O racismo que mata

    O homicĂ­dio de um jovem negro mobilizou os Estados Unidos.
    No Brasil, isso acontece todos os dias de maneira silenciosa e covarde: negros morrem por serem negros
    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo
    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

    A morte do jovem negro americano Michael Brown, hå duas semanas, assassinado por um policial branco com 6 tiros na pequena cidade de Ferguson, Missouri, causou protestos em 37 cidades dos Estados Unidos e teve repercussão mundial. As manifestaçÔes denunciam outras mortes semelhantes e demonstram que o racismo é capaz de matar.

    Casos como o de Brown acontecem todos os dias no Brasil silenciosamente. Para que a situação não fique invisível como costuma ser, organizaçÔes que compÔem o movimento negro programaram para o dia 22/08, em todo o país, a II Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro.

    A falta de visibilidade dos casos de homicĂ­dio de negros evidencia o paĂ­s racista em que vivemos, onde a morte de um jovem negro e pobre vale menos do que o assassinato de um menino branco. “HĂĄ uma mĂ­tica justificadora que se criou de que no Brasil existe democracia racial, reforçada pela teoria do brasileiro gentil”, afirma o sociĂłlogo Julio Jacobo Waiselfisz, responsĂĄvel pelo Mapa da ViolĂȘncia 2014 e coordenador da ĂĄrea de Estudos da ViolĂȘncia da Faculdade Latino-Americana de CiĂȘncias Sociais (FLACSO). “Essa mitologia estĂĄ encobrindo uma realidade segregacionista e discriminadora. NĂŁo Ă© por casualidade que o Brasil foi o Ășltimo paĂ­s a abolir a escravatura”, completa.

    De acordo com o estudo, em 2012 aconteceram mais de 56 mil homicĂ­dios – 41.127 das vĂ­timas eram negras (de acordo com a classificação do IBGE, “negros” Ă© a soma dos pretos e pardos). Esse total representa 154 vĂ­timas diĂĄrias, nĂșmero que equivale 1,4 massacres do Carandiru a cada dia daquele ano e que atinge nĂ­veis de epidemia. A principal vĂ­tima de homicĂ­dio no Brasil Ă© o jovem negro e esse quadro vem se acentuando. Entre 2002 e 2012 as taxas de homicĂ­dios de brancos diminuĂ­ram 24%, enquanto que as de homicĂ­dios de negros aumentaram 7,8%. Com isso, a taxa de vitimização negra (quantos negros a mais morrem vĂ­timas de homicĂ­dio em proporção Ă s mortes de brancos na mesma condição) praticamente duplica, passando de 73 para 146%.

    Negros morrem por serem negros

    Trata-se de uma situação de extermĂ­nio dessa parcela da população causada por dois tipos de racismo arraigados na nossa cultura: institucional e estrutural. O racismo institucional se expressa de maneira a culpar a prĂłpria vĂ­tima da violĂȘncia, como por exemplo nos inĂșmeros casos em que os autos de resistĂȘncia (ou resistĂȘncia seguida de morte, em confronto, em legĂ­tima defesa) sĂŁo usados para justificar a violĂȘncia letal causada pela polĂ­cia. “É uma culpabilização institucional que se agrava quando passa Ă  ação. É aĂ­ que aparecem os grupos de vingadores dentro dos aparelhos de segurança”, explica Jacobo. “É uma polĂ­tica de segregação que nĂŁo Ă© legalmente reconhecida mas serve Ă  seletividade de mortalidade por questĂ”es de cor.” Negros morrem por serem negros.

    “O homicĂ­dio de jovens negros Ă© um fenĂŽmeno social perturbador, que bloqueia as veias do futuro.”

