Gestão do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite anunciou novas edições da operação após latrocínio de dois PMs e três tentativas de assalto contra policiais na última semana
Os latrocínios da soldado Sabrina Freire Romão Franklin, de 30 anos, e do tenente aposentado Paulo Marcelo da Silveira, 69, se somam à triste estatística de policiais militares que são mortos em horário de folga em São Paulo.
A soldado, que saía do trabalho de moto, foi abordada por dois assaltantes, que a derrubaram do veículo, atiraram e voltaram para pegar sua arma na última quinta-feira (18), na Estrada Ecoturística de Parelheiros, no extremo sul da cidade. A ação foi registrada por uma câmera de segurança. Já o tenente foi encontrado baleado dentro do próprio carro no mesmo dia. Ele teria tentado reagir a uma tentativa de assalto e teve a arma roubada no bairro Eldorado, na zona sul, também na capital.
Outros três casos de violência contra policiais de folga aconteceram quase simultaneamente, em situações parecidas, entre os dias 18 e 19 de janeiro. Dois deles foram baleados e sobreviveram após tentativa de assalto de moto, que aconteceram em Guarulhos e em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Já um terceiro policial teve a residência invadida em Hortolândia, no interior, e não se feriu após reagir e matar um dos assaltantes.
A proximidade e repercussão dos casos fez com que o governo estadual anunciasse mais cinco edições da Operação Escudo, uma para cada região onde cada PM foi vítima, nas regiões de Santo André e Guarulhos, na área metropolitana, em Piracicaba, no interior, e na zona sul da capital.
Em um vídeo com um trecho de uma entrevista à imprensa, o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite, que estava no velório da soldado Sabrina, chamou os episódios de “ataques” que não ficariam impunes e desprezou pesquisadores que não são policiais. “Para quem acha que não existe pena de morte no Brasil, ela existe. Quando um policial militar é identificado como policial, automaticamente, e o policial não consegue por ‘n’ fatores se defender, mesmo em momento de dificuldade, ali que existe pena de morte no Brasil. E eu não ouço, não vejo, não leio nenhum especialista em segurança pública se manifestar”, disse. “Só na segurança pública nós temos especialistas que nunca, com todo o respeito, trabalharam um minuto em uma viatura policial se autointitularem especialistas”.
Desde 2023, deflagrar operação após morte de policiais militares tem sido uma praxe da gestão, mas a edição da Escudo que mais teve visibilidade foi a de julho, após o assassinato do soldado Patrick Reis, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM, no Guarujá, no litoral paulista.
Os 40 dias da operação deixaram 28 mortos e uma série de denúncias de violações de direitos humanos na Baixada Santista que acenderam alerta até na comunidade internacional. Em dezembro do ano passado, dois policiais da Rota viraram réus pela morte de Rogerio Andrade de Jesus. Segundo o Ministério Público estadual (MPSP), os PMs executaram o homem, tentaram evitar o registro pelas câmeras das fardas e forjaram a existência de uma arma de fogo como se fosse da vítima. Outras mortes ainda estão em apuração.
No caso dos soldados Patrick Reis e Sabrina Franklin, a polícia prendeu suspeitos dos crimes poucos dias após os assassinatos e, mesmo assim, as operações foram mantidas. A Secretaria de Segurança Pública disse em nota pública que essas operações “têm como objetivo reestabelecer a ordem pública e a sensação de segurança na comunidade local, além de identificar e prender os responsáveis pelas ações criminosas contra os agentes de segurança paulistas”.
Pesquisadores entrevistados pela Ponte, incluindo integrantes e não integrantes das forças de segurança, são uníssonos em dizer que essas operações não protegem policiais nem a população.
A atuação esperada da polícia é o que se faz no programa “PM Vítima”, que é uma divisão da Corregedoria da PM paulista que faz uma apuração preliminar de casos que envolvem mortes ou ferimentos graves de policiais a fim de auxiliar o trabalho da Polícia Civil, explica José Vicente da Silva Filho, que é coronel reformado da PM paulista e membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP). “É um trabalho mais discreto, mais eficiente, porque lógico, chega uma grande operação da polícia, os bandidos fogem, eles se recolhem. Mas a apuração que a Corregedoria faz, ela faz sem uniforme. Ela vai com todos os procedimentos de apuração, perguntando para as pessoas, coletando alguma evidência que possa ajudar nesse processo”, aponta.
