“O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor.”

     Moradores da ocupação São João não esquecem as horas de pânico vividas na reintegração de posse e afirmam que é a compaixão entre eles que os mantém vivos

    Fotos: Rodrigo Zaim/R.U.A Fotocoletivo
    Edição de vídeo: Rafael Bonifácio

    Na entrada da ocupação de um prédio da Cruz Vermelha na rua Líbero Badaró, número 595, no centro de São Paulo, famílias se acumulam em um corredor estreito. São crianças, jovens, mulheres, grávidas, homens e idosos; brasileiros, peruanos, bolivianos e africanos. Esperam a chegada e a distribuição de doações. Faz frio. Não há cobertores suficientes. Alguns perderam tudo na mudança da ocupação São João, localizada quase na esquina da Avenida Ipiranga, a cerca de 700 metros do novo prédio. Entre os antigos e os novos moradores, aparece o rapper Emicida, que acompanha de perto o movimento por moradia. Um dos residentes prepara as refeições do primeiro dia, compradas com o recurso doado pela ONG “Apoio”. Outros se dividem em escala para cuidar da portaria e todos os homens se reúnem em mutirão para subir os eletrodomésticos dos novos residentes.

    A ocupação da Líbero Badaró recebeu cerca de 180 pessoas expulsas da ocupação São João. O espaço, onde antes viviam 35 famílias, ganhou paredes de lençóis para acomodar os novos residentes. Foram recebidos com a mesma camaradagem e apoio demonstrados durante a reintegração de posse, que aconteceu nesta terça-feira, 16 de setembro.

    A remoção dos pertences das famílias que viviam na São João só terminou na madrugada de quarta-feira, 17 de setembro. Com número insuficiente de caminhões e de carregadores, a empresa responsável pela mudança levou quase 12 horas para tirar toda a mobília das 200 famílias que viviam no hotel Aquarius, desocupado havia 10 anos. “Era para demorar até mais. Mas como não havia famílias acompanhando a mudança, desceram tudo de qualquer jeito”, afirma Ivaneti Araújo, uma das coordenadoras do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro). Moradores denunciam que os móveis levados para o depósito contratado estão quebrados. Foram necessárias 213 viagens (cada viagem corresponde a 1 caminhão cheio) para dar conta de transportar todos os pertences.

    As cenas violentas da invasão da polícia na manhã de terça, 16/09, estão gravadas na memória dos sem-teto que resistiram a entregar o espaço em que viviam. Alguns levaram anos para conseguir comprar um fogão, perdido durante a mudança bruta. Basta começar uma conversa qualquer para a garganta apertar e os olhos marejarem.

    O simples fato de terem saído com relativa saúde leva Orleane a uma comemoração inesperada: “Somos vitoriosos”.

    “Foi um desespero total. Eu pensei em me jogar da janela”, conta a auxiliar de despesas Shirley Santana, de 35 anos. “Eu não conseguia respirar e aquela coisa queimando no rosto. Me perdi na fumaça e fiquei sozinha. Um morador voltou para me buscar. Se não fosse ele, acho que eu estaria morta uma hora dessas”, lembra, com o queixo e as mãos trêmulas. “Quando eu consegui sair do portão para fora, desmaiei no meio da rua. É a última coisa que eu lembro. Acordei no hospital.”

    Shirley dividia um quarto na ocupação São João com a companheira, Orleane Matias Freitas, 33 anos, que cuida de crianças da ocupação. As duas tinham paredes e banheiro no cômodo de 15 metros quadrados dos quartos do antigo hotel. “Isso tudo foi muito humilhante”, relata Orleane enquanto a menina Raíssa, de 3 anos, beija seu rosto para cessar o choro. Mas o simples fato de terem saído com relativa saúde leva Orleane a uma comemoração inesperada: “Somos vitoriosos”.

    Na mesma ambulância que levou Shirley ao hospital, estava a adolescente Jaquelaine. Deficiente, a menina perdeu a cadeira de rodas, destruída por um bombeiro durante a retirada dos moradores. Agora, a menina, seus dois irmãos e a mãe mudaram-se para a Líbero Badaró.

