Mulheres que lutam pelos presos, sejam mães, companheiras ou irmãs, encerram debate no segundo dia do Seminário Internacional da Amparar, que discutiu violações no cárcere brasileiro pela perspectiva de raça e gênero
Elaine Bispo Paixão é da Bahia. Companheira de um preso, ela não mede esforços para buscar os direitos de quem ela ama, nem que para isso precise estudar. No processo de enfrentar o Estado para garantir condições básicas de vida, iniciou faculdade de direito para colocar em prática sua promessa: “O Estado vai ter que me engolir”, como dito no segundo dia do 1º Seminário Intencional da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), nesta sexta-feira (5/7).
Na fria capital paulista, ela discursou ao lado de outras mulheres cujos familiares estão no cárcere. À sua frente, mais parentes e pessoas que estudam o assunto, sejam elas egressas, mães, irmãs, companheiras, alunos ou ativistas. A finalidade daquele encontro era gerar provocações e questionamentos que reforcem a importância da luta, como definiu Railda da Silva, representante da Amparar. E, também, reacender o fogo de quem está todo dia na labuta. Não apenas pelo clima de 15º C do inverno de São Paulo, mas pela exaustão de batalha atrás de batalha.
“O sofrimento do meu marido impulsionou minha busca pelos direitos dele. Se querem privatizar é porque vai dar lucro e nossos filhos e maridos são lucro para eles”, diz Elaine, citando o processo de privatização de presídios na Bahia e que ocorre nacionalmente, como no Amazonas, e em curso em São Paulo.
“Mulher de preso tem que se movimentar, não pode acatar o que o Estado dá. A única esperança que o preto, pobre, encarcerado tem é a família. Eu que tenho que guerrear por ele. Ele é humano, é lucro para o Estado. Deixar o Estado fazer o que faz? Não!”, continua Elaine, aplaudida pela platéia.
O recado é compartilhado por mais familiares. Mulheres, acima de tudo. Como fazem questão de destacar, a mesa inteira era composta de sete mulheres, os presos homens são os que mantém contato com familiares, enquanto as mulheres são abandonadas quando entram no sistema prisional. E são as mulheres do lado de fora, mãe, companheira ou irmã, que lutam pelos presos.
“Começamos a luta com três reivindicações para os presos: água, comida e o direito de vê-los. No Ceará, nossa dificuldade maior é que os territórios e os presídios são seccionados, o que dificulta a luta dos familiares. Tudo começa com a perda de direitos nos bairros, que tem gente expulsa de casa”, explica Alessandra, do grupo Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará.
Os relatos passam de estado a estado, região a região. Do Nordeste ao Norte, como explica Priscila Serra, irmã de um preso recluso no IPAT (Instituto Penal Antônio Trindade), na capital do Amazonas, Manaus. No presídio, administrado pela empresa privada Umanizzare, 25 pessoas foram assassinadas em um novo massacre no estado, totalizando 55 mortos com homicídios em outras três unidades.
“Estou há 42 dias sem ver meu irmão por conta do massacre”, conta. “Eles recebem comida estragada, comida com laxante. Interno defecando sangue e não saíam para enfermaria e, quando iam, não tinha medicação”, exemplifica. “São 56 mortos em 2017 e 55 em 2019. Os profissionais chamam a gente de depósito de esperma. Teve moça com deslocamento de placenta. Lá a gente cansou de aceitar, de acatar. É difícil entender que o Estado está fazendo isso com a gente e a Umanizzare está assassinando a gente cada dia um pouquinho, nós e eles”, prossegue.
Representante da Pastoral Carcerária, Luiza Cytrynowicz visitou os presídios de Manaus após o massacre de 2019. “Um fato que me chamou a atenção foi que as mães com que falei dizem que perderam quilos e quilos desde o massacre. Elas são parentes de presos vivos. Como elas comem sem saber se o filho delas estão comendo? Como dorme sabendo se ele está dormindo de pé, em uma pedra? Não tem como falar de prisão e gênero sem entender o que é esse nível de brutalidade que se considera aceitável que as pessoas presas passem e os seus familiares passem”, argumenta.
Do Norte ao Centro-Oeste. Em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, ela visitou uma presa que havia dado luz há cerca de oito meses e o religioso que acompanhava Luiza pediu para segurar a criança. Até ali, o bebê nunca havia tido contato com uma pessoa do sexo masculino. “São todas mulheres ali. Imagina para uma criança que até os 8 meses nunca viu um homem, nunca ter convivido?”, questiona a profissional, que detalha ter ouvido que o bebê iniciava a engatinhar, mas o processo tinha um problema. “Ela só pode fazer isso na praia, que é como chamam o chão da cela. No entanto, o espaço é superlotado e, de noite, não tem nenhum espaço, todas as pessoas estão deitadas. Como a criança vai andar? Fica prejudicada”, exemplifica.
