é considerado uma série de crimes da mesma espécie são praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução), o que pode fazer com que a pena para cada réu chegue até 36 anos, sem que haja somatória das penas por cada uma das vitimas. A defesa ainda pede o afastamento de “qualificadora”, como são chamadas as condições em que um crime é cometido que podem acarretar o aumento da pena — no caso do Carandiru, a qualificadora é uso de “recurso que dificultou a defesa das vítimas”.

“Não vejo muita possibilidade de afastar a qualificadora, pois isso é tema de mérito alcançado pela soberania do Conselho de Sentença também, conforme a jurisprudência. Dessa forma, a Câmara deveria ficar adstrita ao julgamento do reconhecimento da continuidade delitiva”, pontua. 

Procurado pela reportagem, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) disse que não irá se manifestar sobre a decisão. Já o TJ informou que o despacho do ministro Barroso será juntado aos autos do processo e, por se tratar de uma questão jurisdicional, é preciso aguardar os desdobramentos do processo. 

Caso emblemático de impunidade

O Massacre do Carandiru completou 30 anos no mês passado e foi tema de um documentário lançado pela Ponte. Nele, as vozes sobreviventes do dia 2 de outubro de 1992 contam os horrores do que testemunharam e a longa luta por justiça que enfrentam para manter viva a memória do massacre. A decisão que tornou o desfecho do caso mais próximo trouxe esperança a quem espera há anos respostas das autoridades. 

“Para uma pessoa comum nunca demoraria 30 anos para se julgar um caso. Eles vivem soltos, agora chegou a hora de se fazer justiça prendendo eles também”, comenta o rapper Kric Cruz, 65, que estava preso na Casa de Detenção de São Paulo no dia do massacre. “Acho que vai trazer um pouco de paz por vermos que eles também podem pagar pelo que fizeram”, completa.

O professor e ativista Maurício Monteiro, 53, sobrevivente da chacina, considera a decisão do Supremo “demorada, mas justa”. “Mesmo assim eu não acredito que eles ainda serão presos, por conta dessa anistia que já estava em andamento”, afirma. Maurício cita o projeto de anistia aos policiais militares processados pelo episódio que tramita na Câmara dos Deputados.

“Agora vai ficar uma jurisprudência para eles pensarem no excesso de truculência. Mas, acredito que eles vão pagar por isso quando eles forem para o mesmo lugar que o [então] governador Fleury [morto nesta terça (15/11)]. Quando eles se trombarem com todos lá, aí sim eu acredito que eles vão estar pagando o que eles devem para a justiça mesmo”, diz.

Débora Maria da Silva, fundadora do grupo independente Mães de Maio, se mostra cética sobre a possibilidade de os policiais serem responsabilizados. “Eles só são punidos no segundo tempo”, criticou. Para ela, a demora da Justiça já provocou danos enormes. “A impunidade do massacre do Carandiru foi tão perversa que estimulou uma série de outros massacres nos anos seguintes nas periferias e favelas, que são o tronco das novas senzalas. E o Estado é o capitão do mato.”

Apenas a punição de um massacre prisional, contudo, é pouco diante do que as mães de vítimas do Estado pedem, que é o fim das prisões. “Queremos desmilitarizar nossa vida, acabar com esse sistema que mata e pune nossos corpos”, afirma.

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Para Railda Alves, coordenadora institucional da Associação Amparar, que reúne familiares de presos e luta pelo desencarceramento, a punição dos policiais é necessária. “Eles têm que ser responsabilizados pelas vidas que tiraram. Por que só os nossos vão para a cadeia? Só lamento que o mandante desses crimes, o Fleury, morreu sem responder por nada”, aponta.

Outro lado 

A Ponte entrou em contato com os advogados Ieda Ribeiro de Souza e Celso Machado Vendramini, que representam os PMs envolvidos na ação, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.

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