Operação policial gera caos e espalha pessoas em situação de rua pelo centro de SP

Ação liderada pela Polícia Civil começou às 3h30 da madrugada desta quarta (11) na Praça Princesa Isabel, onde está a nova “Cracolândia”, e deteve 20 pessoas, das quais 5 ficaram presas. Reportagem testemunhou agressão de GCM a imigrante

PMs fecham o trânsito na Avenida Rio Branco, centro da cidade de São Paulo, na tarde desta quarta (11) | Foto: Jeniffer Mendonça / Ponte Jornalismo

Uma operação deflagrada em conjunto pela Polícia Civil, Polícia Militar e Guarda Civil Metropolitana na Praça Princesa Isabel, região central da capital paulista, retirou da área as pessoas em situação de rua que ali se concentravam, onde havia se instalado a nova “Cracolândia”, como é conhecida pejorativamente a cena de tráfico e consumo aberto de drogas que acontece na região há décadas.

Segundo comunicado da Polícia Civil, a ação seria a sétima etapa da fase 5 da Operação Caronte, liderada pela Seccional Centro e pelo 77 DP (Santa Cecília) e foi iniciada às 3h30 da madrugada desta quarta-feira (11/5). Ainda segundo o comunicado da Polícia Civil, o objetivo seria cumprir 36 mandados de prisão e um mandado coletivo de busca e apreensão no quadrilátero da Princesa Isabel. Segundo o delegado titular Roberto Monteiro, foram 20 detidos, dos quais cinco ficaram presos (sendo dois procurados).

A reportagem da Ponte chegou à região por volta das 9h50 da manhã e testemunhou cenas de caos. A praça foi desocupada para limpeza realizada por funcionários da Prefeitura de São Paulo, mas o destino das pessoas que ali estavam anteriormente, e que passaram a perambular pelas ruas do entorno, não ficou muito claro.

Num primeiro momento o major PM Serbilera, do 13º Batalhão de Polícia Militar Metropolitana (BPM/M) afirmou à reportagem que a ação visava liberar a praça para que fosse realizada a limpeza e que depois as pessoas em situação de rua instaladas na área poderiam voltar. Elas ficaram aguardando a liberação entre a Avenida Rio Branco e a Praça Princesa Isabel. O coronel da reserva da PM e ex-comandante geral da Polícia Militar de São Paulo Marcelo Salles, atual subprefeito da região da Sé, esteve no local, mas disse à reportagem que “não sabia” o que seria feito com as pessoas que estavam ali antes e que caberia à equipe de assistência social responder. “Vim apenas cuidar das ações de zeladoria”, declarou.

Porém, ao longo da manhã e começo da tarde, guardas civis e policiais foram ouvidos afirmando que a ordem era para dispersar essas pessoas, mas sem um direcionamento para que área deveriam ser empurradas – uma parte foi deslocada à força, seguida por viaturas da PM e GCM, em direção à Favela do Moinho e outra para a Rua Helvétia. Grupos voltaram à Avenida Duque de Caxias e outros ficaram no entorno do terminal de ônibus Princesa Isabel. Em um momento, a Ponte ouviu um delegado de Polícia Civil dizendo que a cena parecia uma “procissão de noia”, gíria pejorativa em referência a usuários de crack. Antes, tinham feito todos sentarem ao chão para serem revistados e, ao liberarem um por um, não permitiam que percorressem algumas vias interditadas.

Ndongala Garcia, imigrante angolano agredido por uma guarda civil não identificado | Foto: Jeniffer Mendonça / Ponte Jornalismo

A Ponte testemunhou episódios de violência, como a agressão de um guarda civil que não conseguimos identificar ao imigrante angolano Ndongala Garcia, 47, que está há três anos em situação de rua na capital paulista. “Eu não estou na ‘Cracolândia’, estou em outro lado. Eu só queria ir embora, tinha um amigo vindo me buscar”, relatou Ndongala. Carlos Mendonça, pedreiro, 67, testemunhou a agressão: “ele queria atravessar mas o guarda não queria deixar. Como ele insistiu em ir, deu uma pancada com toda a força do cassetete, rachou a testa dele”. O imigrante foi atendido por agentes de saúde que passavam no local e retirado da área. Atacar a cabeça de qualquer pessoa com um cassetete vai contra todas as normas de uso de armas menos letais por forças de segurança. O guarda também não prestou socorro.

Outra moradora em situação de rua, uma mulher de 47 anos negra, relatou ter sido agredida na cintura pela GCM durante a remoção das barracas. “Perdi tudo, destruíram minha barraca e me bateram com cassetete”, denunciou.

Até às 19h30 desta quarta (11), a reportagem visualizou pessoas ainda próximas à Princesa Isabel, na Avenida Duque de Caxias, enquanto outras foram em direção à Rua Barão de Piracicaba e outro grupo ocupava o Viaduto Engenheiro Ornaldo Murgel, que passa por cima da Favela do Moinho.

‘Pode acontecer num universo de 600 policiais, mas não é nossa orientação’

No final da tarde, a Polícia Civil realizou uma coletiva de imprensa no 3 DP para explicar sobre a operação.