Ele indica que esse tipo de trabalho de pronta-resposta leva suspeitos a serem identificados e presos mais rápido. “Esse é o tipo de resposta que a gente espera de uma polícia. Isso é assim nos Estados Unidos, em muitos lugares, em que você investiga, apura e vai buscar os criminosos. Fazer uma grande ação policial faz com que os bandidos fujam, é visível demais, intimida muito a população, gera aquele corre-corre, leva a perigo, eventualmente, um confronto, é uma operação que não tenha um planejamento mais apurado”, avalia.
Nesse cenário, a forma como o governo estadual se porta gera uma mensagem à tropa. Para o coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha, convocar mais uma edição da Operação Escudo se transformou “em tipo de código para ‘operação vingança'”, em que o uso da palavra “ataque” para nomear esses casos, sem uma apuração mais consolidada, é uma forma de politizar essas mortes para legitimar as ações. “Coloca o Estado quase que na mesma lógica dos bandidos. ‘O Estado vai se vingar, vai correr atrás’, sendo que qualquer investigação pode mostrar, e a gente tem que esperar os resultados da Polícia Civil, que podem ter sido simplesmente crimes comuns. A gente sabe que os roubos de motocicletas aumentaram no estado. Ainda que os roubos de veículos tenham caído, quando a gente desagrega [filtra os dados], os roubos de motos não caíram. Então pode ser relacionado a isso: infelizmente um assalto que escalou devido à vítima ser um policial”, analisa.
“Disseminaram um modelo de operação vingança no lugar de uma resposta necessária do Estado a ataques contra policiais”, sinaliza Samira Bueno, que é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “É óbvio que um policial que é vítima de um assassinato ou de uma tentativa de assassinato não pode ficar impune. É óbvio que os criminosos têm que ser investigados e presos e esses casos têm que ser solucionados. Eles precisam ser presos e julgados pela lei. O Derrite fala no vídeo dele que tem pena de morte no Brasil quando o policial é identificado como policial, mas o que ele está dizendo vale também para a polícia que ele comanda. Ele está implementando a pena de morte na ponta quando ela decide apertar o gatilho, quando ela decide quem vive e quem morre, quando matam 28 pessoas na Baixada Santista. Não é a mesma lógica?”, questiona.
A perspectiva da vingança nas operações não é à toa, já que São Paulo detém um histórico de repressão após assassinato de policiais. Isso aconteceu nos Crimes de Maio de 2006, nos ataques de 2012 e na Chacina de Osasco e Barueri, em 2015. Contudo, esses crimes com indícios de participação de policiais aconteceram fora do serviço. No caso da Operação Escudo de julho do ano passado, na Baixada Santista, a gestão deflagrou uma operação oficial. Policiais espalharam nas redes sociais imagens de corpos e caveiras, revelando a vontade de espalhar o “espírito da morte” na Baixada Santista, e teriam dito aos moradores que pretendiam chegar a um placar de 60 mortes.
No caso do soldado Patrick Reis, o peso da resposta estatal se deu por ele ter sido assassinado em serviço, durante um patrulhamento com equipe, e pertencer a uma tropa especial da corporação, o que pode se considerar um ataque por ser policial, na visão dos especialistas. “O último policial da Rota que tinha sido morto em serviço morreu em 1999. Foram 24 anos sem uma ocorrência como a que vitimou o soldado Reis. Não só foi uma operação vingança, mas uma operação vingança que contou com total apoio irrestrito do comando das duas polícias”, destaca Samira Bueno.
Em um âmbito mais global e em números absolutos, as polícias brasileiras são a terceira que mais morre em serviço na América Latina, segundo o levantamento Monitor da Força Letal (disponível em inglês e em espanhol), em que teve participação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O pódio é formado por México (199 mortes), Colômbia (121) e Brasil (47), considerando os dados oficiais de 2019. Não foram incluídos os casos na folga.
Contudo, em termos de mortes praticadas pelas polícias durante o serviço, no Brasil elas seguem em alta desde 2017, quando foram computadas 5.350 vítimas no mesmo ano. Em nenhum outro país analisado, as polícias mataram mais do que 500 vítimas no período – apenas a Venezuela em 2018, quando contabilizou 5.287 mortes, ultrapassando o Brasil (5.251), mas não forneceu dados de 2019 para comparação.
