Documentos obtidos pela Ponte mostram que violações dos direitos humanos no sistema prisional do estado de São Paulo sempre aconteceram
As denúncias de torturas de presos, celas lotadas, alimentação estragada, falta de atendimento médico, isolamento em masmorras, privação de banho de sol e censura de correspondências e livros já eram práticas recorrentes nos anos 1970.
Em março de 1972, em plena Ditadura Militar, os presos políticos do Presídio Tiradentes, Casa de Detenção e Penitenciária de Presidente Venceslau reclamavam das péssimas condições do cárcere.
Em carta enviada aos juízes da 1ª e 2ª Auditorias de Guerra da 2ª Região Militar, a qual a Ponte teve acesso, os presos se queixavam da superlotação nas celas no Presídio Tiradentes. Os documentos estão neste dossiê de 41 páginas.
Na correspondência de seis páginas, datada de 28 de março de 1972, os detentos informavam que as celas com capacidade para quatro presos abrigavam até 14 homens. Eles também reclamavam da presença de ratos nos xadrezes, da falta de água e das péssimas condições de higiene e limpeza nas dependências do presídio. E se queixavam ainda do pouco tempo de banho de sol, de apenas duas horas e dentro de uma “gaiola” em um canto do pátio.
Em outra carta, assinada em 15 de junho de 1972, uma presa declara que ela e outros detentos iniciaram greve de fome por causa da transferência de alguns presos políticos para a Penitenciária 1 de Presidente Venceslau.
A correspondência foi escrita pela então presa política Aurea Moretti, na época estudante de Enfermagem na USP de Ribeirão Preto. Detida em 1969, ela foi acusada de integrar as Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Aurea ficou presa no Presídio Tiradentes, no mesmo pavilhão onde estava a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Ambas foram espancadas, torturadas com choques elétricos e, constantemente, sofriam ameaças de estupro.
Na lista dos presos transferidos na época para a Penitenciária de Presidente Venceslau constavam os nomes de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, Ives do Amaral Lesbaupin, o Frei Ivo, e Fernando de Brito, o Frei Fernando.
Todos eram frades dominicanos e, assim como Aurea e Dilma, foram presos por agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão de repressão durante a Ditadura Militar. Os frades foram acusados de integrar a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização revolucionária de resistência à Ditadura Militar. Os religiosos também foram espancados e torturados com choques elétricos, pendurados em “pau de arara”, nos porões do regime militar em São Paulo.
Antes da remoção para a Penitenciária de Presidente Venceslau, Frei Betto e outros presos políticos tiveram correspondências e livros censurados e apreendidos pela direção do Presídio Tiradentes. A Ponte teve acesso a documentos do DOPS e da Secretaria Estadual da Segurança Pública, que comprovam a violação de correspondências e a censura de livros destinados aos presos políticos.
Alguns desses documentos trazem informações sobre cartas que eram enviadas pela Anistia Internacional ao Presídio Tiradentes. Nas correspondências, a Anistia Internacional expressava indignação com as torturas impostas a Frei Betto e a outros presos e também manifestava preocupação com o estado de saúde deles.
Livros enviados aos presos também eram apreendidos, conforme consta em ofícios da Secretaria Estadual da Segurança Pública, obtidos pela Ponte.
Nos documentos, as autoridades informam que os livros foram apreendidos nos xadrezes dos presos “subversivos”. Entre as publicações, “Poemas do Cárcere”, “Conflito industrial e socialismo no Brasil”, “História do Socialismo e das lutas sociais” e “O último trem de Berlim”. Assim que chegaram na Penitenciária de Presidente Venceslau – hoje conhecida como P1 -, em junho de 1972, os frades dominicanos tiveram de conviver com 400 presos comuns.
Naquela época não eram raros na unidade os casos de espancamentos e torturas de presos, privação do banho de sol e isolamentos de detentos em celas na masmorra do presídio. Aos 74 anos, Frei Betto se lembra muito bem das cenas de violações aos direitos humanos presenciadas na Penitenciária de Presidente Venceslau: “Não dá para esquecer. Foi um período muito complicado. Os presos eram colocados nus em celas-fortes. Os agentes jogavam água gelada neles. E ainda espancavam com chicotes feitos com fios de eletricidade”, contou.
Segundo Frei Betto, poucos dias depois de ter chegado ao presídio de Venceslau, ele e os outros frades, presenciaram maus-tratos aos presos comuns e denunciaram tudo ao Ministério Público: “Depois que denunciamos ao MP as violações aos direitos humanos, os presos comuns passaram a nos tratar como heróis”.