    O racismo estrutural Ă© expresso na opiniĂŁo pĂșblica e por isso Ă© alimentado em grande parte pela mĂ­dia tradicional. Por exemplo, a morte intencional de um empresĂĄrio em Ipanema, bairro nobre do Rio de Janeiro, Ă© amplamente noticiada enquanto que o assassinato do “JosĂ© da Silva” na periferia nĂŁo merece destaque dos veĂ­culos de grande imprensa, supostamente porque esse nĂŁo Ă© um assunto que interesse a quem compra o jornal ou revista em questĂŁo. Ou seja, Ă© um universo definido pelo poder aquisitivo, exacerbado em Ă©pocas de eleição. “Responder a esse tipo de pressĂŁo da opiniĂŁo pĂșblica Ă© botar mais policiais nas ruas das ĂĄreas abastadas, regiĂ”es com predomĂ­nio da população branca”, diz Jacobo. Segundo o pesquisador, esse fenĂŽmeno Ă© tambĂ©m o responsĂĄvel pela diminuição dos homicĂ­dios de brancos, jĂĄ que nas ĂĄreas em que predomina essa população hĂĄ uma dupla segurança, pĂșblica e privada, como guaritas, sistema de cĂąmeras, seguranças particulares, cercas elĂ©tricas.

    Mas a mancha triste que envolve a violĂȘncia do racismo que mata nĂŁo acaba aĂ­, no fato. SĂŁo as mulheres negras que dĂŁo conta do dia a dia que segue. “Isso estabeleceu uma inversĂŁo na roda da vida, pois as mais velhas tĂȘm ido enterrar milhares de mais novos”, explica Vilma Reis, sociĂłloga e militante do Movimento de Mulheres Negras do Brasil. “É um fenĂŽmeno social perturbador, que bloqueia as veias do futuro.”

    PolĂ­ticas pĂșblicas

    Quando se chega a patamares de 56 mil homicĂ­dios em um ano – nĂșmero prĂłximo ao que a guerra na SĂ­ria matou anualmente – uma pergunta tem que se impor: por que estamos demorando tanto para criar soluçÔes para as mortes violentas? A resposta diz respeito ao perfil das principais vĂ­timas de homicĂ­dios no Brasil. Jovens, a maioria negros, quase todos moradores das favelas e bairros pobres. “Se fosse outro o perfil das vĂ­timas, se fossem pessoas de classe mĂ©dia, vivendo nas ĂĄreas abastadas das cidades, provavelmente jĂĄ terĂ­amos nos indignado e exigido uma resposta das autoridades”, afirma Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. “Se fossem jovens brancos, oriundos das elites, os governos jĂĄ teriam criado programas, projetos e campanhas.”

    “Na medida em que o perfil das vĂ­timas de homicĂ­dios fica mais negro, mais pobre e mais nordestino, a tendĂȘncia Ă© que a indiferença e a naturalização aumentem.”

    Para Silvia, o problema estĂĄ na indiferença com que essas mortes sĂŁo tratadas. “Na medida em que o perfil das vĂ­timas de homicĂ­dios fica mais negro, mais pobre e mais nordestino, a tendĂȘncia Ă© que a indiferença e a naturalização aumentem”, alerta. A pesquisadora acredita que Ă© fundamental desenvolver polĂ­ticas voltadas para combater esse tipo de violĂȘncia, para alĂ©m do interesse das camadas mais ricas da população. Em tempos de eleiçÔes presidenciais e estaduais, o tema deve estar pautado nos programas de governo. “É algo que desafia a compreensĂŁo que no paĂ­s com o maior nĂșmero absoluto de mortes por agressĂŁo no mundo, o silĂȘncio de seus dirigentes mĂĄximos sobre o tema seja a resposta”, critica.

    Uma das polĂ­ticas pĂșblicas especialmente voltadas para enfrentar o genocĂ­dio de jovens negros Ă© o Plano Juventude Viva, uma parceria entre a Secretaria Nacional de Juventude, integrante da Secretaria Geral da PresidĂȘncia da RepĂșblica, e a Secretaria de PolĂ­ticas de Igualdade Racial (SEPPIR). ConstruĂ­do de maneira participativa, com consultas nos estados onde foi implementado, as açÔes do Juventude Viva tĂȘm como objetivo “fortalecer a trajetĂłria dos jovens e a transformação dos territĂłrios, promover os valores da igualdade e da nĂŁo discriminação, o enfrentamento ao racismo e ao preconceito geracional, que contribuem com os altos Ă­ndices de mortalidade da juventude negra brasileira”. Para o coordenador nacional do Plano Juventude Viva, Felipe Freitas, a principal virtude do plano Ă© colocar na agenda do governo brasileiro e do paĂ­s, a violĂȘncia contra a juventude negra. “Os dois vetores mais importantes do Juventude Viva sĂŁo promover direitos e enfrentar o racismo”, explica Felipe.

