Termo é utilizado há décadas para definir homicídios em série num curto espaço de tempo. Ativistas e poder público disputam se ações policiais podem ser chamadas de “chacinas”; porém, três em cada quatro chacinas no RJ são causadas pela polícia
Entre criadores de porcos, o termo chacina significa o esquartejamento do animal em seu processo de abate. Euclides da Cunha, no clássico da literatura brasileira Os Sertões, definiu de forma semelhante a ação das forças de segurança do império contra a população pobre de Canudos, no interior da Bahia. “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”, se referindo ao abate de bois para se fazer charque, um tipo de carne seca.
No final do ano de 1897 o exército brasileiro mandou suas tropas para o Nordeste a fim de controlar a comunidade comandada por Antônio Conselheiro, uma espécie de líder religioso e político local, que propagava uma salvação milagrosa para aquela população que vivia na miséria por conta da seca. A burguesia local, com receio do crescimento rápido daquela população, formada em sua maioria por ex-escravos e sertanejos flagelados, exigiu providências do governo federal. A população de Canudos, estimada em 25 mil pessoas, foi dizimada pelo exército. Mulheres, crianças e idosos não foram poupados. Todas as casas foram queimadas.
Canudos é um marco quando o assunto é a violência de Estado e o embrião do que se conhece por favela no Brasil. O termo favela vem de uma vegetação típica do Sertão baiano e que dava nome a um dos morros que ficavam em volta da comunidade. Era nesse local que os soldados observavam os moradores. Ao fim da guerra, os soldados sobreviventes foram levados ao Rio de Janeiro para morar no Morro da Providência e, abandonados pelo Estado, passaram a tratar o lugar que passaram a viver como favela.
Se o Massacre de Canudos ocorresse nos dias atuais, talvez não ganhasse esse nome. Por se tratar de uma ação envolvendo agentes de segurança do Estado é provável que fosse chamada de operação policial, como vêm sendo tratadas pelo poder público e por diferentes veículos de imprensa as chacinas provocadas por policiais.
Umas das definições dadas pelo dicionário Houaiss para o termo chacina é “assassínio em massa, com crueldade; matança, mortandade, morticínio”. E o exemplo de aplicação da palavra dado pelo tomo, não à toa, usa agentes de segurança: “Policiais e jagunços fizeram a chacina dos inocentes”.
Há algum tempo se convencionou entre jornalistas e pessoas que trabalham com segurança pública usar o termo chacina para denominar eventos violentos onde, pelo menos, mais de três pessoas são mortas numa mesma ação. “A gente tem uma disputa de narrativa entre os órgãos de segurança pública e os familiares das vítimas. Um lado utiliza o termo chacina, enquanto o outro se limita a dizer que foi uma ação policial”, relata a professora e pesquisadora dos grupos de estudos Problemática Urbana e Ambiental, Camila Vedovello.
Policiais são os maiores responsáveis pelas chacinas
Nos meses de julho e agosto de 1993, o Rio de Janeiro foi palco de duas das mais emblemáticas chacinas do país. A primeira foi a da Candelária, onde homens em dois carros dispararam contra dezenas de pessoas, a maioria adolescentes, que dormiam na calçada da igreja que fica no centro da capital fluminense. Oito vítimas, com idades entre 11 e 19 anos, morreram com os tiros. Dos sete suspeitos indiciados pelo crime, cinco chegaram a ser condenados, mas recorreram da pena. Atualmente ninguém que participou da chacina da Candelária está preso.
Trinta seis dias depois desse episódio, homens encapuzados adentraram a favela de Vigário Geral arrombando casas e mataram 21 pessoas. Dos 51 um acusados pela chacina, apenas um cumpria pena pelo crime. Os ex-PM Sirley Alves Teixeira foi morto em março deste ano em frente a sua casa enquanto cumpria prisão domiciliar por conta da pandemia de Covid-19.
Segundo a diretora da plataforma Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto, o estado do Rio de Janeiro não usa o termo chacina para se referir a episódios como ocorrido na na favela do Salgueiro, no município de São Gonçalo, onde oito pessoas foram assassinadas e tiveram seus corpos jogados em uma área de mague depois de uma ação violenta da Polícia Militar do Estado.
Os números do Fogo Cruzado mostram que, a cada quatro chacinas ocorridas no Rio de Janeiro em 2021, três foram cometidas pela polícia. “Aqui no Rio a maior parte de chacinas que a gente registra são de ações e operações policiais. Esse ano 76% das chacinas tiveram envolvimento da polícia. Essa é uma tendência que vem crescendo. Em 2017, esse número era de 60% por cento”, explica Maria Isabel Couto.
Dentre as chacinas contabilizadas pela plataforma em 2021 está a do Jacarezinho, considerada, até o momento, a mais letal da história do estado do Rio de Janeiro. Em uma ação da Polícia Civil, 29 pessoas da comunidade foram mortas. De acordo com a corporação, a Operação Exceptis tinha o objetivo de cumprir 21 mandados de prisão de traficantes que estariam aliciando crianças e adolescentes na comunidade. Desses mandados, três pessoas foram presas, três foram mortas, mas não explicou qual a relação das outras 26 que foram mortas. Simplesmente disseram que eram “criminosos” e que a ação foi planejada e não houve execução.
“Esse modelo precisa mudar. São operações de alta letalidade onde frequentemente são múltiplas as vítimas. A prioridade e o elemento central dessas operações não é a preservação da vida”, defende Couto.
Em 2006 uma onda de crimes ocorridos no estado de São Paulo que ficaram conhecidos como Crimes de Maio. Em resposta a ataques atribuídos à facção Primeiro Comando da Capital (PCC) a quartéis e bases da Polícia Militar, o que se viu foi uma série de chacinas por todo o estado, resultando em 505 mortes em apenas duas semanas. O número é maior do que todas as mortes causadas pelo estado brasileiro durante 21 anos de ditadura militar.
Ainda em 2021, um policial militar e um guarda municipal foram absolvidos da acusação de terem participado de uma das chacinas mais bárbaras do estado de São Paulo. Em agosto de 2015, 23 pessoas morreram no intervalo de duas horas nas cidades de Itapevi, Barueri, Carapicuíba e Osasco. O Ministério Público de São Paulo alegou que o crime foi motivado em represália ao assassinato do policial militar Admilson Pereira de Oliveira e do guarda-civil Jeferson Luiz Rodrigues da Silva, ocorridos dias antes da chacina.
Crimes de vingança
Não há um levantamento oficial sobre as motivações que levam a uma chacina, mas não são poucos os relatos de mortes de pessoas num mesmo grupo ou na mesma região em sequência ocorridos logo após o assassinato ou crime contra algum agente de segurança do estado. Assim foi na chacina de Osasco, em 2015, e como aconteceu em 2021 no Jacarezinho e Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro.
“A gente percebe que em alguns casos, como aparentam ser as do Jacarezinho e do Salgueiro, que muitas vezes a morte de um policial desencadeia operações policiais mais enérgicas e mais letais”, comenta Couto.
A vingança policial que desencadeia uma série de mortes de civis nem sempre tem como motivação a morte de um companheiro de farda. Já houve casos em que crimes não letais contra familiares de agentes de segurança serviram como justificativa para uma chacina.
“Em um levantamento que eu fiz com base em documentos do Núcleo de Estudos da Violência, aparece chacinas que ocorreram porque um grupo de policiais desconfiou que em um determinado local havia alguém que tinha roubado a bolsa da esposa de um deles. A vingança nem sempre é por algo institucional, mas a vingança pessoal aparece nesses casos”, informa Camila Vedovello.