Frei Betto diz ainda que a direção do presídio tentou jogar os presos comuns contra os presos políticos, mas não teve êxito: “Eles passaram a nos adorar. Após as denúncias ao MP, as torturas não acabaram, mas diminuíram. Nós éramos considerados uma espécie de salvaguarda dos presos comuns”.
Autor de ao menos 60 livros, Frei Betto narra as torturas as quais foi submetido nas obras “Diário de Fernando” e “Cartas da prisão”. No início dos anos 1970, a vontade de muitos presos da Penitenciária de Presidente Venceslau era a de fugir a qualquer custo por causa dos maus-tratos.
Em abril de 1973, três presos dominaram Maria Tereza Almeida Ferreira, mulher de Zwinglio Ferreira, diretor-geral da unidade, e a usaram como escudo humano para escapar. Maria Tereza foi feita refém durante uma sessão de cinema no presídio. Os detentos exigiram uma caminhonete com o tanque cheio de combustível. As autoridades atenderam às exigências. Maria Tereza foi levada pelos fugitivos. Eles seguiram até uma estrada no Mato Grosso do Sul e se esconderam num matagal. Todos foram recapturados. A refém saiu ilesa.
Violações continuam
Passados 45 anos da prisão de Frei Betto e dos outros frades dominicanos na Penitenciária de Presidente Venceslau, a unidade ainda carrega a triste fama de violação aos direitos humanos. O presídio, que leva o nome de Zwinglio Ferreira, é considerado pelo próprio governo do estado de São Paulo como uma unidade de castigo e abriga detentos de facções rivais em pavilhões distintos.
Por causa dessa rivalidade, muitos detentos, com medo de morrer, não sabem há meses o que é sair da cela para tomar um banho de sol. O maior medo dos presos da P1 de Venceslau é de uma rebelião. O resultado pode ser outra carnificina, como a registrada em junho de 2005.
Na ocasião, cinco presidiários foram degolados. As cabeças das vítimas foram fincadas em bambus pelos amotinados. O caso teve repercussão mundial. Atualmente, o município de Presidente Venceslau é sede de duas penitenciárias. Elas são conhecidas como P1 e P2.
Assim como ocorria nos anos 1970 no Presídio Tiradentes e na Casa de Detenção, as violações a correspondências são práticas recorrentes na P1 e P2 de Venceslau, esta última destinada apenas a presos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Nessas duas unidades, tanto as correspondências quanto os livros destinados aos detentos também passam por censura.
Na P2, as visitas são revistadas na entrada e na saída e ficam trancadas nas celas com os presidiários, inclusive as crianças e os idosos. Também na P2 de Venceslau, um preso não pôde receber o livro “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski.
Na mesma unidade, outro preso não teve permissão para receber os livros “Cobras e Lagartos” e “Casadas com o crime” – escritos por Josmar Jozino -, que narram histórias sobre o PCC. A direção do presídio alegou que a entrada dos livros citados acima na unidade não é permitida porque fazem apologia ao crime.
Para a Associação de Amigos e Familiares de Presos de São Paulo (Amparar), que acompanha as denúncias de violações nas diversas unidades prisionais do estado, o que se pode perceber é que não houve muita mudança no sistema prisional nos últimos 45 anos. Segundo a Amparar, os presos vivem em celas superlotadas nos Centros de Detenções Provisórias, onde não existem médicos, dentistas e remédios.
Presos primários ficam misturados a reincidentes. Detentos provisórios dividem celas com condenados. Visitas são confinadas com presidiários. A Amparar também diz que recebe inúmeras denúncias de torturas e espancamentos de presos. De acordo com a entidade, a maioria das queixas de torturas e espancamentos é contra os homens do GIR (Grupo de Intervenção Rápida), uma espécie de tropa de choque do sistema prisional de São Paulo.
No início deste ano, a Ponte divulgou com exclusividade um estudo da Defensoria Pública de São Paulo que mostrava que quase metade dos presos do estado já tinham sofrido agressões do GIR. O levantamento realizado pelo NESC (Núcleo Especializado em Situação Carcerária) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo apontava que o GIR, formado por agentes penitenciários para controlar rebeliões e revistar celas atrás de armas e drogas, é atuante em mais de 65% das unidades prisionais de São Paulo. Mais de 45% dos presos relatam já terem sido agredidos fisicamente.
Embora em outro estado, em março deste ano, assim como há 45 anos, detentas da Cadeia Feminina de Boa Vista, em Roraima, denunciaram através de uma carta os maus-tratos sofridos na unidade. Mais uma prova de que as violações acontecem no sistema prisional como um todo e que, mesmo após mais de 4 décadas, nada mudou.