Além disso, as dinâmicas das mortes de policiais na folga são diferentes e ainda carecem de dados mais robustos, segundo os entrevistados. Um estudo do Instituto Sou da Paz a partir da análise de 68 boletins de ocorrência sobre mortes de policiais na capital paulista entre 2013 e 2014 identificou que 70% das vítimas estavam de folga, eram homens (98%) brancos (64,7%) e estavam na ativa. A maioria dos casos aconteceu em sextas e sábados (cerca de 20% cada), entre 18h e 23h59 (37,3%), sendo que a vítima foi abordada quando estava sozinha (59,7%) e foi morta após assaltos (29,8%). Em 11,9%, os policiais foram mortos na folga ao tentarem reagir e impedir crimes contra terceiros e em 9% há menção expressa de que a vítima fazia trabalho de segurança privado durante a folga, embora a prática seja ilegal.
A implementação do programa de câmeras nas fardas em São Paulo, que começou de fato a partir do segundo semestre de 2020, mostrou queda expressiva das mortes de policiais em serviço, mas a folga ainda é uma questão. “A questão não é que o bandido vai ter medo de atirar no policial ou que vai ter medo de ser reconhecido ao fazer isso”, aponta Rafael Rocha. “A questão é que o policial se coloca em menos situações de risco. Ele segue os protocolos de segurança, os POPs, que são os Procedimentos Operacionais Padrão da Polícia Militar, de maneira mais estrita, porque ele sabe que ele está sendo supervisionado, ele sabe que cada morte vai ter ali, não só uma investigação, mas também uma revisão de como foi aquela cena, os vídeos, como ele se portou, então ele se coloca em menos risco”, aponta.
José Vicente afirma que os comandantes também são exemplo na tomada de decisão. “Qualquer ação de vingança é muito perigosa. As polícias ficam excitadas, com um propósito de vingança quando morre um companheiro, é um fenômeno internacional, mas é necessário conter, porque não tem sentido a polícia, que trabalha contra os infratores da lei, ela mesma infringir da lei”.
Os pesquisadores divergem e ainda apontam ser cedo para dizer se as tentativas de assalto contra os policiais que sobreviveram e contra a soldado Sabrina poderiam ser uma resposta do crime organizado pela alta letalidade policial, mas para eles as dinâmicas relatadas pela polícia à imprensa, inicialmente, não levam para esse caminho e somente a investigação vai poder esclarecer.
Por outro lado, Samira Bueno enfatiza que essas operações também ofuscam a discussão sobre as condições de trabalho dos policiais. “Em certa medida, até é uma tragédia que decorre da crueldade do mundo do crime, mas não só. Ela decorre também das condições de trabalho desses profissionais. É muito fácil para ele [Derrite] fazer esse discurso eleitoreiro, demagógico, e xingar especialista, dizendp que o policial é o verdadeiro detentor desse saber policial, mas se abster completamente de traçar políticas que sejam capazes de minimizar esses riscos”, critica.
Ela aponta por exemplo que, mesmo com o reajuste salarial das corporações feito pelo governo, os praças, que são a categoria mais baixa da PM, recebem de forma desproporcional em relação aos oficiais, e que as operações delegadas, quando policiais vendem suas folgas para trabalhar, são uma maneira mais paliativa para resolver o problema do “bico”.
Outra questão é o protocolo, já que na folga o policial não detém da mesma estrutura de apoio quando está em serviço. “Se ele está armado, ele está mais encorajado a reagir. A gente sabe que muitas vezes é quando ele reage a um roubo que ele acaba sendo morto. Será que reagir é a melhor solução? Acho que a corporação precisa começar a pensar se isso é um fenômeno que acontece com tanta frequência. Se os crimes patrimoniais estão crescendo nessa proporção e policiais são vítimas cada vez de forma mais frequente, a corporação precisa encontrar mecanismos de dar mais proteção para esses policiais no horário da folga, inclusive impossibilitando a sua identificação”, afirma a diretora do FBSP.