    É a primeira vez que existe uma polĂ­tica pĂșblica especialmente voltada para a questĂŁo da violĂȘncia contra jovens negros

    Apesar de insuficiente, Ă© a primeira vez que existe uma polĂ­tica pĂșblica especialmente voltada para a questĂŁo da violĂȘncia contra jovens negros. “Esse Ă© um caminho que começa a gerar mudanças”, diz o sociĂłlogo Julio Jacobo. Ele chama a atenção para a necessidade de se reforçar essas polĂ­ticas. “Muito mais que o combate Ă s drogas e Ă  criminalidade, muito mais do que a violĂȘncia em geral, nĂłs temos que superar a violĂȘncia em particular, a cultura da violĂȘncia que reina no Brasil”, afirma. Por isso, Ă© fundamental criar mecanismos de enfrentamento ao racismo, que Ă© persistente e profundo. E que dĂĄ a licença para matar.

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    RelatĂłrio mostra que entre 2010 e 2011, 61% das vĂ­timas de mortes cometidas por policiais eram negras


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    […] Esse tema Ă© destaque nos EUA devido ao assassinato do jovem negro americano Michael Brown por um policial branco na cidade de Fergusson, Missouri. LĂĄ 37 houve protestos em 37 cidades e as manifestaçÔes sĂŁo para denunciar outras mortes semelhantes a de Michael. Aqui no Brasil as mortes passam um pouco mais despercebidas, mas movimentos como a Marcha Nacional Contra o GenocĂ­dio do Povo Negro tentam mudar esse quadro. Para ler a matĂ©ria, clique aqui! […]

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    […] de classe, tendo como a resultante mais cruel a morte negra, materializado nos nĂșmeros do Mapa da ViolĂȘncia ao longo da sua sĂ©rie. Dado que as mulheres negras, organizadas em diferentes frentes, fĂłruns, […]

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    […] Fonte: Ponte […]

    marcio ramos
    marcio ramos
    10 anos atrĂĄs

    Triste situação. É impressionante tanta crueldade e injustiça. Legal a Ponte.

    Marina Rea
    Marina Rea
    10 anos atrĂĄs

    Muito bom este jornal (?) Ponte.

    Vou ler sempre.

    Sobre esta reportagem, voces poderiam entrar em contato com O pesquisdor negro Luis Eduardo Batista, sociologo, do Instituto de Saude, SP.
    Ele fez um trabalho fantastico analisndo as causs de morte de pretos versus brancos no Estado de Sao Paulo, que foi seu doutorado, na UNESP, tive chance de ser da banca. Foi emocionante. Aprendi muito. Depois disso, ele foi responsavel pela Politica de Saude da Populacao negra em SPaulo, por muitos anos.
    Acho que voce o encontra como [email protected]
    Pode falar em meu nome.

    10 anos atrĂĄs
    Responder a  Marina Rea

    Marina, muito obrigada, entrarei em contato, sim. O racismo estĂĄ mais vivo do que nunca, afinal.
    Obrigada por nos acompanhar.
    Abraços
    Carolina

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    […] eleiçÔes presidenciais, uma das mais urgentes Ă© o enfrentamento ao racismo em sua forma fĂ­sica: o racismo que mata. Dilma assumiu, em 20 de outubro, durante comĂ­cio em Itaquera, zona leste da capital paulista, que […]

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    […] A violĂȘncia contra os jovens Ă© um sĂ©rio problema no Brasil. Conforme mostra o Mapa da ViolĂȘncia, o paĂ­s fica em quarto lugar entre os mais violentos contra crianças e adolescentes (de 0 a 19 an0s). Entre 1981 e 2010, morreram assassinados 176 mil crianças e adolescentes. A taxa de jovens de 17 anos assassinados em 2010, foi de 52 por 100 mil habitantes, mais do que o dobro da mĂ©dia nacional. […]

    Maju
    Maju
    9 anos atrĂĄs

    Todos esses dados sĂŁo referentes aos mortos pela PM brasileira? Ou todos os homicĂ­dios praticados?

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