    “Não é humano jogar bomba de gás onde tem crianças”, recorda Veronice Ribeiro Simões

    A truculência da ação da PM é relembrada o tempo todo. “Não é humano jogar bomba de gás onde tem crianças”, recorda Veronice Ribeiro Simões, 35 anos, que teve que pedir abrigo a uma amiga para alojar o filho de 14 anos, de quem nunca se afastou. “Vi uma mãe colocando o filho bebê para fora da janela para ele respirar. Quando conseguimos sair, achando que a gente estava livre, foi que eles começaram a bater na gente. Me chamaram de vaca, de vagabunda. Me bateram nos braços com cacetete”, diz Veronice. “Passei a noite cuspindo sangue.” É importante pontuar também que a maioria das pessoas que viviam na ocupação São João é de trabalhadores, ao contrário do que argumentam muitos. Todas as pessoas que a Ponte entrevistou trabalham. Porém, o maior salário é de uma gari, que ganha R$840 e sustenta cinco filhos.

    Solidariedade

    [Best_Wordpress_Gallery id=”6″ gal_title=”Ocupação Líbero Badaró | Foto: Rodrigo Zaim/R.U.A. fotocoletivo”]
    Os moradores do prédio de 6 andares receberam, na quarta-feira, 17 de setembro, a visita do rapper Emicida. Ele acompanha a situação do movimento por moradia e esteve na ocupação São João na semana anterior à execução da reintegração de posse. Foi saudado com a mesma simplicidade e abertura com que foram acolhidos os novos moradores, mesmo com a reestruturação do espaço, como no cômodo em que agora vive Arno Rodrigues da Silva, 21 anos, que faz bicos como carregador. A fraternidade entre os integrantes das ocupações é o que dá força para seguir na luta.

    “Só quem viveu para saber. Julgar é fácil, qualquer um julga.”

    “Na hora senti aquela queimação na garganta, os olhos começaram a arder e pensei ‘Deus, não deixa eu desmaiar aqui, não. Tem muita mulher e criança para tirar daqui ainda”, lembra o educador Oncy Machado de Araújo, o “Tio”, de 35 anos. O pai de Bruno, 10, e Jéssica, 9, afirma que foi a solidariedade entre todos os ocupantes que o fez ficar firme durante a operação. “Na hora a gente não pensa nem na gente, só pensa no próximo mesmo. Essa é a realidade. Só quem viveu para saber. Julgar é fácil, qualquer um julga. A realidade é outra. Eu nunca tinha vivenciado isso na minha vida. Você esquece de você na hora”, diz. E completa, emocionado: “A gente é uma família aqui dentro. O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor.”

    Para doações, entre em contato com a Frente de Luta por Moradia.

    Leia a cobertura completa da reintegração de posse e veja na Ponte, com exclusividade, o que aconteceu dentro do prédio

     

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    4 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários
    marcio ramos
    marcio ramos
    9 anos atrás

    Boa!!!

    Aguardamos entrevista sobre as reintegrações com o bacaninha do prefeito e do desajuizado do juiz que determinou esta reintegração e do comando dos pau mandado (PM). Só pra não ficar na mesmice.

    trackback

    […] Os fatos e as imagens causam indignação. E, embora a gente possa reconhecer que são fatos cotidianos em muitas periferias urbanas (onde nem sempre logram se tornar imagens, nesse sentido da visibilidade midiática e política), talvez também possamos pensar que há novidade em que tenham sido esses os cenários onde as cenas se desenrolaram: que isso tudo seja indicador da emergência de certa nova subjetividade política que veio se constituindo desde o processo de redemocratização – uma que reclama, sim, não apenas contra o temporal, mas contra quem deveria atuar no sentido de garantir as condições para que o temporal não fosse tão devastador. Esses homens e mulheres que, arriscando a vida, empreendem suas energias para abrir espaço a novos possíveis. […]

    trackback

    […] “O que vivemos lá dentro não foi guerra. Foi amor.” […]

    Felipe
    Felipe
    9 anos atrás
    Responder a  marcio ramos

    E o “bacaninha” do governador?

    mais lidas