O que diz o governo
A Ponte encaminhou os seguintes questionamentos à Secretaria de Segurança Pública e à Polícia Militar. A a Fator F, assessoria de imprensa terceirizada da pasta, não respondeu todos eles e enviou a seguinte nota:
A SSP informa que investe em políticas públicas visando à diminuição das mortes de todos os seus policiais. De janeiro a novembro de 2023, 20 policiais militares (em serviço e de folga) foram vítimas fatais em crimes contra a vida no Estado – destes, 10 ocorrências aconteceram na capital.
As forças de segurança reforçaram as orientações para que os policiais usem táticas e técnicas adequadas ao utilizar suas ferramentas de trabalho para se protegerem em situações de legítima defesa. Agindo dentro da legalidade e sem hesitar, considerando a crescente ousadia dos criminosos contra os policiais. As mortes de agentes de segurança são investigadas pela Polícia Civil e por uma divisão especializada da Corregedoria da PM, a “Divisão de PM Vítima”, responsável por acompanhar e atuar para o esclarecimento dos crimes que envolvam os agentes.
A Polícia Militar esclarece que a Operação Escudo é um protocolo padrão que é acionado toda vez que um agente se segurança do estado é alvo de um ataque. O objetivo de uma Operação Escudo é restabelecer a ordem e devolver a sensação de segurança à população. Ano passado foram realizadas 38 operações dessa natureza.
A Operação Escudo está atualmente em quatro regiões do estado: ABC Paulista (CPA/M-6), região sul da Capital (CPA/M-10) – em decorrência do assassinato da soldado PM Sabrina -, Piracicaba (CPI-9) e Guarulhos (CPA/M -7). Durante a operação no ABC, por exemplo, a polícia prendeu um jovem de 19 anos envolvido na tentativa de latrocínio de um PM em São Bernardo. Já na zona sul da capital, quatro suspeitos de participar da morte da soldado são investigados. Desde a última sexta-feira (19), foram efetuadas, no total, 4 prisões, incluindo dois foragidos da Justiça. Além disso, foram vistoriados 181 veículos e apreendidas 2 armas ilegais. Os batalhões de cada localidade estão empenhados no patrulhamento para localizar e prender outros envolvidos.
O caso que vitimou o soldado da PM na Baixada Santista foi investigado pela Delegacia de Guarujá e o inquérito policial foi concluído e encaminhado à 1ª Vara Criminal do município em 4 de agosto de 2023.
A Ponte tinha enviado as seguintes perguntas:
– Tão logo houve o assassinato da soldado Sabrina, bem como do soldado Patrick Reis (em julho/23), a identificação e prisão de suspeitos se deu simultaneamente. Mesmo assim, o secretário Guilherme Derrite anunciou edições da Operação Escudo. Qual a finalidade das operações? Que metas existem a respeito? Qual a duração de cada operação? Como é feita a escolha do efetivo empregado? Qual o critério para emprego de tropas especiais, como Rota e Baep, nessas operações? A operação é uma versão de operações “Saturação”?
– O programa PM Vítima, da Corregedoria da PM, tem feito esse trabalho de inteligência em casos de policiais mortos/feridos? Se sim, por que ainda há anúncio de operações ostensivas?
– Essas operações ostensivas não atrapalham o trabalho de investigação da Polícia Civil ou da Corregedoria da PM?
– Além do reajuste salarial para as polícias, ocorrido em 2023 e de forma diferente para cada patente da corporação, que medidas a pasta tomou para proteger a vida do policial em situação de folga?
– Existem protocolos para atuação do policial de folga? Se sim, quais são? O policial é orientado a reagir à tentativa de assalto? Há possibilidade de o policial manter a arma da corporação acautelada no batalhão?
– Ao chamar as mortes e investidas de violência contra policiais de “ataques”, a corporação e a pasta sugerem que o crime organizado tem algum plano de atacar policiais? Ou as situações da última semana se enquadram em assaltos, consumados e tentados, em que não houve uma escolha da vítima pela profissão, mas que a vítima foi reconhecida como policial e acabou sendo vítima da violência? O aumento de roubos de veículos tem a ver com essa situação?
– No caso do soldado Patrick Reis, a investigação continua em tramitação e a arma atribuída ao crime não é compatível com o projétil encontrado no corpo da vitima. Qual o andamento da apuração do caso? As câmeras das fardas dos policiais que estavam com ele na viatura foram analisadas?