O delegado titular Roberto Monteiro disse que a ação foi planejada em conjunto com a PM e a Prefeitura, tendo mobilizado 200 policiais civis, 300 policiais militares e 150 guardas após um trabalho de investigação que identificou traficantes atuando na praça. “Tivemos a notícia de que o crack inflacionou, a pedra era vendida por R$ 20 e passou a ser comercializada por R$ 40, R$ 50, por causa das ações repressivas”, disse. “Foi um trabalho pensado para ter o mínimo de conflito e em conjunto com a assistência social e equipes de saúde porque é um problema complexo que foi agravado pela pandemia. Esses dependentes químicos são vítimas desses traficantes. Os trabalhos de abordagem aumentaram 150%.”

A Praça Princesa Isabel esvazaida após ação das forças de segurança pública de São Paulo | Foto: Jeniffer Mendonça / Ponte Jornalismo

A reportagem viu algumas equipes da assistência social da prefeitura fazendo abordagens a pessoas em situação, como é de costume na região, mas sem uma tenda ou reforço dos funcionários. “Estamos vendo quem quer ir para o Complexo Prates ou do Boraceia almoçar e tomar banho. Se tiver vaga disponível, a gente oferece”, relatou uma assistente social à Ponte. Também havia alguns servidores da pasta da Saúde.

A Ponte questionou a respeito dos casos de violência, como o do imigrante agredido que foi presenciado por integrantes do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra) da Polícia Civil. O delegado disse que “pode acontecer num universo de 600 policiais, mas não é a nossa orientação”, questionando se a vítima praticou algum tipo de desacato antes, o que não ocorreu. “Passa para a gente as imagens que vamos encaminhar para a Corregedoria da GCM para que o caso seja apurado”, garantiu.

Em nota enviada na manhã desta quinta-feira (12), a Polícia Civil informou que foram apreendidas drogas (Cocaina, Crack e Cannabis sativa), mas sem aferir quantidade, três simulacros de armas, uma marreta, 14 facas; 19 balanças de precisão; um celular; duas munições calibre 32; diversas ampolas de lipo enzima, um pneu estepe; dezenas cédulas de identidade, três cartelas de etiquetas adesivas (rosto do traficante colombiano Pablo Escobar); dois rolos de filme plástico; quatro cadernos de anotação de contabilidade, 92 cédulas de identidade; 44 títulos de eleitor; duas carteiras de trabalho, 19 CPFs, uma carteira de reservista, uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH), duas tesouras e R$ 3.640,00. Foram registrados três termos circunstanciados (registro para infrações de menor potencial ofensivo) e um boletim de ocorrência por dano após um veículo da TV Bandeirantes ter tido o vidro quebrado por uma pedra.

O que diz a prefeitura

A Ponte procurou a Prefeitura de São Paulo sobre os casos de violência e os atendimentos de assistência social no território. A Secretaria Municipal de Segurança Urbana disse que “irá apurar os fatos” denunciados pela reportagem e que “não compactua com irregularidades e toda denúncia é devidamente averiguada”. A assessoria declarou que foram empregados 108 guardas “excepcionalmente” para dar apoio à operação da Polícia Civil e que a GCM “segue as diretrizes das políticas municipais de segurança e seus agentes recebem treinamento para uma atuação humanizada e com respeito aos Direitos Humanos, de acordo com a matriz curricular da Academia de Formação em Segurança Urbana – AFSU”.

Informou que a partir desta quinta-feira (12), “a GCM voltará a manter o policiamento preventivo na região com efetivo de 80 agentes, sendo 40 guardas no período diurno e 40 noturnos”.

Sobre os atendimentos, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, informou que “os orientadores de Seas III prestaram atendimento durante o período da madrugada e o fim da manhã desta quarta-feira (11), com 163 encaminhamentos” e que nem todos seguem para os Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIATs) por ser “uma avaliação feita após o encaminhamento para a rede, onde esses cidadãos passam por triagem para identificar o serviço mais adequado, seja terapêutico ou socioassistencial”. A pasta não respondeu se houve um reforço das equipes de abordagem durante a operação.

Também explicou que o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) AD IV, que fica em frente à Praça Princesa Isabel, estava prestando atendimento desde 4h da manhã de terça-feira (11) e que acolheu “17 usuários que optaram por receber atendimento na unidade desde a madrugada”. Sobre as portas abaixadas da unidade durante a operação, disse que “os profissionais do Caps são orientados a abaixarem as portas durante ações de segurança que possam gerar reação do fluxo e, consequentemente, interferir no andamento dos trabalhos da unidade, além de garantir a segurança de acolhidos e funcionários”.

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A pasta ainda informou que de 25 março a 10 de maio, “os orientadores registraram mais de três mil abordagens no território”, sendo que “as ações são realizadas sempre com o objetivo de proporcionar acesso à rede de serviços socioassistenciais e às demais políticas públicas, bem como desencadear o processo de saída das ruas e promover o retorno familiar”. “No mesmo período, correspondente a 47 dias seguidos, houve 972 encaminhamentos, sendo que destes, 457 foram providências relativas a documentações, 252 direcionamentos para núcleos de convivência, 25 para pernoite e 23 para hotel social. Além disso, 189 encaminhamentos registrados no Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT) e 3.010 orientações”, informou, mas não esclareceu sobre o atendimento às pessoas que se dispersaram durante a operação.

A reportagem foi atualizada às 11h54, de 12/5/2022, para incluir nota reencaminhada da Polícia Civil e resposta da Prefeitura de São Paulo.

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