Já na região Sudeste, em São Paulo, os problemas têm uma divulgação um pouco maior na imprensa. Quando se trata de pessoas transexuais, as violações ficam escondidas, segundo a egressa Jennifer dos Santos, em sua primeira fala pública. Para conseguir contar sua história, ela precisou respirar. “Estou suando frio, gelada”, contou ao público, antes de pedir um intervalo. Após a fala de Luiza, Jennifer retomou.
“O fato de sermos travestis não temos direito de nada, voz para nada. Era 2015, quando fui viajar para a Europa em 2016, tinha uma prisão decretada, eu era considerada foragida. Fui para Pinheiros (SP). Um diretor de lá odeia viado, o que puder fazer contra, ele faz. Os presos nos torturam psicologicamente”, relembra. “Quem não tem visita tem que pagar sabão em pó, sabonete, se não seríamos expulsas das celas. Sem condições, temos que passar por essa tortura. Até minha mãe chegar e me ajudar”, completa.
As violações aconteceram antes do cárcere, estiveram presentes na situação que a levou atrás das grades. Segundo Jennifer, ela foi abordada por dois policiais militares em Anápolis, cidade em Goiás. “Eles me espancaram, jogaram uma mala e disseram que era minha. Fui presa por tráfico com cinco parangas de maconha naquela bolsa, que não era minha. Não sabia de onde tinha saído, mas sabia quem tinha colocado”, lembra. “Eu sou feliz, sou muito bem amada, tenho amigos, tenho minha mãe que me ama. Não tenho raiva do policial, tenho pena dele. Passei dificuldade [quando estava] presa, mas o que passei não me fez mais forte ou mais fraca, me fez ser o que eu sou, encarar sempre em frente, não ter vergonha do que eu sou”, garante.
A partir do seminário, a busca é, além de denunciar as violações do cárcere, o desencarceramento. “O que nós lutamos é para ter um Brasil sem grades. As mães, quando têm os filhos presos, elas estão aprisionadas para o resto da vida. Não tem medida socioeducativa porra nenhuma, não há ressocialização de preso. O Estado quer que aquele adolescente vire um bandido, vire um varejista. O verdadeiro crime organizado é o Estado, uma facção intocável. As siglas partidárias matam nossos filhos, encarceram. Não acreditamos nas siglas, acreditamos na revolta das mães”, disparou Debora Maria da Silva, fundadora do movimento independente Mães de Maio.
Na mesma lógica, a advogada e coordenadora do grupo de trabalho de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Dina Alves, argumentou que, mesmo com a abolição da escravatura, em 1888, a população negra continua sofrendo as consequências históricas dessas violações. “Temos que tratar do encarceramento como um encarceramento completo, não só das pessoas presas, mas dos parentes, amigos, da comunidade presa junto com essa pessoa. E tem cor, tem gênero. As mulheres pretas saíram da condição de escravas para presas, para condição de subempregadas, de serem consideradas mulheres, mães, familiares de presos e presas. Esses 130 anos demonstram a continuidade desse lugar, desse passado que o livro de história apagou”, justifica.
Para Dina, esse sistema mostra que o Estado é o principal reprodutor do racismo. “Dentro de uma nação fundada nas violências, no racismo, que fundou o mito da democracia racial, da Justiça imparcial e cega, ela mesma que denuncia esse Estado racista com sistema carcerário com mais de 70% de pessoas pretas. A guerra às drogas é uma guerra às pessoas”, prossegue. “Humanizar não é uma luta que serve a gente, a luta é pelo fim do encarceramento. Está muito colocada a seletividade, hipervigilância a alguns grupos sociais no país, já sabemos como é a atuação de um juiz. Não é segredo para ninguém que sentença é combinada no país. Não é só a prisão do [ex-presidente] Lula, feita pelo juiz Sérgio Moro [hoje ministro da Justiça e Segurança Pública], todas as prisões”, afirma.
A deputada estadual de São Paulo Erica Malunguinho (Psol) seguiu na mesma linha, para que a questão racial seja vista com profundidade, e cobrou ações práticas. “Quando falamos de radicalidade, falo que já sabemos quem é o Estado, o projeto genocida, estamos discutindo constantemente, quero pensar sobre o que nós não sabemos, sobre os nossos ‘sins’, os ‘nãos’ a gente já sabe. As proposições diante desse sistema político falido. Como a sociedade civil se organiza para responder nesse sistema de agora com esse presidente e um sistema que vem de toda a história? Foi o apagamento de nossos corpos nos espaços de poder que possibilitou esses monstros”, disse.
Debora Maria entoou a necessidade de se exigir explicações quanto às declarações do deputado estadual Sargento Neri (Avante), em que estimula a prática de chacinas pela Polícia Militar paulista em resposta à morte de agentes de segurança. “Infelizmente, a mãe do policial não tem culpa dessa instituição ser uma fábrica de ‘mãe de maio’ e de associações Amparar. Quando você fala de uma estatística de diminuição, o cemitério grita. Estamos aqui para dizer que nossos mortos têm voz, nossos filhos têm voz. Doria [governador de SP] não tem direito pela vida dos nossos filhos”, disse.
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